Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1
1
Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Ao "Chat-Qui-Pelote"
Dedicado a mlle. Marie de Montheau
(Parte 3)
Quis o acaso que elas tivessem a facilidade de se aproximar, juntas, da tela ilustrada pela moda, dessa vez conforme com o talento. A mulher do notário soltou uma exclamação de surpresa que se perdeu no burburinho e tumulto da multidão, mas Augustina chorou involuntariamente, ante o aspecto daquela cena maravilhosa. Depois, por um sentimento quase inexplicável, pôs um dedo sobre os lábios ao avistar a dois passos a figura extática do jovem artista. O desconhecido respondeu-lhe com um aceno de cabeça, designando a sra. Roguin como um desmancha-prazeres, a fim de mostrar a Augustina que a compreendera. Essa pantomima acendeu como que um braseiro no corpo da pobre rapariga, que se sentia criminosa por imaginar que acabava de se estabelecer um pacto entre ela e o jovem artista. Um calor abafante, o contínuo aspecto de brilhantes toilettes e o atordoamento que produzia em Augustina a verdade das cores, a multidão das figuras vivas ou pintadas, a profusão das molduras de ouro, fizeram-na experimentar uma espécie de embriaguez que redobrou seus temores. Teria, talvez, desmaiado se, apesar daquele caos de sensações, não lhe houvesse surgido no fundo do coração um gozo desconhecido, que lhe vivificou todo o ser. Não obstante, julgou-se sob o poder desse demônio, cujas terríveis armadilhas lhe eram preditas pela voz trovejante dos pregadores. Aquele momento foi para ela como uma aura de loucura. Viu-se acompanhada até o carro da prima por aquele rapaz, resplandecente de amor e felicidade. Presa de uma irritação inteiramente nova, de uma embriaguez que, de algum modo, a entregava à natureza, Augustina atendeu à voz eloquente de seu coração e olhou por várias vezes para o jovem pintor, deixando que transparecesse o enleio que dela se apoderara. Nunca o rubor de suas faces formara mais vigoroso contraste com a alvura de sua tez. O artista pôde ver então aquela beleza em todo o seu viço, aquele pudor em toda a sua glória. Augustina sentiu uma espécie de alegria, mesclada de terror, ao pensar que sua presença causava a felicidade daquele cujo nome estava em todas as bocas, cujo talento dava imortalidade a imagens passageiras. Era amada! Impossível duvidar! Quando não viu mais o artista, ouvia ainda ecoar-lhe no coração aquelas palavras simples: “Está vendo o que o amor me fez fazer?”. E as palpitações, tornadas mais intensas, davam-lhe a impressão de dor, porque seu sangue, mais ardente, lhe despertara no corpo potências ignoradas. Fingiu estar com uma forte dor de cabeça para evitar responder às perguntas da prima a propósito dos quadros; mas na volta a sra. Roguin não se conteve e contou à sra. Guillaume da celebridade alcançada pelo “Chat-qui-pelote”, e Augustina ficou toda a tremer ao ouvir a mãe dizer que iria ao Salão para lá ver sua casa. A moça tornou a insistir sobre a sua dor de cabeça e teve licença para se ir deitar.
— Aí está o que se ganha com todos esses espetáculos — resmungou o sr. Guillaume: dores de cabeça. Que gosto se pode achar em ver em pintura aquilo que a gente vê todos os dias na nossa rua! Não me falem nesses artistas que são, como esses tais escritores, uns mortos de fome. Que necessidade têm eles de pegar a minha casa para vilipendiá-la em seus quadros?
— Isso poderá fazer com que vendamos algumas varas de fazenda a mais — disse José Lebas.
Essa observação, contudo, não impediu que as artes e o pensamento fossem mais uma vez condenados no Tribunal dos Negócios. Como bem se podia imaginar, tais palavras não deram grandes esperanças a Augustina, que se entregou durante toda a noite à primeira meditação do amor. Os acontecimentos daquele dia foram como um sonho, que ela se comprazeu em reproduzir em pensamento. Iniciou-se nos temores, nas esperanças, nos remorsos, em todas essas ondulações de sentimento que deviam embalar um coração simples e tímido como o dela. Que vazio reconheceu naquela casa escura e que tesouro encontrou em sua alma! Ser a mulher de um homem de talento e partilhar-lhe a glória! Que devastações esse pensamento não deveria ocasionar no coração de uma criança, educada no seio daquela família! Que esperança não deveria despertar numa jovem criatura que, nutrida até então de princípios vulgares, aspirava a uma vida elegante! Em sua prisão penetrara um raio de sol. Augustina amou, de súbito. Tantos sentimentos tinham sido, simultaneamente, lisonjeados nela, que sucumbiu sem nada calcular. Aos dezoito anos, o amor não atira seu prisma entre o mundo e os olhos de uma rapariga? Incapaz de adivinhar os rudes embates que resultam da união de uma mulher amorosa com um homem de imaginação, acreditou ter sido chamada para fazer a felicidade deste, sem dar pelas disparidades existentes entre ambos. Para ela o presente foi todo o futuro. Quando no dia seguinte seus pais voltaram do Salão, suas fisionomias tristonhas anunciavam certo desapontamento. Em primeiro lugar, os dois quadros tinham sido retirados pelo pintor; depois, a sra. Guillaume perdera seu xale de cachemira. Saber que os quadros acabavam de desaparecer depois de sua visita ao Salão foi para Augustina a revelação de uma delicadeza de sentimento que as mulheres sabem apreciar, mesmo instintivamente.
Na manhã em que, ao voltar de um baile, Teodoro de Sommervieux — tal foi o nome que a fama trouxera ao coração de Augustina — fora aspergido pelos caixeiros do “Chat-qui-pelote”, enquanto esperava o aparecimento de sua inocente amiga, que, indiscutivelmente, não o sabia ali, os dois namorados viam-se apenas pela quarta vez desde a cena do Salão. Os obstáculos que o regime da casa Guillaume opunha ao temperamento fogoso do artista davam à sua paixão por Augustina uma violência fácil de se conceber. Como abordar uma jovem sentada num escritório, entre duas mulheres tais como a srta. Virgínia e a sra. Guillaume? Como corresponder-se com ela, uma vez que a mãe não a deixava nunca? Com a habilidade própria dos amantes em imaginar desgraças, Teodoro criava um rival num dos empregados da casa e punha os outros no interesse daquele. Se escapasse a tantos Argos, via-se naufragando sob o olhar severo do velho negociante ou da sra. Guillaume. Por toda parte barreiras, por toda parte o desespero! A própria violência da paixão impedia o jovem pintor de achar esses engenhosos expedientes que, quer entre os prisioneiros, quer entre os amantes, parecem ser o último esforço da razão exaltada por uma necessidade selvagem de liberdade ou pelo fogo do amor. Teodoro perambulava pelo bairro com a atividade de um louco, como se o movimento lhe pudesse sugerir alguns ardis. Depois de muito torturar a imaginação, inventou peitar a gorducha criada. Trocaram-se, pois, de longe em longe, algumas cartas, durante a quinzena que se seguiu à desastrada manhã em que o sr. Guillaume e Teodoro tão atentamente se haviam examinado.
Nesse período, os dois jovens tinham combinado ver-se a certa hora do dia e nos domingos, em Saint-Leu, durante a missa e às vésperas. Augustina mandara ao seu querido Teodoro a lista dos parentes e amigos da família, em casa dos quais o jovem pintor procurou ter entrada, a fim de fazer interessar nas suas amorosas aspirações, se possível, uma daquelas almas ocupadas com assuntos de dinheiro, de comércio, e para as quais uma paixão verdadeira deveria ser a mais monstruosa especulação, uma especulação inaudita. Aliás, nenhuma mudança houve nos hábitos do “Chatqui-pelote”. Se Augustina se mostrou distraída, se, contra todos os preceitos de obediência às leis orgânicas da casa, ela subia até seu quarto para ir, por meio de um vaso de flores, preparar sinais; se suspirou, se pensou, ninguém, nem a própria mãe, o percebeu. Essa circunstância causará alguma surpresa aos que tiverem compreendido o espírito daquela casa, na qual um pensamento eivado de poesia devia produzir contraste com os seres e com as coisas, e onde ninguém podia permitir-se nem um gesto nem um olhar que não fossem vistos e analisados. Entretanto, nada mais natural: o barco tão tranquilo que navegava no mar tormentoso da praça de Paris, sob o pavilhão do “Chat-qui-pelote”, era presa de uma dessas tempestades a que poderíamos chamar equinociais, em razão dos seus ciclos periódicos. Fazia quinze dias, os cinco homens da equipagem, a sra. Guillaume e a srta. Virgínia estavam entregues a esse trabalho excessivo designado pelo nome de balanço. Mexiam em todos os fardos e mediam as peças de fazenda para verificar o valor exato do que ficava. Examinavam cuidadosamente a etiqueta apensa ao pacote para verificar a data em que o pano fora comprado. Fixavam-lhe o preço atual. Sempre de pé, com a medida na mão e a caneta atrás da orelha, o sr. Guillaume assemelhava-se a um capitão dirigindo a manobra. Sua voz aguda, ao passar por um postigo para interrogar a profundeza das escotilhas do armazém, fazia ouvir as bárbaras locuções do comércio, que só se exprime por enigmas: “Quanto H-N-Z?”; “Esgotado.”; “Que resta de Q-X?”; “Duas varas.”; “Que preço?”; “Cinco-cinco-três.” Outras mil frases, todas tão inteligíveis como aquelas, roncavam através dos escritórios como versos da poesia moderna que românticos citassem entre si a fim de manter o entusiasmo por um de seus poetas. À noite, Guillaume, encerrado com o primeiro caixeiro e a mulher, verificava contas, debitava outras, escrevia aos retardatários e redigia faturas. Os três preparavam esse imenso trabalho cujo resultado cabia num quadrado de papel almaço e provava à casa Guillaume que existia tanto em dinheiro, tanto em mercadorias, tanto em cheques e letras; que ela não devia um vintém, que lhe deviam cem ou duzentos mil francos; que o capital tinha aumentado; que as granjas, as casas, os rendimentos iam ser arredondados, ou consertados, ou duplicados. Daí resultava a necessidade de se começar com mais ardor do que nunca a recolher novos escudos, sem que ocorresse àquelas corajosas formigas perguntar a si mesmas: “Para quê?”.
Graças àquele tumulto anual, a feliz Augustina ia escapando à investigação daqueles Argos. Finalmente, num sábado à noite, deu-se o encerramento do balanço. As cifras do total ativo apresentavam suficientes zeros para que nessa circunstância o sr. Guillaume levantasse a proibição severa que reinava durante todo o ano, no momento da sobremesa. O manhoso negociante esfregou as mãos e permitiu que os caixeiros ficassem à mesa. No momento em que os homens da equipagem acabavam de tomar seu cálice de licor caseiro, ouviu-se o rodar de uma carruagem. A família foi ver A Borralheira[37] no Teatro das Variedades, enquanto os dois últimos caixeiros receberam um escudo de seis francos cada um e a permissão de ir aonde bem lhes parecesse, contanto que estivessem de volta à meia-noite. Apesar dessa estroinice, no domingo de manhã o velho negociante fez a barba às seis horas, esfarpelou-se no seu traje cor de castanha, cujos reflexos soberbos lhe causavam sempre o mesmo contentamento, prendeu os pendentes de ouro nas presilhas de seus amplos calções de seda; depois, cerca das sete horas, enquanto na casa todos ainda dormiam, dirigiu-se ao pequeno gabinete contíguo à sua loja do primeiro andar. A luz vinha de uma janela defendida por grossas barras de ferro e que dava para um pequeno pátio quadrado formado por muros tão escuros que o faziam assemelhar-se a um poço. O próprio negociante abriu aquelas gelosias guarnecidas de lata que ele tão bem conhecia e levantou a metade da vidraça, fazendo-a subir no seu encaixe. O ar gelado do pátio veio refrescar a atmosfera quente daquele gabinete, que exalava o cheiro particular dos escritórios. O negociante permaneceu de pé, com a mão descansando sobre o braço sebento de uma poltrona de vime, forrada de marroquim, cuja cor primitiva desaparecera, e parecia hesitar em assentar-se nela. Olhou com ar enternecido a escrivaninha de duas estantes, na qual o lugar de sua mulher estava reservado, do lado oposto ao dele, por uma pequena arcada aberta na parede. Contemplou os cartões numerados, os barbantes, os utensílios, os ferros para marcar o pano, a caixa, objetos de origem imemorial, e julgou rever-se ante a evocação da sombra de sieur Chevrel. Chegou a puxar a banqueta na qual se sentara outrora em presença do falecido patrão. Essa banqueta, forrada de couro negro e cuja crina escapava, fazia muito, pelos cantos, mas sem se perder, ele colocou-a com mão trêmula no mesmo lugar em que seu predecessor a pusera; depois, numa agitação difícil de descrever, puxou a campainha que correspondia à cabeceira da cama de José Lebas. Depois de ter dado esse golpe decisivo, o ancião, para quem essas recordações foram sem dúvida muito pesadas, pegou três ou quatro letras de câmbio que lhe haviam sido apresentadas e olhou-as sem as ver, no momento em que José Lebas apareceu subitamente.
— Sente-se ali — disse-lhe Guillaume indicando-lhe a banqueta.
Como nunca o velho comerciante o fizera sentar-se diante dele, José Lebas estremeceu.
— Que pensa destas letras? — perguntou Guillaume.
— Não serão pagas.
— Como?
— Eu soube que anteontem Etienne e companhia fizeram seus pagamentos em ouro.
— Oh! Oh! — exclamou o negociante. — É preciso estar bem doente para deixar ver o que se tem no bestunto. Mas falemos de outra coisa. José, está terminado o balanço?
— Sim, senhor, e o dividendo é um dos mais belos que o senhor já teve.
— Por favor, não empregue esses termos novos. Diga “o produto”, José. Sabe, meu rapaz, que é um pouco a você que devemos esse resultado? Por isso não quero mais que você tenha ordenado. A senhora Guillaume sugeriu-me a ideia de lhe oferecer interesses na casa. Que diz, José? Guillaume e Lebas, não acha que esses dois nomes assentariam bem para uma razão social? Poder-se-ia acrescentar e Companhia, para arredondar a assinatura.
Os olhos de José Lebas arrasaram-se de lágrimas, procurando ele escondê-las.
— Ah! Sr. Guillaume, como pude eu merecer tantas bondades? Não faço mais do que o meu dever. Já era muito que o senhor se interessasse por um pobre órf...
Escovava o punho da manga esquerda com a direita e não se animava a olhar o velho, que sorria, ao pensar que aquele modesto rapaz precisava sem dúvida, como ele em outros tempos, ser encorajado para completar a explicação.
(continua...)
(continua...)
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
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[37]A Borralheira: vaudeville de Désaugiers e de Gentil, representado em 1810.
Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (2)
Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (4)
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