segunda-feira, 10 de junho de 2019

O Brasil Nação - v2: § 62 – Infla o Império sobre a escravidão - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 7
as revoluções brasileiras



§ 62 – Infla o Império sobre a escravidão




A política genuinamente brasileira para com a escravidão é essa que vem dos independentistas de dezessete a Feijó; a do regime bragantino será a que começa no reajuste de D. João VI, e vem à legislação infanticida de 1871. No mesmo ano da eleição de Feijó, como regente, o seu adversário desde os dias de 1831, Ferreira França que votara até pela denúncia do grande ministro, em 1832, e era democrata, exaltado, isto é, genuinamente brasileiro, apresenta um projeto estabelecendo a libertação do ventre da mulher, e em termos que dava a efetiva liberdade aos nascituros. Tal projeto nem foi julgado objeto de deliberação... É que, de 1826 a 1836, através de 1832, fizera-se a torva involução que chegará aos dias hediondos de 1849-60-65... Quando Feijó se sente repelido pela política dos dirigentes brasileiros, a crise de 1831 já se resolvera pela volta definitiva e completa da política nacional às formas do puro bragantismo, até o ponto de um deputado da nação escrever e publicar um livro para demonstrar as vantagens legítimas do tráfico, indispensável (em 1845), afirma ele, para o progresso do país; até o ponto de que, em 1861, ainda havia africanos livres, trabalhando como escravos na fábrica nacional de Ipanema. A tradição brasileira ainda tem raras vezes (por ocasião de Antonio Carlos, ministro em 1841), de reencetar os ajustes contra o tráfico, ajustes tentados com o governo inglês, por Feijó, em 1837; mas desde 1833, 34, à medida que se desnaturava a política brasileira, avultava a escravidão. Aproveitando, com habilidade infame, as dificuldades feitas aos governos da Regência trina, os negreiros reforçaram o seu negócio. Num aviso de 29 de outubro de 1834, o governo geral deixa a confissão implícita da impossibilidade de defender os africanos importados de contrabando, e, a pretexto de promover a educação dos mesmos, toma uma série de providências que importavam na escravização deles. Nesse aviso, comenta Tavares Bastos, ainda há um pouco de pudor: em 1836, a injustiça se desmascara, em 1843 é a ostentação... Vem Feijó, com toda a sua energia, mas não consegue ser um dique à miséria, e, de 1838 em diante, é a franca enxurrada da escravidão, em que se fará a apoteose do regime resplendente em 1865. O governo imperial não se limitava a fechar os olhos ao tráfico: a sua política dizia, em todas as linhas, que o Brasil estava votado ao trabalho escravo, único possível, e o negreirismo alastrou com o prestígio do mesmo Império. Nunca entrou tanto africano escravizado no Brasil. A civilização nos vem da África, proclamou desde logo a política conservadora. Segundo as estatísticas adotadas pelo governo brasileiro o número de escravos em 1819 era de 1.930.000, número que, até 1840, não aumentou, quase; a importação foi apenas o bastante para compensar o excesso de óbitos sobre os nascimentos; de 1841 a 51, despejaram os negreiros dentro do Brasil 325.615 africanos, para a escravidão francamente aceita pelo regime... Compreende-se que o bill Aberdeen seja de 1845... E isso ainda não bastou: não lhe dando maior importância do que o tardio protesto de 23 de outubro, o governo imperial como que estimulou a infâmia, pois em 1846, o tráfico dobrou – 51.000, em 1847 – 57.800, em 1848 – 60.900... E se desceu em 49 para 50.000, foi para subir logo, em 50, a 57.000... O governo inglês já havia perdido toda paciência, e, sentindo-se justificado, não teve medida nos ataques à nossa soberania nacional, que era, desgraçadamente, a de uma nação empolgada pelo negreirismo.

De fato, de 1837 em diante, salvo os momentos de absoluta confusão, governava-se o Brasil com o ânimo dos escravizadores. A primeira tradição do Brasil antiescravocrata sumira-se nas apostasias dos Vasconcelos e os mais, com quem se constituíra e se engrandecera o segundo Império. Nem há caso mais expressivo do que o desse Vasconcelos, liberal e abolicionista em 1820, para dar em conservador e escravocrata. Saldanha Marinho o disse em 1869, sem que o contestassem: “Os conservadores são os mesmos que subiram (em 1841) e enriqueceram a custo da introdução criminosa de africanos no Brasil...”. (1) Em verdade, não é preciso ser conservador; naquela indeterminada exploração do cativeiro, há casos como este: “Holanda Cavalcanti que, em 1826, fora abolicionista, apoiando explicitamente a convenção contra o tráfico em 1837, apresenta um projeto, no Senado, revogando a mesma convenção.” São os dias em que Cândido Batista vem com aquele projeto, cujo artigo 13 concedia indultos aos contrabandistas de africanos. Nunes Machado ao discuti-lo, chamou a tal disposição artigo-monstro. E o Senado, depois de dar tempo a que o público se habituasse com a infâmia, aprovou o conjunto do projeto, que chegou à Câmara em dias de 1850, quando a pressão do governo inglês não mais permitia legalizar o perdão dos negreiros.


(1) Op. cit., pág. 51.


A tradição destacada em José Bonifácio e Feijó, teve a última manifestação como política antiescravocrata, no esforço de Antonio Carlos, em 1840, para obter em Londres aquilo mesmo que Feijó propusera por intermédio de Barbacena. Mas esse Andrada teve de deixar o Governo aos mais adequados ao regime, e nada concluiu do que intentara. Daí por diante, a política nacional fazia-se com o interesse do senhor de escravos, e exprimia a degradação do negreiro. O café já era ouro, e o negro se estimava assim: “Compra-se um negro por 300$000; ele colhe, num ano, 100 arrobas de café, que produzem líquido pelo menos o seu custo.” Os grandes políticos assentavam, pois, a economia nacional na exploração da escravidão. Nem admira que houvesse um desses políticos escrito um livro de mais de 300 páginas, para demonstrar, em 1845, a necessidade e as vantagens do restabelecimento franco e legal do tráfico, que, aliás, fazia-se abertamente. Como o inglês reclamava o cumprimento do trabalho de 1826, e dava caça aos negreiros, lembraram-se, então, os inefáveis políticos dos brios patrióticos, e fomentaram os mesmos brios contra o estrangeiro que afrontava a soberania da nação... impedindo-lhe de cevar-se no trabalho dos africanos... Num certo momento, o escravocrata essencial, Soares de Sousa, foi ao ponto de ameaçar o representante inglês: “Dada a insistência do gabinete de Londres em reprimir o tráfico, mesmo nas costas do Brasil, o governo imperial via-se forçado a colocar o comércio brasileiro sob a proteção dos Estados Unidos, ou da França...” ao que replicou Lord Palmerston, com toda a propriedade: “Lembro-lhe que, tanto a França como a União Americana estão ligadas à Grã-Bretanha por tratados contra o tráfico...” A inflexão de voz do inglês teria completado a resposta: “... e esses países cumprem os seus tratados...” Completando a inépcia em má-fé, um ministro brasileiro repetiu, em pleno parlamento, as razões do célebre deputado defensor do tráfico, afirmando que a Inglaterra de 1850 só perseguia a importação de africanos, no Brasil, por motivos de concorrência e ganância comercial. Esse foi ainda o argumento do próprio referendador da extinção do tráfico, Euzébio de Queiroz, quando protestou contra o procedimento do governo britânico, que, desesperançado da dignidade governamental dos nossos estadistas, pusera um navio de guerra bem defronte do paço, para apresar, dentro da Guanabara, os negreiros que, desassombradamente, faziam os seus desembarques. 

Convencido de que ejaculava bom patriotismo, o mesmo Ministro Euzébio afirmou: Se o tráfico se extinguiu foi porque o governo imperial assim entendeu fazer... Nem lhe acudiu ao discernimento que isso vinha provar, justamente, a tese do inglês: “O tráfico se faz com a aquiescência do governo brasileiro; só temos um meio de extingui-lo: obrigá-lo a isto.” De fato, quando o governo imperial o quis, acabou com a entrada de africanos escravizados... mas já a voz de Gladstone havia lançado sobre o Brasil a veemente maldição em que nos apresentava ao mundo na nudez dos negreiros, ao mesmo tempo que nos ameaçava com uma guerra de extermínio... E era merecida, se tal só alcançasse o corpo dos dirigentes, cuja mentalidade se afinava com a do deputado provincial Vidigal, aquele que, em 1859, ainda teve coragem para apresentar à sua assembleia um projeto restabelecendo o tráfico. E tanto, ele o fez, porque a ambiência política o estimulava. A inflexibilidade do governo britânico arrancou-nos a lei de 1850, extinção do tráfico, mas, segundo as histórias correntes, o infame comércio só cessou em 1853; Melo Moraes, com a responsabilidade de político e historiador, até 1861:


As diversas negaças a que está acostumado o governo do Brasil, obrigaram Lord Aberdeen a exigir do parlamento inglês o bill de violências contra os traficantes de escravos, protegidos pela má-fé do Governo do Brasil, e para mais aviltar-nos mandou colocar uma presiganga, mesmo na frente do paço imperial, onde eram lançados estrangeiros e brasileiros, que se entregavam ao tráfico da escravatura. E durante os anos de 1845 a 1861, o que não sofremos! (2) 


(2) Op. cit., pág. 90. 17 Op. cit., págs. 126 e 105.


Sá e Albuquerque, ministro da coroa, confessou, em nota ao representante inglês (junho de 1861), a responsabilidade do governo brasileiro no tráfico infame. Tavares Bastos, que a tudo assistiu, atesta, por sua vez, naqueles mesmos dias: “Pessoas altamente colocadas não se pejavam de advogar a causa e os interesses dos criminosos (negreiros)... A atitude provocadora dos traficantes e a imbecilidade do nosso governo, exigiam um procedimento enérgico. Promulgou-se o bill Aberdeen... A violência do governo inglês devia estar na razão da nossa cumplicidade com os traficantes.” Logo ao começar a sua campanhas, Tavares Bastos, refere casos de africanos importados depois de 1831, indiscutivelmente livres, e que, desde sempre reclamando a sua liberdade, nunca a obtiveram. Em demonstração, ele transcreve a correspondência do ministro brasileiro F. Otaviano com o representante da GrãBretanha: “A correspondência mostra que, de fato existem africanos livres a serviços na fábrica de Ipanema por mais de 14 anos”. (3) Nessa mesma correspondência, o governo imperial, na voz de Paranhos, confessa que não tinha, como devia, o cadastro dos africanos entrados depois de 1831. Os negreiros estavam, pois, inteiramente isentados de darem conta dos seus crimes. Em 1863, três anos, apenas, antes manifestar-se o tardio abolicionismo de Pedro II, o mesmo Tavares Bastos faz sua uma série de acusações às autoridades, de se negarem a reconhecer os direitos de africanos patentemente livres, e, por sua conta, eleva a voz contra a política escravocrata do governo imperial: “O Governo Central é o primeiro a dar o mau exemplo do escândalo. Não é escrupuloso, nem, sequer, guarda a decência com os africanos da Casa de Correção”, isto é, que aí trabalham. Antes, em 1861, já o grande liberal havia contado: “Ainda agora... o ministro da agricultura remeteu 30 africanos emancipados ao presidente do Amazonas que os solicitou, para serem empregados nas obras públicas. Singular emancipação!...” 


(3) Op. cit., págs. 126 e 105.

Nesta forma, à medida que o resto do Ocidente se redimia, na conquista da justiça para com os cativos, nós tínhamos uma classe dirigente que não podia conceber outra forma de produção além do trabalho escravo, e só atendeu a essa questão quando o imperante, por interesses seus, por si a levantou. E, em vista desses mesmos dirigentes, nem se estranha que o Brasil chegasse à monstruosidade que é a da sua história: sendo a alma da nação essencialmente antiescravagista, a Abolição teve que se fazer depois que já não havia mais países de escravidão, e, ainda assim, em franca revolução contra a política corrente. Quando uma nação é governada por estadistas tão ausentes, das suas legítimas tradições, a política será forçosamente perversão a contrassenso de todo legítimo desenvolvimento. Pois não vemos? O Império brasileiro, armado e conduzido por esses dirigentes ao zenith de glória e prestígio, marca o momento em que o estro brasileiríssimo de um Castro Alves tem de desferir as notas da mais sentida compaixão, que jamais soaram em língua portuguesa. O fato está no lineamento deste outro: o primeiro chefe de Governo que apontou a necessidade da abolição foi Zacarias de Góes, no entanto, cinco anos depois, manifestou-se e votou contra o insignificante abolicionismo de Paranhos, e isto concorda, ainda, com o proceder do mesmo Paranhos, que no Conselho de Estado se manifesta contra as insinuações da coroa – fazer-se alguma coisa no sentido da Abolição, e, três anos depois, aceita, chefe conservador, fazer votar, contra o seu partido, o projeto que a coroa preparava... A seu tempo, será apreciada a qualidade de abolicionismo da mesma coroa.



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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-ii-manoel-bonfim/


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