terça-feira, 24 de março de 2020

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Terceiro — Em 1817




IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola




Aquele dia foi uma permanente aurora. Toda a natureza parecia repousar e sorrir. Os jardins de Saint-Cloud exalavam doces perfumes; a viração do Sena agitava brandamente as folhas; os ramos gesticulavam no ar; as abelhas saqueavam os jasmins; as borboletas pousavam continuamente nas flores; e no augusto parque do rei de França via-se um bando de vagabundos: os pássaros.

Os quatro alegres pares resplandeciam confundidos com o sol, os campos, as flores e as árvores.

E, no meio desta comunhão de paraíso, falando, cantando, correndo, dançando, caçando borboletas, colhendo flores, molhando os rosados braços no orvalho das plantas, todas recebiam, de quando em quando, beijos de todos, excepto Fantine, encerrada na sua vaga resistência pensativa e arisca, porque amava.

— O que tens, Fantine? Estás hoje com um ar tão esquisito! — dizia-lhe Favorita.

Eis como é o prazer. Estas passagens de pares venturosos são um profundo apelo à vida e a natureza, fazendo desabrochar de tudo carícias e luz

Houve uma fada que fez os prados e as árvores expressamente para os namorados. Daí provém a eterna escola campesina dos amantes, que sem cessar recomeça e que há de durar enquanto houver campos e estudantes. Daí a popularidade da Primavera entre os pensadores. O patrício e o plebeu, o duque, o par e o pobre, as pessoas da corte e as da cidade, como noutro tempo se dizia, são todos súbditos desta festa. Todos riem, todos se procuram, há uma claridade de apoteose iluminando a atmosfera. Que transfiguração produz o amor! No campo até os escreventes de tabelião parecem deuses. E os gritinhos, as lutas na relva, os abraços furtivos, a linguagem enigmática que se assemelha a uma melodia, as adorações que se mostram no modo de pronunciar uma sílaba, as cerejas arrancadas por uma boca à outra, tudo isto flameja e passa no meio de resplendores celestes.

As raparigas bonitas tornam-se graciosamente pródigas de si mesmas. Parece que aquilo jamais acabará. Os filósofos, os poetas, os pintores, contemplam estes êxtases e não sabem o que hão-de fazer deles, tal é o seu deslumbramento. — A partida para Cythera! — exclama Wateatr, Lancret, o pintor da plebe, contempla os burgueses arrebatados para o espaço; Diderot estende os braços a todos estes amores de um dia e d’Urfe mistura-lhes druidas.

Depois do almoço, os quatro pares foram ver o que então se chamava o «Canteiro do Rei», uma planta há pouco chegada da Índia, cujo nome nos não lembra agora, e que naquela ocasião atraía Paris inteiro a Saint-Cloud. Era um esquisito e gracioso arbusto de haste elevada, cujos inumeráveis ramos, delgados como fios, sem folhas, eram cobertos de prodigiosa quantidade de pequeninas rosas brancas, o que dava ao arbusto o aspecto de uma cabeleira coberta de flores. Havia sempre grande multidão a admirá-lo.

Visto o arbusto, Tholomyés exclamara:

— Ofereço jumentos!

E, ajustando o preço com um burriqueiro, tinham voltado por Vanves e Issy, onde houve incidente.

O parque, propriedade nacional, possuído nesta época pelo fornecedor Bourguin, estava aberto. Entraram e visitaram na sua gruta o anacoreta autômato, experimentaram os efeitos misteriosos do famoso gabinete dos espelhos, lasciva armadilha digna de um sátiro transformado em milionário, ou de Turcaret metamorfoseado em Priapo. Baloiçaram robustamente o grande balanço preso aos dois castanheiros celebrados pelo abade de Bernis.

Enquanto as raparigas se baloiçavam uma após outra, o que fazia esvoaçar as saias entre risadas universais, o toulousiano Tholomyés, meio espanhol, visto Toulouse ser prima de Tolosa, pôs-se a cantar numa melancólica melopeia a antiga canção galega, provavelmente inspirada por alguma bonita rapariga, voando em toda a força sobre uma corda presa a duas árvores:


Soy de Badajoz,
Amor me llama
Toda mi alma
Es en mis ojos
Porque enseñas
A tus piernas.


Só Fantine recusou baloiçar-se.

— Gosto pouco de quem se faz assim importante! — murmurou Favorita agastada.

Abandonados os jumentos, novo prazer: passaram o Sena num barco, e de Passy dirigiram-se a pé para a barreira da Estrela. Aquelas alegres criaturas estavam a pé desde as cinco horas da manhã. «Quem sente cansaço ao domingo?» dizia Favorita. «Ao domingo não trabalha a fadiga.»

As três horas, os quatro pares, arquejantes de prazer, trepavam pelas montanhas russas, edifício singular que ocupava então as alturas de Beaujon e cujo tortuoso lineamento se avistava por cima das árvores dos Campos Elíseos.

De vez em quando, Favorita exclamava:

— E a surpresa? Queremos essa surpresa!

— Tenham paciência — respondia Tholomyés.






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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, III — A quatro e quatro
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)




OS MISERÁVEIS





a missão de devolver ao homem a fé no próprio homem



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