quarta-feira, 4 de março de 2020

parábolas de uma professora: o bufê das comidas invisíveis

parábolas de uma professora


o bufê das comidas invisíveis
Ensaio 012A – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




o curioso para mim não é o medo nem a falta de audácia da professora que raciocina e ensina só com o conhecimento, um belo exemplar do professor reacionário sentado num perfeito vazio – quis ser professor, e agora, josé? não consegue ser e culpa tudo ao seu redor – acomodada com a própria indiferença, vazia e desenamorada de si mesma, diz que foi enganado, Mentira! Enganou-se porque quis, nunca quis pôr mãos à obra!

a obra da construção do homem e da mulher nova de maneira nova, diferente dos séculos e séculos, Mas ninguém sabe, grita uma voz da multidão de professoras e professores, Mentira!, respondo

Mentira? E qual é esse jeito novo?, fico em silêncio, Viu? Nem você sabe!

O que eu sei? Eu sei que o jeito novo não é o velho, cansado e repetitivo, jeito sentado nos ditados, cópias e decorebas. Claro, as crianças, jovens e adultos têm que aprender, mas precisamos aprender juntas.

Pois vá em frente, queridinha. Essa causa está desgraçada. A terra ficou plana, ler é perda de tempo, o funk virou poesia pedagógica e a curiosidade se satisfaz com o celular.

para mim, o estranho é continuarmos abraçadas na reprodução assexuada e severa do conhecimento sem sentido, um saber que esbraveja sozinho com exaustos, infelizes e frustradas alunos sentadas

estamos cansados antes de sairmos de nossas casa, os pés exaustos e as mãos sozinhas – oferecidas dadivosamente para essa gente que nos procura, mas não sabemos ser o vento da doçura e do encanto que educa com dignidade e esperança – com nosso bufê de comidas invisíveis

não somos o milagre do alimento, mas poderíamos ser o conforto do acolhimento

quanto mais fazermos nada para aumentar nosso apetite pedagógico mais desenamoramos da pedagogia da esperança para os oprimidos, surrupiadas e conformadas com a teoria livresca que iríamos escrever – novas e libertárias fórmulas pedagógicas –, mas nunca escrevemos

talvez, amanhã

primeiro, perdemos a pressa – tempo não vai faltar  

depois, ficamos longe demais das leituras e sonhos, e hoje, não reconhecemos a nós mesmas, esquecemos do passado o presente e ficamos minguadas, deslumbrados e deslinguadas

vencidas pelas conveniências do mercado político

não satisfaz mais o índice de difusão da amorosidade, talvez por isso, seja tão fácil ao terrorismo do mercado – marionetes que lutam para conservar a riqueza nas mãos dos seus mentores pela ação dos seus atores políticos, econômicos, midiáticos e religiosos – atacam, humilham e intimidam a educação pública! entre risadas e gritos apocalípticos, não sentem nenhum embaraço em anunciar, A escola pública só dá prejuízo!, gente assim existe, não lhes basta menos que intimidar e mentir para dominar a esperança coletiva, Educação não é investimento é gasto!, repetem e repetem e repetem

e nós? paralisamos atônitas, até que chega nossa vez de repetir, repetir, e tornar a dizer o que já dizemos ontem, e antes de anteontem, Fomos enganadas!, continuamos repetidoras, E a riqueza fica com quem?

é fácil ver, basta ter olhos e querer ver a burguesia em seus condomínios fechados, usufruindo o lucro daltônico do sangue verde, e não se iludam... não existe tratamento, estão acuados e hermeticamente fechados, a sensibilidade dessa gente de sangue verde adora confundir caridade com solidariedade, precisamos enxergar além dos políticos e entender quem puxa as cordinhas destes marionetes 

precisamos da coragem para sair da cama e encarar as mesmas coisas repetitivas e decorativas para diminuir índices tão altos de analfabetismo, êxodo escolar, desânimo e indiferença, outra e outra vez – sem um tratamento justo para nossos desejos e sonhos –, enquanto a burguesia dos condomínios fechados reclama que a educação pública só dá prejuízo e já temos o que merecemos

eu sei que estamos encerradas em mentiras e se tornou impensável desmenti-las: a ditadura dos dogmas e do funk

é uma tarefa muito difícil compreender esses tempos das mentiras instantâneas em que se fica sozinha como a agulha em um palheiro ou famosa e esquecida cedo demais

... brincadeira ou não, espero que não tenha sido uma zombaria essa possibilidade do diálogo com alunos e alunas sobre o que aprender, sobre o que precisamos ensinar. Isso é modernidade, isso é educar.

o marko se impõe além dos gesto sem exageros, a voz perfeitamente disciplinada, cordial, nenhuma vaidade, se impõe pelas palavras e suas ações – gritos ou ameaças não fazem parte do seu repertório de dissuasão –, pelo menos, não escutamos as vozes do paulos, markos e camilas, em sala de aula, cada um com seus jeitos, mas sempre dialogando 

gostaria muito de ser uma das suas alunas

Marko, você acredita que a nossa vida está se desenvolvendo e aperfeiçoando? E os nossos jovens? E o funk? E o rock?

O rock é eterno, respondeu, mas não precisamos negar o funk, e todas sorrimos, se é dizendo a palavra do funk que homens e mulheres transformam o diálogo com o mundo precisamos dialogar com o funk.

a cabayba é um desafio constante, é preciso escutá-la, só escutando podemos confrontar as ideias, sei que, muitas e muitas vezes, dá um cansaço e até desespero, como puderam destruir tudo em tão pouco tempo e por que permitimos

sem desculpas e sem perdão nos deixamos desviar, é penoso descobrir que o autoritarismo é um projeto de muitas de nós, um desejo que se mostra nas táticas das conversas, na descarga sanitária do mau humor, na ironia vulgar que nos mostra como somos – claro, percebemos isso se queremos decifrar esse duelo entre o diálogo e o esquecimento póstumo – enquanto o golpe só espera o silêncio e a neutralidade covarde para dar o golpe

ele também se apoia no mexerico; assim, ninguém se responsabiliza por nada porque nada é muito sério, o mexerico explica sem explicar nada do que escolheu não explicar, apenas faz insinuações, fuxico e encenações

até que falamos contra nós mesmas – intempestiva e impensadamente – com medo, um estranho medo que nos faz vítimas e opressoras

preferimos agarrar o jovem que nos assaltou e espancá-lo até o limite da vingança, esquecidas que silenciamos – e colaboramos sobre isso tudo que está acontecendo: desemprego, fome, desilusão, medo 

exigimos dos miseráveis que fiquem onde estão e não se atrevam sair

sim, o rock é eterno

o marko se mantém sorrindo, sereno, firme e disposto no embate

transporto meus pensamentos curiosos – soltos pelo ar e sem palavras, sim sou uma das silenciosas – enquanto recordo acusações que a educação popular tornaria a escola comunista e sem gosto, sem cores democráticas, Que horror, Vamos todas rachar lenha no mato, A coisa toda vai mal, O que dizer a esses parasitas nojentos, Ditadores, Não podemos ensinar alunos indigentes e abandonados, Querem demais de todas nós, Delinquentes pequenos e juvenis, Sujos e famintos!

sim, a fome é eterna

E a nossa fome? A nossa saúde?

Concordo, Sofhya. Nós também temos o nosso direito a saúde.

a primeira necessidade da vida é o alimento, depois o acolhimento

e o que vejo? tristeza e sofrimento e muitas incertezas, a desesperança

vejo as administrações conservadoras impedindo e dificultando toda forma de organização e de representação popular, aqui, nesta escola, todos os movimentos democráticos e de inclusão precisam ser feitos à revelia dos governantes conservadores

vejo a mim, minhas colegas e meus colegas, bem crescidinhos, educadas nos preceitos mais significativos da academia: severas, controladoras, conservadoras e preconceituosas

estou errada? gostaria de estar errada

e se estou errada, onde o caminho da curiosidade, alegria, desejo e amorosidade foi esquecido, quando e por quê? como chegamos a isso

jovens professores assustados com a teoria da terra plana – teoria válida para o século XV, lembram... 1492... 1500... as grandes navegações rumo ao desconhecido abismo dos mares –, alunas com medo do eclipse do sol e alunos mansos e tristes castrados em seus cadernos limpos e higiênicos de copiar, ainda carrego uma vaga lembrança dos meus cadernos com capa ou sem capa, mas com a teimosia curiosa e criativa das perguntas e mistérios a serem decifrados

para enfrentar o medo sem sentido – desenraizado do conhecimento – precisamos da curiosidade que ilumina com suas perguntas e desconserta o silêncio sem sentido, o sossego servil e conivente dos quarteis e conventos

que delícia a infância e sua curiosidade, que tristeza a infância morrendo em algum curral bíblico ou escolástico, que saudade dos sonhos que embalavam a infância com seus pardais ligeiros e tagarelas, balbúrdias distraídas e arrebatadas

estou errada? não sei

não quero ser apenas uma resposta reacionária da escola com sua lista de obrigações, regras gramaticais e ortográficas enquanto enchemos o porão da infância – o quartinho dos fundos – com continhas matemáticas, gritos, azedumes, ressentimentos de mim mesma, por ter desistido da infância entusiasmada, descuidada, imperfeita, inventiva, em nome da organização religiosa-cívico-militar

não que ser uma professora preta que ajuda ensinar negros soldados que matam jovens pretos, não quero ser a professora que apertou esse gatilho nem a professora que vira o rosto indiferente e acredita que isso tudo não lhe interessa, lhe basta ensinar ler, copiar e fazer continhas que estarão salvos

exageros? pode ser 

espero que sim, mas acho que não – afinal, nada deveria ser como é para sempre , tudo pode ser diferente, mas quem uniformiza quem? a esperança que ilumina a multidão vai e vem em tentativas desesperadas deste montão aglomerado do povo, uma multidão que percebe onde está a escuridão e não acredita no que está vendo, aposta na escuridão intransigente das ofensas, argumentos que não debatem com o contraditório, palavrório de intrigas, mentiras e ameaças

não, não fomos enganadas, enganou-se quem quis e continua se enganando quem quer

não somos demônios nem anjos

mas quem quer entender? quantas somos

não sei, mas vejo que muitas assistem ao esvaziamento da educação pública e nem o instinto da autoconservação – legítima defesa do seu trabalho digno – ou o bom senso conseguem mobilizar contra o canto da sereia conservadora que nos chama, Entreguem-se...

não tenho medo da morte e não quero apodrecer pelos cantos, em silêncio, esquecendo que fui esquecida, perdendo pedaços – tortinha ou tontinha –, peço que me acabem num gesto de humanidade, mas mesmo faminta – o tamanho do meu apetite pela vida me impede que eu me entregue – libertem as dores e as saudades da minha alma solidária, enterrem meu corpo deselegante da idade indelicada com alguma novela balzaquiana

brincadeira, gente

quero ler a mafalda pela eternidade

que delícia, seria muito triste saber ler e não querer ler

a leitura não será só um passatempo, me fará ver o que sou, escutar o que não sei, rir das minhas urgências, chorar meus arrependimentos, duvidar das minhas certezas, sentir o amor na sua plenitude dono de mim

qual o livro que você quer ler na eternidade? não sabe – ah, quer levar o iphone... hum... acho que não tem carregador nem tomada elétrica, parece que o cara é das antigas e tá puto com essas loucuras, Alguém viu meu carregador, O amigo pode me emprestar? Esqueci o meu lá, O seu carregador é igual ao meu, Virgem santinha, perdi o cabo, Aqui é 220 ou 110, É bivolt, Hum... 

bem, além dos meus livros amados, gostaria de ouvir pela eternidade coltrane, dizzy, charlie, miles, billie, stan, chet, piazzolla, charles, nina, ella, tom, louis, sarah – naquelas horas da noite implacável das despedidas, caso eu as tenha –, quero ouvir-me dizendo a poesia de pessoa, vinícius, drummond, neruda, florbela, mistral, baudelaire, federico, benedetti, dias, algum trecho, qualquer trecho, de dostoiévski, camus, cortázar, galeano, machado, paulo freire, stendhal, juan rulfo, bomfim, simone, meu coração era uma primavera que passou te amando, esperando enquanto reclamava e contava histórias, poesias e cantos, comecem com clementina de jesus e o canto dos escravos, e continuem, não parem

declamem as poesias que quiserem, toquem o chico, elis, elza, nelson, altemar, bethânia

e digam adeus, vou estar sorrindo






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