segunda-feira, 23 de março de 2020

O Brasil Nação - V2: §§ 73-a – Significação da tradição de classe - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8



A Revolução Republicana



§ 73-a – Significação da tradição de classe




Se há um gênio nacional-brasileiro, esse ainda não teve realização pois que a nação continua abafada, escravizada, pela classe dirigente, como era dantes pelo governo da metrópole, de quem são, os mesmos dirigentes, herdeiros diretos e continuadores imediatos. Por isso mesmo, tratando de – tradições nacionais, não pensamos, de modo nenhum, na tradição da política dirigente até hoje dominante. As tradições nacionais manifestadas somente com os movimentos de solidariedade em torno da pátria idealizada, e em revolta contra a pressão dominante; estas correspondem justamente ao espírito de reivindicações contra a tradição política: aquelas valem como inspiração de justiça e liberdade; esta, como tendência ao despotismo vil, insincero e espoliador. E vale, ainda, por preconceitos vários, numa ideologia reles e mesquinha, torpe justificativa do ignaro governo que tem tido esta pátria. Será preciso notar explicitamente tais preconceitos, assinalando, ao mesmo tempo, os seus desastrosos efeitos concretos. Antes, porém, para não deixar no vazio essa resenha, torna-se preciso dar a significação do fato – tradição, referido a classes. 

Desde que uma classe ativa – dirigentes, exército, mercantis... se caracteriza em manifestações próprias, tal atividade se define por uma generalização: mentalidade, conceitos, sentimentos, e processos de conduta. São formas ideológicas e morais, que se organizam e vivem, com todas as propriedades da vida; tendência de expansão, tenacidade de conservação... Vivazes, impositivos sobre as consciências que entram na ação da classe, e que por ela vivem, esses conceitos, sentimentos e processos se incorporam, em cada caso, à respectiva tradição. A não ser num movimento de explícita revolta, com o intuito formal de reforma, é impossível ao indivíduo pertencer a uma classe, ser solidário dos seus destinos, e furtar-se ao influxo da respectiva tradição, que é como ativo aglutinante das consciências, enleando-as, fundindo-as, dando-lhes o feitio comum, característico. Imagine-se alguém – militar, marinheiro, sacerdote, comerciante, juiz, burocrata... e que faça a vida em atitudes e ideias divergentes da generalidade da sua classe: tornar-se-á incompatível com a própria função adotada; será suplantado, ou aniquilado pelos companheiros cuja fortuna depende disto mesmo a que se chama – ESPÍRITO DE CLASSE, e que é a expressão da respectiva tradição. Em verdade, toda classe é um meio humano, especial, cuja estrutura viva se impõe na fórmula intransigente – assimila-me, ou elimino-te!... Quando se trate de indivíduos criados e feitos no influxo da classe, a assimilação é de sempre; quando ele venha de meio ou classe diferente, o próprio movimento de atração para essa outra classe traduz a sua íntima afinidade com o espírito a que se incorporou. Pode ser que a pessoa dantes se inspirasse de princípios políticos e sociais bem diferentes dos dominantes na nova classe, ou, mesmo, radicalmente opostos: desde que venceu as diferenças morais e mentais, desde que entrou para o novo meio, e o aceitou qual ele é, seguem-se as coisas como se o indivíduo a houvesse pactuado formalmente com o regime e as atitudes da classe adotada. E, na generalidade dessas adoções, nem há diferenças a vencer. Em todos os grupos humanos se encontram dessas criaturas sem estrutura moral íntima, como sem princípios estáveis nem convicções. Necessidade de fazer a vida, ambições neutras, atiram tais indivíduos para as funções e as classes que parecem oferecer-lhes uma carreira pronta e uma boa situação; e, aí, ei-los tanto mais explícitos e formais nos conceitos e nas formas da classe, quanto são vazios de convicções e de princípios próprios. Nem poderia ser de outra forma, porque a ação de cada um, como membro da classe, pressupõe normas correntes de proceder e que não podem ser inventadas no momento; porque em cada individualidade se reflete a condição da solidariedade no grupo, donde resulta que, finalmente, as condutas pessoais, na atividade corrente, ajustam- -se num molde geral. Em tais condições, se o indivíduo não é, bem nitidamente, um caráter, terá como feitio pessoal esse molde geral. 

Se tanto acontece em outras classes, que não existem para contínua e solidária ação coletiva, quanto mais na dos políticos, que além da unificação de destinos, devem solidarizar e harmonizar a ação para cada caso, em cada campanha. E, por isso, não há verdadeiras reformas sociais, com modificações radicais nos intuitos e nos processos políticos de um povo, senão por meio de revoluções completas, em que haja, além da substituição de programas, e de processos, a de gentes; por isso mesmo, serão frustrados todos os movimentos que deixem o poder e a máquina administrativa com os antigos servidores, em quem se refaz toda a substância do antigo regime. Em razão desse império das tradições de classe, e porque os primeiros dirigentes brasileiros foram continuadores imediatos da tradição política portuguesa-bragantina, nos que se lhes seguiram, encontramos todos os defeitos e vícios dessa política, que moldou a dos governantes brasileiros – Império, ou República. 

Não há quem tenha meditadamente analisado a miséria da nossa vida política, que não haja apontado, como causa de tudo, as falhas características dos dirigentes, e que são os vícios e defeitos em que se define a respectiva tradição. Subimos das abjeções de hoje, e vamos até a carência e os crimes dos governos da metrópole sobre o Brasil; perscrutamos os males em que atualmente se amesquinha esta pátria; e deparamos, como fonte de tudo, com as próprias formas de pensar e de sentir dos desfrutadores do governo. Então, se lhes catamos a alma, apenas encontramos: vaidade de mandonismo, tendência ao uso despótico do poder, incapacidade para a prática da justiça, incompreensão do papel da liberdade, prepotência e intolerância, incompatíveis com a cooperação necessária na verdadeira política de um governo livre; incompreensão das responsabilidades, cegueira para a realidade, inabilidade, no apurar dos fatos para a legítima inspiração política; nulidade de concepções sintéticas orientadas pelas necessidades positivas; ausência de senso crítico, substituído por estúpidos e maléficos preconceitos, mascarados das leituras mal-assimiladas; carência de preparo e de segura ideologia; grosseria de inspirações, sedução pelas riquezas e a grandeza material; tirania sobrenadando o servilismo, a insinceridade, o ânimo de transigências, a falsidade na corrupção, até a degradação e a ignomínia... 

O exame dos principais aspectos desta tradição, remanescente vivo do bragantismo, será demonstração necessária, objeto deste capítulo.





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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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Leia também:

O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário (fim)
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O Brasil Nação - v2: § 65 – Os escravocratas submergidos - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana (2) - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 68 – A revolução para a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 70 – A farda na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 71 – O positivismo na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 72 – A reação contra a República - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - V2: §§ 74 – A descendência de Coimbra - Manoel Bomfim




"Por que não se fala em Manoel Bonfim?''




Manoel Bomfim, "o rebelde esquecido""Por que não se fala em Manoel Bomfim?” (40min - 2019), de Carlos Pronzato, seguido de debate com Aluizio Alves Filho e José Geraldo dos Santos.

"Manoel Bomfim integra uma geração de autores que nas primeiras décadas do século XX trataram de entender as raízes do Brasil, explicá-lo como um todo, através de um apanhado global dos fundamentos da nacionalidade, e desta situada no contexto da América Latina. Diferentemente de autores como Oliveira Vianna, Sérgio Buarque, Azevedo Amaral, Nestor Duarte, Gilberto Freyre, Silvio Romero e outros, em sua maioria bem posteriores a Bomfim, o que vai acontecer com este é que será esquecido, torna-se um “ensaísta esquecido”

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