Machado de Assis
Dom Casmurro
Capítulo LXXXV
O Defunto
Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louça. A loja era escura, e o interior da casa menos luz tinha, agora que as janelas da área estavam cerradas. A um canto da sala de jantar vi a mãe chorando; à porta da alcova duas crianças olhavam espantadas para dentro, com o dedo na boca. O cadáver jazia na cama; a cama...
Suspendamos a pena e vamos à janela espairecer a memória. Realmente, o quadro era feio; já pela morte, já pelo defunto, que era horrível... Isto aqui, sim, é outra coisa. Tudo o que vejo lá fora respira vida, a cabra que rumina ao pé de uma carroça, a galinha que marisca no chão da rua, o trem da Estrada Central que bufa, assobia, fumega e passa, a palmeira que investe para o céu, e finalmente aquela torre de igreja, apesar de não ter músculos nem folhagem. Um rapaz, que ali no beco empina um papagaio de papel, não morreu nem morre, posto também se chame Manduca.
Verdade é que o outro Manduca era mais velho que este, pouco mais velho. Teria dezoito ou dezenove anos, mas tanto lhe darias quinze como vinte e dois, a cara não permitia trazer a idade à vista, antes a escondia nas dobras da... Vá, diga-se tudo; é morto, os seus parentes são mortos, se existe algum não é em tal evidência que se vexe ou doa. Diga-se tudo; Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrível. Quando eu vi, estendido na cama, o triste corpo daquele meu vizinho, fiquei apavorado e desviei os olhos. Não sei que mão oculta me compeliu a olhar outra vez, ainda que de fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, até que recuei de todo e saí do quarto.
– Padeceu muito! suspirou o pai.
– Coitado de Manduca! soluçava a mãe. Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi-me. O pai perguntou-me se lhe faria o favor de ir ao enterro; respondi com a verdade, que não sabia, faria o que minha mãe quisesse. E rápido saí, atravessei a loja, e saltei à rua.
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Dom Casmurro - Animação
DOM CASMURRO
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Texto de referência:
Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.
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Leia também:
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Dom Casmurro: Capítulo LXXVI / Explicação
Dom Casmurro: Capítulo LXXVII / Prazer das Dores Velhas
Dom Casmurro: Capítulo LXXVIII / Segredo por Segredo
Dom Casmurro: Capítulo LXXIX / Vamos ao Capítulo
Dom Casmurro: Capítulo LXXX / Venhamos ao Capítulo
Dom Casmurro: Capítulo LXXXI / Uma Palavra
Dom Casmurro: Capítulo LXXXII / O Canapé
Dom Casmurro: Capítulo LXXXIII / O Retrato
Dom Casmurro: Capítulo LXXXIV / Chamado
Dom Casmurro: Capítulo LXXXVI / Amai, Rapazes!
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Machado de Assis
"imaginem os tormentos que invadem o coração que ama e desconfia, e desconfiado... adora"
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