sexta-feira, 6 de março de 2020

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XLI - Asas de Ouro

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







ASAS DE OURO
                                     (Aos anos de Horácio de Carvalho)


Oh! vinte anos enfim! – Chegaste ao cume
Da glória e mais do amor – desses carinhos
Que a alma recebe no frescor dos ninhos,
Nos roseirais abertos em perfume.

Que te estrele de sonhos em cardume
Essa cabeça doce como arminhos,
E te gorjeiem muitos passarinhos
Dos teus olhos leais no vivo lume.

Bom dia! jovem rei! noivo aloirado
Da primavera que auroresce o prado,
Noivo da mocidade e da alegria.

Uma chusma de trêmulos canários
Flavos, trinantes, vindos de céus vários
Vá ao teu quarto gorjear: Bom dia!

                         
1887








JESUS


Jesus que amava as mães e as criancinhas,
E que nasceu tão cândido e risonho,
Tendo no olhar a placidez de um sonho
Mais leve do que um sonho de andorinhas;

Esse Jesus que o orgulho das rainhas
Abate e quebra com um ar tristonho
Na cruz – ante esse séquito medonho
De sombras que entristece as criaturinhas;

Quando com seus apóstolos ceava,
Jesus, que os bons e os fracos adorava,
Quando bebia gota a gota o vinho;

Não sabia, por certo, o Jesus casto
Que neste mundo enganador e vasto
Só há bem poucas gotas de carinho.






TROMPA DE ROLDÃO


Rude e membrudo deus peludo, hirsuto,
Convulso como um torvo Laocoonte,
Em que mundo, em que céu, em que horizonte
Foste gerado, assim horrendo e bruto?

Que fruto podre, que maldito fruto
Envenenado, d’algum pétreo monte
Tragaste – que só tens no olhar, na fronte
E dentro d’alma o mais tremendo luto?

Que devastadas e longínquas terras,
Que sociedades, religiões e guerras
Deram-te à Dor o aspecto assim profundo?

Quem és, ó deus peludo, ó deus nefando?...
Ah! és o homem, bem sei, e vens calçando
A pata de Satã por sobre o mundo!







livre!





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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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