quarta-feira, 4 de março de 2020

Pedagogia do Oprimido - 3. A dialogicidade...

Paulo Freire






“educação como prática da liberdade”:

alfabetizar é conscientizar 



AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



3. A dialogicidade – essência da educação 
como prática da liberdade




Ao iniciar este capítulo sobre a dialogicidade da educação, com o qual estaremos continuando as análises feitas nos anteriores, a propósito da educação problematizadora, parece-nos indispensável tentar algumas considerações em torno da essência do diálogo. Considerações com as quais aprofundemos afirmações que fizemos a respeito do mesmo tema em Educação como Prática da Liberdade [1].


[1] Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967.


Quando tentamos um adentramento no diálogo, como fenômeno humano, se nos revela algo que já poderemos dizer ser ele mesmo: a palavra. Mas, ao encontrarmos a palavra, na análise do diálogo, como algo mais que um meio para que ele se faça, se nos impõe buscar, também, seus elementos constitutivos.

Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimensões; ação e reflexão, de tal forma solidárias, em uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra. Não há palavra verdadeira que não seja práxis [2]. Daí, que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo [3].


[2] (ação)
Palavra --------------------------- = Práxis
(reflexão)

(da ação) = palavreria, vebalismo, blablablá
Sacrifício ----------------------------------------------------------
(de reflexão) = ativismo.


[3] Algumas destas reflexões nos foram motivadas em nossos diálogos com o prof. Ernani Maria Fiori.


A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma em palavreria, verbalismo, blablablá. Por tudo isto, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois que não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação.

Se, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, com o sacrifício da reflexão, a palavra se converte em ativismo. Este, que é ação pela ação, ao minimizar a reflexão, nega também a práxis verdadeira e impossibilita o diálogo. 

Qualquer destas dicotomias, ao gerar-se em formas inautênticas de existir, gera formas inautênticas de pensar, que reforçam a matriz em que se constituem. 

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá- lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.

Não é no silêncio [4] que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação- reflexão.

[4] Não nos referimos, obviamente, ao silêncio das meditações profundas em que os homens, numa forma só aparente de sair do mundo, dele “afastando- se" para “admirá-lo” em sua globalidade, com ele, por isto, continuam. Daí que estas formas de recolhimento só sejam verdadeiras quando os homens nela se encontrem "molhados” de realidade e não quando, significando um desprezo ao mundo, sejam maneiras de fugir dele, numa espécie de “esquizofrenia histórica”.


Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê- la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. 

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá -lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. 

Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue.

Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. 

Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar- se simples troca da, idéias a serem consumidas pelos permutantes.

Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer- se com a pronúncia do mundo, nem com buscar a verdade, mas com impor a sua. 

Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista do outro. A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens. 




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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... Educação dialógica e diálogo

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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



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