OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
continuando...
Do alto de Monte Santo
Do alto da Serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas, nota-se, como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas de serras ao invés de se alongarem para o nascente, medianas aos traçados do Vaza-Barris e Itapicuru, formando-lhes o divortium aquarum, progridem para o norte.
Mostram-se as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e fundindo-se na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros. Unificadas, aliam-se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando-se as massas do Cambaio, de onde irradiam as pequenas cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de Jeremoabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhadas pelo Vaza-Barris em Cocorobó, inflete para o poente, repartindo-se nas da Canabrava e Poço de Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, elíptica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos — e daí para o norte de novo se dispersam e descaem até acabarem em chapadas altas à borda do S. Francisco.
Deste modo, no ascender para o norte, procurando o chapadão que o Parnaíba escava, aquele talude dos planaltos parece dobrar-se num ressalto, perturbando toda a área de drenagem do S. Francisco abaixo da confluência do Patamoté, num traçado de torrentes sem nome, inapreciáveis na mais favorável escala, e impondo ao Vaza-Barris m curso tortuoso do qual ele se liberta em Jeremoabo, ao infletir para a costa.
Este é um rio sem afluentes. Falta-lhe conformidade com o declive da terra. Os seus pequenos tributários, o Bendegó e o Caraíbas, volvendo águas transitórias, dentro dos leitos rudemente escavados, não traduzem as depressões do solo. Têm a existência fugitiva das estações chuvosas. São, antes, canais de esgotamento, abertos a esmo pelos enxurros — ou correntes velozes que, adstritas aos relevos topográficos mais próximos, estão, não raro, em desarmonia com as disposições orográficas gerais. São rios que sobem. Enchem-se de súbito; transbordam, reprofundam os leitos, anulando o obstáculo do declive geral do solo; rolam por alguns dias para o rio principal; e desaparecem, volvendo ao primitivo aspecto de valores em torcicolos, cheios de pedras, e secos.
O próprio Vaza-Barris, rio sem nascentes em cujo leito viçam gramíneas e pastam os rebanhos, não teria o traçado atual se corrente perene lhe assegurasse um perfil de equilíbrio, através de esforço contínuo e longo. A sua função como agente geológico é revolucionária. As mais das vezes cortado, fracionando-se em gânglios estagnados, ou seco, à maneira de larga estrada poenta e tortuosa, quando cresce, empanzinado, nas cheias, captando as águas selvagens que estrepitam nos pendores, volve por algumas semanas águas barrentas e revoltas, extinguindo-se logo em esgotamento completo, vazando, como o indica o dizer português, substituindo-lhe com vantagem a antiga denominação indígena. É uma onda tombando das vertentes da Itiúba, multiplicando a energia da corrente no apertado dos desfiladeiros, e correndo veloz entre barrancos, ou entalada em serras, até Jeremoabo.
Vimos como a natureza, em roda, lhe imita o regime brutal — calcando-o em terreno agro, sem os cenários opulentos das serras e dos tabuleiros ou dos sem-fins das chapadas — mas feito um misto em que tais disposições naturais se baralham, em confusão pasmosa: planícies que de perto revelam séries de cômoros, retalhados de algares; morros que o contraste das várzeas faz de grande altura e estão poucas dezenas de metros sobre o solo, e tabuleiros que em sendo percorridos mostram a acidentação caótica de boqueirões escancelados e brutos. Nada mais dos belos efeitos das denudações lentas, no remodelar os pendores, no desapertar os horizontes e no desatar — amplíssimos — os gerais pelo teso das cordilheiras, dando aos quadros naturais a encantadora grandeza de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão longínqua e surpreendedora de cores...
Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta travessia em que supõe pisar escombros de terremotos, as ondulações mais próximas de Canudos.
Do alto da Favela
Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar, para abranger de um lance o conjunto da terra. — E nada mais divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas... Mas a reunião de tantos traços incorretos e duros — arregoados divagantes de algares, sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas, criava-lhe perspectivas inteiramente novas. E quase compreendia que os matutos crendeiros, de imaginativa ingênua, acreditassem que “ali era o céu...”
O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os — todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se em plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande.
Em roda uma elipse majestosa de montanhas...
A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de Cima, próxima, mais íngreme e alta; a de Cocorobó, no levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas do Calumbi ao sul; as grimpas do Cambaio, no correr para o poente; e, para o norte, os contornos agitados do Caipã — ligam-se e articulam-se no infletir gradual traçando, fechada, a curva desmedida.
Vendo ao longe, quase de nível, trancando-lhe o horizonte, aquelas grimpas altaneiras, o observador tinha a impressão alentadora de se achar sobre platô elevadíssimo, páramo incomparável repousando sobre as serras.
Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d’água, divagando, serpeantes...
Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas via-se uma depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme de casebres.
continua 012...
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Leia também:
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I A entrada do sertão
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Primeiras impressões
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: III O clima
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Euclides da Cunha
Volume 1
A TERRA
II
continuando...
Do alto de Monte Santo
Do alto da Serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas, nota-se, como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas de serras ao invés de se alongarem para o nascente, medianas aos traçados do Vaza-Barris e Itapicuru, formando-lhes o divortium aquarum, progridem para o norte.
Mostram-se as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e fundindo-se na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros. Unificadas, aliam-se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando-se as massas do Cambaio, de onde irradiam as pequenas cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de Jeremoabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhadas pelo Vaza-Barris em Cocorobó, inflete para o poente, repartindo-se nas da Canabrava e Poço de Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, elíptica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos — e daí para o norte de novo se dispersam e descaem até acabarem em chapadas altas à borda do S. Francisco.
Deste modo, no ascender para o norte, procurando o chapadão que o Parnaíba escava, aquele talude dos planaltos parece dobrar-se num ressalto, perturbando toda a área de drenagem do S. Francisco abaixo da confluência do Patamoté, num traçado de torrentes sem nome, inapreciáveis na mais favorável escala, e impondo ao Vaza-Barris m curso tortuoso do qual ele se liberta em Jeremoabo, ao infletir para a costa.
Este é um rio sem afluentes. Falta-lhe conformidade com o declive da terra. Os seus pequenos tributários, o Bendegó e o Caraíbas, volvendo águas transitórias, dentro dos leitos rudemente escavados, não traduzem as depressões do solo. Têm a existência fugitiva das estações chuvosas. São, antes, canais de esgotamento, abertos a esmo pelos enxurros — ou correntes velozes que, adstritas aos relevos topográficos mais próximos, estão, não raro, em desarmonia com as disposições orográficas gerais. São rios que sobem. Enchem-se de súbito; transbordam, reprofundam os leitos, anulando o obstáculo do declive geral do solo; rolam por alguns dias para o rio principal; e desaparecem, volvendo ao primitivo aspecto de valores em torcicolos, cheios de pedras, e secos.
O próprio Vaza-Barris, rio sem nascentes em cujo leito viçam gramíneas e pastam os rebanhos, não teria o traçado atual se corrente perene lhe assegurasse um perfil de equilíbrio, através de esforço contínuo e longo. A sua função como agente geológico é revolucionária. As mais das vezes cortado, fracionando-se em gânglios estagnados, ou seco, à maneira de larga estrada poenta e tortuosa, quando cresce, empanzinado, nas cheias, captando as águas selvagens que estrepitam nos pendores, volve por algumas semanas águas barrentas e revoltas, extinguindo-se logo em esgotamento completo, vazando, como o indica o dizer português, substituindo-lhe com vantagem a antiga denominação indígena. É uma onda tombando das vertentes da Itiúba, multiplicando a energia da corrente no apertado dos desfiladeiros, e correndo veloz entre barrancos, ou entalada em serras, até Jeremoabo.
Vimos como a natureza, em roda, lhe imita o regime brutal — calcando-o em terreno agro, sem os cenários opulentos das serras e dos tabuleiros ou dos sem-fins das chapadas — mas feito um misto em que tais disposições naturais se baralham, em confusão pasmosa: planícies que de perto revelam séries de cômoros, retalhados de algares; morros que o contraste das várzeas faz de grande altura e estão poucas dezenas de metros sobre o solo, e tabuleiros que em sendo percorridos mostram a acidentação caótica de boqueirões escancelados e brutos. Nada mais dos belos efeitos das denudações lentas, no remodelar os pendores, no desapertar os horizontes e no desatar — amplíssimos — os gerais pelo teso das cordilheiras, dando aos quadros naturais a encantadora grandeza de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão longínqua e surpreendedora de cores...
Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta travessia em que supõe pisar escombros de terremotos, as ondulações mais próximas de Canudos.
Do alto da Favela
Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar, para abranger de um lance o conjunto da terra. — E nada mais divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas... Mas a reunião de tantos traços incorretos e duros — arregoados divagantes de algares, sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas, criava-lhe perspectivas inteiramente novas. E quase compreendia que os matutos crendeiros, de imaginativa ingênua, acreditassem que “ali era o céu...”
O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os — todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se em plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande.
Em roda uma elipse majestosa de montanhas...
A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de Cima, próxima, mais íngreme e alta; a de Cocorobó, no levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas do Calumbi ao sul; as grimpas do Cambaio, no correr para o poente; e, para o norte, os contornos agitados do Caipã — ligam-se e articulam-se no infletir gradual traçando, fechada, a curva desmedida.
Vendo ao longe, quase de nível, trancando-lhe o horizonte, aquelas grimpas altaneiras, o observador tinha a impressão alentadora de se achar sobre platô elevadíssimo, páramo incomparável repousando sobre as serras.
Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d’água, divagando, serpeantes...
Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas via-se uma depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme de casebres.
continua 012...
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Leia também:
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Preliminares
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OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Primeiras impressões
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: III O clima
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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