quarta-feira, 18 de março de 2020

histórias de avoinha: Corta a língua!

mulheres descalças


Corta a língua!
Ensaio 128G – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




Nem pensar, foi a resposta do moringue

a praça tava cada veiz mais piquinina pra tanta gente qui se ajuntava e juntava do chão qui parecia afundá prum abismo dos inferno, nada aliviava o ódio daquela gentarada autoritária – civilizada pelo tronco macho das família – nem a brisa qui chegava das água conseguia aliviá o xexéu de tanta gente sem banho junta, a morrinha parecia fazê aumentá a repulsa com upretu rançoso de sangue, suô e tanto cuspe

Pois eu mesmo solto...

o barão deu dois passo na direção do aprisionado e desatô os nó atráis da cabeça dupretu, as tira do côro apertava com firmeza a mordaça, desagarrô aquela bola feita de pau na boca do rapaz, uma mordaça usada pra impedí upretu de falá, mais tumbém impedia dupretu comê ou bebê, num dava nem pra resmungá e chamá ajuda duspritu da mata, O que aconteceu, negrinho?

a respiração se soltô junto com a babação do sangue qui escorria da boca, um fio da tortura desumana gotejando pra gosto e repulsa da praça, a voz num saia, a garganta tava engasgada e num aparecia, parecia tê medo de se mostrá, Fui no mato...

o capitão-do-mato gritô pra praça toda ouví, sem arredá usóio nem a pressão das corrente agarrada no pescoço e nos punho dupretu, Escutaram? O negro queria fugir!

o barão qui num tinha parado sua atenção naquele pulícia levantô usóio e viu as duas cruiz qui ele carregava, uma toda de prata pendurada no pescoço na corrente grossa tumbém de prata, aquela corrente parecia sê um aviso de importância, a otra cruiz tava queimada no peito ...catá lenha!

É um bicho-do-mato, um grito de maldade chamava otro grito, O criolo vai morrer sabendo que vai morrer, qui animava otro, Antes, ele vai ter que colocar a coleira de ferro, quantas voz é preciso escutá pra sentí vontade de gritá seu ódio, Criolo rebelde precisa castigo exemplar!

o capião-do-mato da milícia do moringue é o capataz na fazenda da pulícia da escravatura; todo erro, piquinino ou crescido, é incumbência do capitão castigá com o devido corretivo e serví como ensinamento

tem pessoa qui nasceu pra ensiná assim, vigiando e punindo

e foi assim qui ele fez, chutô o depoente, Cala a boca, negrinho! A autoridade não perguntou nada pra ocê! Não tem que se atrever abrir o beiço pra dizer o que não foi autorizado!

o escravizado acuado caiu todo enrolado na terra civilizada da villa

a praça soltava os uivo da morte, Uma boa surra antes do castigo! Aqui, a polícia é a gente mesmo, num tinha preço pra gentarada reunida na praça vê um negro espancando upretu, Esse é um negro dos bons! Até pode ser criolo e feder como criolo, mas o coração é branco!

Ei, calma, gritô o barão pra fazê o capitão-do-mato desmontá de cima do aprisionado

o grito do siô barão num evitô otro chute e a gritaria com aprovação do respeitável público villêro, Não adianta prender, a maldade tava solta na cena triste daquela tragédia do castigo de cego, É só perder tempo e recurso com comida e gente para vigiar, Ninguém precisa perguntar nada! É só matar esse criolo fedido, uma enxurrada cheia de amargura, desencanto, ambição, maldade, xingamento, Não, não! Antes de acabar com a raça dele vamos dar uma boa surra! E depois, morte ao inimigo!

o moringue levantô a mão pra tê silêncio, num queria tê qui se alterá, esperô o silêncio, mais num precisô esperá muntu, os villêro é temente à deus e sente munta consideração pelo encarregado da ordem e segurança na villa, é só tá de uniforme pra eles babá na volta das botina

Eu sei, concordo com vosmecês. É só mais um criolo vagabundo se fingindo de coitado. É simples assim, mas a lei precisa ser cumprida. Esse criolo boçal vai ter o seu castigo exemplar e não vai continuar sua sanha de terror e mortes. Eu prometo, será assim, e pronto, tava dito e num ia sê desdito

Mas sinhô Moringue... o rapaz fez o quê?

o cortejo qui ainda tava parado com os grito escutô o eco da purugunta do barão, ele parecia querê demorá no assanhamento de sabê uqui upretu fez e num fez; o moringue, na sua veiz, parecia querê demorá nas resposta pra subí o susto, espaiá o medo com intenção de assombrá, pra depois ensiná os villêro qui a pulícia dele num ia sê dobradiça pra se dobrá pru medo e as lei feita errada, ele é a lei qui protege as pessoa boa duspretu danificado, defeituoso ou estragado

Vou repetir... já que parece ser essa a intenção do sinhô Barão, e fez o seu meió riso fingido, tava adorando aparentá qui tava aborrecido

o barão na sua veiz tava se inventando valentão e atrevido, aparecia como opositô aberto e escancarado pruqui isso precisava sê feito, Eu agradeço a paciência e os esclarecimentos do sinhô Moringue.

o anão fumaça puxô a ponta da casaca do barão inté ele se dobrá, Tenho recado da preta Liberata, Agora, não, respondeu o barão  impaciente, o anão deu otro puxão, A Liberata pediu pra lembrá qui o Moringue é capacho dos dono-de-tudo. E se tem coisa qui eles num gosta é perdê a mercadoria. É pra lembrá o tal Moringue qui upretu é mercadoria qui passô valê tanto quanto a prata e o ouro das mina. Então, é bão o siô usá essa porta de entrá e saí trancada com o cadeado da imbecilidade e da ganância estúpida, Está bem, está bem, entendi.

Vejo que o sinhô Barão também tem um bichinho de estimação.

O quê, pruguntô o barão pra maldade dita sobre o anão, tem veiz qui o meió jeito é se fazê de tonto

Nada, Barão. Esqueça...

a praça continuava com aquele silêncio qui num leva pra paz, carregada com o nervosismo das mão qui acusa e das voz arrogante com a língua mentirosa e caluniadora, no lugá do curação só o rancô, tudo isso encorajado pela fidalguia ignorante, egoísta, devassa, preguiçosa e beata, gente do deus branco inventando e reinventado as escravidão pra modo de tê uma vida mais fácil, meió e confortável com as meió vestimenta, os meió alimento, as meió moradia, as escola prus fiu e o mais meió de tudo: tê tempo pra tempo

... o criolo é acusado de ter culpa por má vontade e sabotagem ao trabalho, tentativa de fuga para algum esconderijo com a intenção de atacar, matar e fugir de novo.

otro puxão na ponta da casaca qui ele num atendeu, num quis perdê as palavra qui já tinha preparada, tem distração na hora da discussão qui num ajuda e só atrapáia, mesmo querendo ajudá

O sinhô Moringue não acha que é muita intenção e confusão para se perder os dois braços fortes desse negrinho tão moço? Esse negrinho vale tanto quanto a prata ou o ouro das minas. Acho muito desperdício para quase nada que o moleque fez e é acusado.

a queda de braço parecia uma disputa de comando sobre o destino do escravizado, mais só aparentava qui o barão tinha obrigado seu oponente reconhecê qui mudá de opinião num é sê vencido, num é bão tê a cabeça de porongo

mais o problema ali ia ficá mais complicado, o moringue parecia tê uma cartada escondida, Qualquer uma das acusações já ia lhe dar um castigo bem dado, mas não foi só isso, tem mais...

o barão num fez otra prugunta, sabia qui o moringue ia terminá de anunciá as acusação, ele pruguntando ou num pruguntando

... esse criolo safado afogou o coitado do seu dono na bacia da merda! Não bastava ter afogado o pobre homem, foi preciso afogar na merda!

o cortejo voltô gritá e pulá no mesmo lugá, ninguém queria saí donde já tava prum lugá pió, aquilo tudo tava longe de acabá

A bacia estava cheia até a borda! Isso, por certo, vai lhe dar muitos castigos de ódio e uma corda bem apertada no pescoço! Até ficar bem esticadinho!

O patrão gritô pra despejá a bacia, desta veiz num ganhô nenhum chute, mais teve qui escutá calado os grito do moringue

Cala a boca, criolo safado! Poupe-nos de tanta boçalidade!

Calma, sinhô Moringue. O rapaz não é um negro boçal que só fala sua língua natal. Ele pode nos dar as respostas que estamos buscando. Estamos buscando, não é? Vosmecê já interrogou o rapaz?

junto com os grito de cala-boca pru escravizado, a praça tumbém calô, tem veiz qui na dúvida é meió bedecê e se fingí de morto ou enfrentá a colheita dos desaforo, no caso, foi só a praça qui acatô o freio – acho qui mais curiosidade qui susto ou inquietação –, o aprisionado depois do espanto continuô as palavra qui precisava soltá da cabeça, jogava elas pru barão, o único branco, ali na praça, querendo escutá ele, Mais num era essa a intenção d'eu... a bacia tava cheia inté quase derramá e precisava esvaziá.. sai debaixo da cama e dei a notícia qui ia esvaziá a bacia... ele falô qui isso podia esperá e qui era praeu chegá mais perto...

Por que estava dormindo embaixo da cama?

o muriquinhu tava espantado qui aquele branco tava querendo escutá em veiz de gritá, em meio da gritaria da praça, Eu sou o merdêro do siozinho, quando a claridade do dia aparece eu saio debaixo da cama pra despejá a bacia da noite...

Espera... espera... você dorme com essa bacia embaixo da cama?

Sim, siô. Eu durmo embaixo da cama junto com a bacia da soltura dos intestino do siozinho – tem andado com os intestino mais solto – e uma pedra polida pra limpeza, quando tem precisão de uso da bacia eu ajudo no uso, às veiz, é só baruio qui sai, mais tem saido munta merda.

Não acredito.

Pois acredite, siôzinho. Sou o merdêro do finado siô Abílio.

Chega dessa conversa fiada!

os grito voltô, uma gritaria qui rodava e agitava a praça pública, as pessoa queria matá e num tinha embaraço de tanta felicidade pelo sangue quia sê derramado

E o que o seu sinhô queria quando lhe chamou, pruguntô o barão oiando direto nas vista dupretu

Chega dessa conversa inútil, a força do divertimento com a atração pelo sofrimento duspretu é costume da villa qui vai durá muntu mais tempo, a disciplina e a vigilância pelos bão costume – assim como o uso das bombacha e do chimarrão – aceita o ódio qui lhe convém e zanga se algum desavisado anuncia essa repulsa com uspretu, Nunca teve um criolo que foi para o tronco sem ter merecido!

É a lei do merecimento!

em pouco lugá no mundo há tanta acusação sem prova como numa praça da villa querendo fazê linchamento dupretu, inté ninguém mais sabê duqui tá dizendo de ouví sê dito, mais o moringue sabe muntu bem uqui precisa sê dito

O criolo merece o castigo! Se não fez agora já fez antes, se não fez antes vai fazer depois! Se não cagou na entrada vai cagar na saída! É tão certo quanto existe o céu e o inferno!

a voz do moringue continua mostrando lealdade com a villa, o próprio espiritu da villa

O sinhô Moringue é a polícia, o juiz e a corda?

o barão sabia qui precisava segurá algumas palavra na boca – não todas, apenas as mais afiadas –, mas aquela queda de braço tava longe do fim, ele sabia qui devia deixá as barba de môio, as suas palavra tava num risco muntu perto

O Barão sabe, tanto ou mais, que não é possível deixar sem um castigo exemplar qualquer má conduta da criolada. As leis foram feitas para serem respeitadas.

a praça virô cama de gato e a gentarada virô uma só cabeça – sem calma e desgovergando –, virô o lugá qui as pessoa acusa pruqui ouviu dizê qui caso num julgá e executá a sentença agora, na praça, o pretu vai se safá e continuá vivendo pra amedrontá as pessoa de bem, as boa manêra das coisa da villa – qui sempre foi assim e precisa continuá – ouvia dizê sem embaraço ou vergonha, Ainda não é para acabar com o criolo! Primeiro, ele precisa sentir a dor do arrependimento!

Concordo, sinhô Moringue... mas as leis exigem que o acusado seja ouvido!

Isso é verdade, mas só no caso do réu ser uma pessoa de bem da Villa...

Desculpe, sinhô Moringue... mas na lei não está escrito nada sobre a cor do réu e os privilégios de um ou de outro.

o barão aproveitô a indecisão no linchamento pra subí mais a voz e pruguntá, Então, rapaz... o que aconteceu?

Cansei do siôzinho Abílio fazê uso do meu vaso trasêro...

o taludo capitão-do-mato chutô otras duas veiz upretu acorrentado e ajoêiado, as duas cruiz no peito pulava dum lado e otro, ele tava ali pra dá garantia do jeito branco dono-de-tudo fazê e usá as lei, e pronto, num ia tê discussão, tava fazendo a sua obrigação de defendê os dono-de-tudo

ele sabe bem uqui representa, O negro só fala se tem permissão da autoridade pra falar! Entendeu?

upretu e o negro se oiava, cadum procurava o seu jeito pra escapá da escravatura

Eu perguntei, gritô o barão, eu quero escutar dele, e apontô pru pretu caído no chão, entendeu?

o barão num oiava pru capataiz da pulícia, encarava usóio do moringue enquanto o escravizado caído com as costa no chão encarava o oiá de traimento do chefete menó daquele troço descarnado, ignorante e louco de escravizá hôme, muié e muquinhu, um brejo cruel com o gado estúpido fardado no meio do pasto debochando e maltratando

Capitão... calma...

Sim, sinhô!

O que foi isso?

Sinhô, esse negro continua se fazendo de coitado e falando quando bem quer...

O quê o capitão sugere?

a praça explodiu aos grito, Corta a língua do criolo!

o enxame do ódio desenfreado, cisma, desconfiança, intolerância, toda tristeza secreta do desprezo e da repulsa juntada dia-a-dia, tava solto

Calma, gente! Precisamos ser caridosos, somos uma Villa civilizada, as palavra do moringue num foi pra acalmá a praça, caridade é consciência culpada, num queria sê acusado ditê perdido a mercadoria, Que pena, ele pensava, não poder colocar um fim nisso tudo, torceu o nariz como se estivesse incomodado com os som de porco se agitando na praça

Moringue! Cala a boca suja do criolo!

Corta a língua!




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