segunda-feira, 6 de julho de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... Virou-lhe o mataco (02)

Luaanda... Estória da Galinha e do Ovo


Luandino Vieira





Para Amorim e sua ngoma:
sonoros corações da nossa terra.



Virou-lhe o mataco, pôs uma chapada e com o indicador puxou depois a pálpebra do olho esquerdo, rindo, malandra, para a vizinha que já estava outra vez no meio da roda para mostrar a galinha assustada atrás das grades do cesto velho. 

— Vejam só! A galinha é minha, a ladrona mesmo é que disse. Capim está ali, ovo ali. Apalpem-lhe! Apalpem-lhe! Está mesmo quente ainda! E está dizer o ovo é dela! Makutu!∗ Galinha é minha, ovo é meu!

Novamente as pessoas falaram cada qual sua opinião, fazendo um pequeno barulho que se misturava no xaxualhar das mandioqueiras e fazia Cabíri, cada vez mais assustada, levantar e baixar a cabeça, rodando-lhe, aos saltos, na esquerda e direita, querendo perceber, mirando as mulheres. Mas ninguém que lhe ligava. Ficou, então, olhar Beto e Xico, meninos amigos de todos os bichos e conhecedores das vozes e verdades deles. Estavam olhar o cesto e pensavam a pobre queria sair, passear embora e ninguém que lhe soltava mais, com a confusão. Nga Bina, agora com voz e olhos de meter pena, lamentava:

— Pois é, minhas amigas! Eu é que sou a sonsa! E ela que estava ver todos os dias eu dava milho na galinha, dava massambala, nada que ela falava, deixava só, nem obrigado... Isso não conta? Pois é! Querias!? A galinha gorda com o meu milho e o ovo você é que lhe comia?!...

Vavó interrompeu-lhe, virou nas outras mulheres — só mulheres e monas é que tinha, nessa hora os homens estavam no serviço deles, só mesmo os vadios e os chulos estavam dormir nas cubatas — e falou:

— Mas então, Bina, você queria mesmo a galinha ia te pôr um ovo?

A rapariga sorriu, olhou a dona da galinha, viu as caras, umas amigas outras caladas com os pensamentos e desculpou:

— Pópilas! Muitas de vocês que tiveram vossas barrigas já. Vavó sabe mesmo, quando chega essa vontade de comer uma coisa, nada que a gente pode fazer. O mona na barriga anda reclamar ovo. Que é eu podia fazer, me digam só?!

— Mas ovo não é teu! A galinha é minha, ovo é meu! Pedias! Se eu quero dou, se eu quero não dou!

Nga Zefa estava outra vez raivosa. Essas vozes mansas e quietas de Bina falando os casos do mona na barriga, desejos de gravidez, estavam atacar o coração das pessoas, sentia se ela ia continuar falar com aqueles olhos de sonsa, a mão a esfregar sempre a barriga redonda debaixo do vestido, derrotava-lhe, as pessoas iam mesmo ter pena, desculpar essa fome de ovo que ela não tinha a culpa... Virou-se para vavó, a velha chupava sua cigarrilha dentro da boca, soprava o fumo e cuspia.

— Então, vavó?!... Fala então, a senhora é que é nossa mais velha...

Toda a gente calada, os olhos parados na cara cheia de riscos e sabedoria da senhora. Só Beto e Xico, abaixados junto do cesto, conversavam com a galinha, miravam suas pequenas penas assustadas a tremer com o vento, os olhos redondos a verem os sorrisos amigos dos meninos. Puxando o pano em cima do ombro, velha Bebeca começou:

— Minhas amigas, a cobra enrolou no muringue! Se pego o muringue, cobra morde; se mato a cobra, o muringue parte!... Você, Zefa, tem razão: galinha é sua, ovo da barriga dela é seu! Mas Bina também tem razão dela: ovo foi posto no quintal dela, galinha comia milho dela... O melhor perguntamos ainda no sô Zé... Ele é branco!...

Sô Zé, dono da quitanda, zarolho e magro, estava chegar chamado pela confusão. Nessa hora, a loja ficava vazia, fregueses não tinha, podiam-lhe deixar assim sozinha.

— Sô Zé! O senhor, faz favor, ouve ainda estes casos e depois ponha sua opinião. Esta minha amiga...

Mas toda a gente adiantou interromper vavó. Não senhor, quem devia pôr os casos era cada qual, assim ninguém que ia falar depois a velha tinha feito batota, falando melhor um caso que outro. Sô Zé concordou. Veio mais junto das reclamantes e com seu bonito olho azul bem na cara de Zefa, perguntou:

— Então, como é que passou?

Nga Zefa começou contar, mas, no fim, já ia esquivar o caso de espreitar o milho que a vizinha dava todos os dias, e vavó acrescentou:

— Fala ainda que você via-lhe todos os dias pôr milho para a Cabíri!

— Verdade! Esqueci. Juro não fiz de propósito...

Sô Zé, paciente, as costas quase marrecas∗, pôs então um sorriso e pegou Bina no braço.

— Pronto! Já sei tudo. Tu dizes que a galinha pôs no teu quintal, que o milho que ela comeu é teu e, portanto, queres o ovo. Não é?

Com essas palavras assim amigas, de sô Zé, a mulher nova começou a rir; sentia já o ovo ia ser dela, era só furar-lhe, dois buracos pequenos, chupar, chupar e depois lamber os beiços mesmo na cara da derrotada. Mas quando olhou-lhe outra vez, sô Zé já estava sério, a cara dele era aquela máscara cheia de riscos e buracos feios onde só o olho azul bonito brilhava lá no fundo. Parecia estava atrás do balcão mirando com esse olho os pratos da balança quando pesava, as medidas quando media, para pesar menos, para medir menos.

— Ouve lá! — falou em nga Bina, e a cara dela apagou logo-logo o riso, ficou séria, só a mão continuava fazer festas na barriga. — Esse milho que deste na Cabíri... é daquele que te vendi ontem?

— Isso mesmo, sô Zé! Ainda bem, o senhor sabe...

— Ah, sim!? O milho que te fiei ontem? E dizes que o ovo é teu? Não tens vergonha?...

Pôs a mão magra no ombro de vavó e, com riso mau, a fazer pouco, falou devagar:

— Dona Bebeca, o ovo é meu! Diga-lhes para me darem o ovo. O milho ainda não foi pago!...

Um grande barulho saiu nestas palavras, ameaças mesmo, as mulheres rodearam o dono da quitanda, insultando, pondo empurrões no corpo magro e torto, enxotando-lhe outra vez na casa dele.

— Vai ‘mbora, güeta da tuji!∗

— Possa! Este homem é ladrão. Vejam só!

Zefa gritou-lhe quando ele entrou outra vez na loja, a rir, satisfeito:

— Sukuama! Já viram? Não chega o que você roubaste no peso, não é, güeta camuelo?!

Mas os casos não estavam resolvidos.

Quando parou o riso e as falas dessa confusão com o branco, nga Zefa e nga Bina ficaram olhar em vavó, esperando a velha para resolver. O sol descia no seu caminho do mar de Belas e o vento, que costuma vir no fim da tarde, já tinha começado a chegar. Beto e Xico voltaram para junto do cesto e deixaram-se ficar ali a mirar outra vez a galinha Cabíri. O bicho tinha-se assustado com todo o barulho das macas com sô Zé, mas, agora, sentindo o ventinho fresco a coçar-lhe debaixo das asas e das penas, aproveitou o silêncio e começou cantar.

— Sente, Beto! — sussurrou-se Xico. — Sente só a cantiga dela!

E desataram a rir ouvindo o canto da galinha, eles sabiam bem as palavras, velho Petelu tinha-lhes ensinado.

— Calem-se a boca, meninos. Estão rir de quê então? — a voz de vavó estava quase zangada.

— Beto, venha cá! Estás rir ainda, não é? Querem-te roubar o ovo na sua mãe e você ri, não é?

O miúdo esquivou para não lhe puxarem as orelhas ou porem chapada, mas Xico defendeu-lhe:

— Não é, vavó! É a galinha, está falar conversa dela!

— Oh! Já sei os bichos falam com os malucos. E que é que está dizer?,.. Está dizer quem que é dono do ovo?...

— Cadavez, vavó!... Sô Petelu é que percebe bem, ele m’ensinou!

Vavó Bebeca sorriu; os seus olhos brilharam e, para afastar um pouco essa zanga que estava em todas as caras, continuou provocar o mona:

— Então, está dizer é o quê? Se calhar está falar o ovo...

Aí Beto saiu do esconderijo da mandioqueira e nem deixou Xico começar, ele é que adiantou:

— A galinha fala assim, vavó:


Ngêxile kua ngana
Zefa Ngala ngó ku kakela
Ka...ka...ka...kakela, kakela...



E então Xico, voz dele parecia era caniço, juntou no amigo e os dois começaram cantar imitando mesmo a Cabíri, a galinha estava burra, mexendo a cabeça, ouvindo assim a sua igual a falar mas nada que via.


... ngêjile kua ngana
Bina Ala kiá ku kuata
kua... kua... kua... kuata, kuata!



E começaram fingir eram galinhas a bicar o milho no chão, vavó é que lhes ralhou para calarem, nga Zefa veio mesmo dar berrida no Beto, e os dois amigos saíram nas corridas fora do quintal.

Mas nem um minuto que demoraram na rua. Xico veio na frente, satisfeito, dar a notícia em vavó Bebeca:

— Vavó! Azulinho vem aí!

— Chama-lhe, Xico! Não deixa ele ir embora!

Um sorriso bom pousou na cara de todos, nga Zefa e nga Bina respiraram, vavó deixou fugir alguns riscos que a preocupação do caso tinha-lhe posto na cara. A fama de Azulinho era grande no musseque, menino esperto como ele não tinha, mesmo que só de dezasseis anos não fazia mal, era a vaidade de mamã Fuxi, o sô padre do Seminário até falava ia lhe mandar estudar mais em Roma. E mesmo que os outros monas e alguns mais velhos faziam-lhe pouco porque o rapaz era fraco e com uma bassula de brincadeira chorava, na hora de falar sério, tanto faz é latim, tanto faz é matemática, tanto faz é religião, ninguém que duvidava: Azulinho sabia. João Pedro Capita era nome dele, e Azulinho alcunhavam-lhe por causa esse fato de fardo∗ que não largava mais, calor e cacimbo, sempre lhe vestia todo bem engomado.

Vavó chamou-lhe então e levou-lhe no meio das mulheres para saber os casos. O rapaz ouvia, piscava os olhos atrás dos óculos, puxava sempre os lados do casaco para baixo, via-se na cara dele estava ainda atrapalhado no meio de tantas mulheres, muitas eram só meninas mesmo, e a barriga inchada e redonda de nga Bina, na frente dele, fazia-lhe estender as mãos sem querer, parecia tinha medo a mulher ia lhe tocar com aquela parte do corpo.

— Veja bem, menino! Estes casos já trouxeram muita confusão, o senhor sabe, agora é que vai nos ajudar. Mamã diz tudo quanto tem, o menino sabe!...

Escondendo um riso vaidoso, João Pedro, juntando as mãos parecia já era mesmo sô padre, falou:

— Eu vos digo, senhora! A justiça é cega e tem uma espada...

Limpou a garganta a procurar as palavras e toda a gente viu a cara dele rir com as idéias estavam nascer, chegavam-lhe na cabeça, para dizer o que queria.

— Vós tentais-me com a lisonja! E, como Jesus Cristo aos escribas, eu vos digo: não me tenteis! E peço-vos que me mostrem o ovo, como Ele pediu a moeda...





continua página 90...


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∗ makutu! — mentira!
∗ marreco — corcovado; corcunda.
∗ güeta da tuji! — branco de merda!
∗ Ala kiá ku kuata — vim para casa da senhora Bina; estão já a agarrar.
∗ fardo — roupa usada que vinha enfardada, em pacotes, do exterior (Portugal, EUA) para ser
vendida.

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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


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Entrevista Luandino Vieira
(por Joana Passos)



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