segunda-feira, 8 de março de 2021

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 21 — Cataclismo Artificial

 Edgar Allan Poe - Contos





Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837





21 — Cataclismo Artificial




Quando recuperei os sentidos, senti-me quase sufocado, mergulhado na mais profunda escuridão, entre uma massa de terra difusa que rolava pesadamente sobre mim vinda de todos os lados e ameaçando enterrar-me completamente. Alarmadíssimo com esta ideia, esforcei-me por me pôr de pé, o que por fim consegui. Então permaneci imóvel durante alguns instantes, tentando compreender o que me tinha acontecido e onde estava. Em breve ouvi um profundo gemido, mesmo junto a mim, e pouco depois, a voz abafada de Peters que, por amor de Deus, suplicava que o auxiliasse. A custo, dei um ou dois passos e tropecei na cabeça e nos ombros do meu camarada, que estava meio enterrado e que lutava com desespero para se livrar daquela opressão. Com toda a energia que tinha afastei a terra mole que o rodeava e acabei por conseguir libertá-lo. Assim que recuperamos o suficiente do nosso terror e surpresa, e que pudemos raciocinar, chegamos os dois à conclusão de que as paredes da abertura, onde nos tínhamos aventurado, devido a qualquer convulsão natural ou talvez devido ao seu próprio peso, se tinham desmoronado, enterrando-nos vivos e deixando-nos perdidos para sempre. Durante bastante tempo, abandonámo-nos cobardemente à dor e ao desespero mais terríveis, que só aqueles que já passaram por uma situação semelhante poderão compreender. Estou firmemente convencido de que nenhum dos acidentes que podem semear a existência humana é mais suscetível de criar o paroxismo da dor física e moral do que um caso semelhante ao nosso: — ser enterrado vivo! As trevas que envolvem a vítima, a opressão terrível dos pulmões, as exalações sufocantes da terra húmida juntam-se a este horrível pensamento, que estamos para lá dos confins da mais longínqua esperança e que estamos na mesma condição dos mortos, lançando no espírito humano um calafrio, um horror deslizante, que são intoleráveis e impossíveis de conceber.

Por fim, Peters propôs que, antes de mais, devíamos verificar até que ponto ia a nossa desgraça e investigar bem a nossa prisão, pois não era completamente impossível que conseguíssemos descobrir uma abertura por onde escapar. Agarrei-me desesperadamente a esta esperança e, apelando para toda a minha energia, esforcei-me pior descobrir uma caminho através daquele amontoado de terra desmoronada. Mal tinha dado um passo, quando um raio de luz chegou até mim, quase imperceptível é certo, mas suficiente para me convencer que não morreríamos imediatamente por falta de ar. Então recuperamos um pouco a coragem e tentámos convencer-nos mutuamente de que tudo correria pelo melhor. Depois de termos trepado por cima de um monte de escombros que obstruíam a nossa passagem em direção à luz, foi-nos mais fácil avançar e sentimos um certo alívio da excessiva opressão que nos atormentava os pulmões. Em breve conseguíamos distinguir os objetos que nos rodeavam e descobrimos que estávamos quase na extremidade da fenda que se estendia em linha reta, isto é, no ponto onde curvava para a esquerda. Mais um esforço e atingimos a curva, onde, com alegria indescritível, distinguimos uma longa cicatriz ou fenda que se estendia a uma grande distância em direção à parte superior, fazendo de um modo geral ângulo de cerca de quarenta e cinco graus, por vezes mais em certos pontos. O nosso olhar não conseguia verificar toda a extensão da abertura, mas pela luz que por ela entrava tínhamos quase a certeza (se acaso pudéssemos trepar até ao cimo) de encontrar uma saída para o ar livre.

Lembrei-me então que tínhamos sido três a abandonar o caminho principal para entrar na fenda e que ainda não tínhamos encontrado o nosso camarada Allen; assim; resolvemos voltar para trás para o procurar. Depois de longa busca, recheada de perigos devido à massa superior de terra que se abatera sobre nós, Peters exclamou por fim que tinha tropeçado num dos pés do nosso camarada e que todo o corpo estava tão profundamente enterrado que era impossível retirá-lo. Depressa verifiquei que Peters tinha razão e que Allen já devia estar morto há muito tempo. Com tristeza, abandonamos o corpo ao seu destino e encaminhámo-nos de novo para a curva do túnel.

A largura da fenda mal dava para os nossos corpos e, depois de uma ou duas tentativas infrutíferas para subir, começamos a desesperar de novo. Já disse que a cadeia de montanhas através da qual o desfiladeiro se estendia era formada por uma espécie de rochas semelhantes a esteatite ou pedra-sabão. As paredes da abertura que tentávamos alcançar eram feitas da mesma substância e eram tão escorregadias e húmidas que mal conseguíamos fixar os pés, mesmo nos pontos menos íngremes; noutros sítios, onde a escalada era quase perpendicular, as dificuldades eram naturalmente muito maiores e durante algum tempo pensámos que nunca conseguiríamos transpô-las. No entanto, tiramos a coragem do nosso desespero e, tendo tido a feliz ideia de escavar degraus na rocha com as nossas facas de mato, subimos, correndo o risco de nos matarmos, apoiando-nos em pequenas saliências feitas de uma espécie de argila xistosa um pouco mais dura, que aqui e ali se destacava das paredes, e finalmente chegámos a uma plataforma natural donde se avistava uma nesga do céu azul, na extremidade de uma ravina muito arborizada. Olhando para trás e examinando com cuidado a passagem através da qual tínhamos subido, vimos claramente, pelo aspecto das paredes, que era de formação recente e concluímos que o tremor de terra que tão inesperadamente nos tinha sepultado, fosse de que natureza fosse, também nos tinha aberto um caminho de salvação. Quase esgotados devido aos esforços feitos, e tão fracos que mal podíamos manter-nos de pé e pronunciar qualquer palavra, Peters, teve a ideia de dar o alarme aos nossos companheiros, disparando as pistolas que tinha à cintura, já que tínhamos perdido as espingardas e as catanas no meio dos destroços no fundo do abismo. Os acontecimentos subsequentes provaram que, se tivéssemos feito fogo, nos teríamos arrependido amargamente, mas por felicidade uma vaga suspeita de que tínhamos sido vítimas de uma infame patifaria, despertou no meu espírito e não quisemos dar a conhecer aos selvagens o local onde nos encontrávamos.

Depois de termos descansado durante cerca de uma hora, seguimos lentamente para o cimo da ravina e ainda não tínhamos avançado muito quando ouvimos uma série de horríveis bramidos. Atingimos por fim aquilo a que podíamos chamar a superfície, porque o nosso caminho até ali, desde que tínhamos deixado a plataforma, tinha serpenteado sob um túnel de altas rochas e folhagem, numa grande distância acima das nossas cabeças. Com a maior prudência rastejamos até uma abertura estreita, donde nos foi fácil ver toda a região que nos rodeava e, finalmente foi-nos revelado num momento e à primeira vista todo o segredo do tremor de terra.

O nosso ponto de observação não estava longe do pico mais elevado da cadeia de montanhas de esteatite. A garganta onde se tinha metido o nosso grupo de trinta e dois homens estendia-se a cinquenta pés à nossa esquerda. Mas, numa extensão de cerca de cem jardas, o desfiladeiro ou leito daquela garganta, estava completamente coberto pelos destroços caóticos de mais de um milhão de toneladas de terra e pedras, verdadeira avalanche artificial que para lá fora lançada propositadamente. O método utilizado para fazer deslizar aquela vasta massa era tão simples como evidente, pois ainda havia vestígios da criminosa ação. Em vários pontos, ao longo da crista Este da garganta (nós estávamos a Oeste) podíamos distinguir estacas de madeira enterradas no solo. Nesses sítios o terreno não cedera, mas ao longo de toda a vertente do precipício, donde a massa se tinha desprendido, era evidente, por certos vestígios deixados no solo, semelhantes aos deixados quando se fazem escavações, que outras estacas iguais às que ainda subsistiam tinham estado fixas, a uma distância de uma jarda entre si, talvez num comprimento de cem pés, sobre uma linha situada a cerca de dez pés da borda do abismo. Fortes ligamentos de videira ainda estavam presos às estacas que subsistiam na colina, e era evidente que cordas da mesma natureza deviam ter unido cada uma das outras estacas. Já mencionei a estratificação singular destas colinas de pedra-sabão e a descrição que fiz da estreita e profunda fenda através da qual escapamos à nossa terrível sepultura deve servir para compreenderem melhor a natureza do terreno, que era tal que a primeira convulsão natural devia fender o solo em camadas perpendiculares ou linhas paralelas, e que um pequeno esforço propositado devia ser suficiente para obter o mesmo resultado. Foi desta estratificação especial que os selvagens se serviram para levar a bom termo a sua abominável traição. Não havia dúvida que a ruptura parcial do solo se tinha operado graças àquela linha contínua de estacas, enterradas a uma profundidade de um ou dois pés e que um selvagem colocado na extremidade de cada uma das cordas, puxando-as (as cordas estavam presas à ponta das estacas e estendiam-se desde a crista do monte) obteria uma enorme força de alavanca capaz de precipitar, a um determinado sinal, toda a parede da colina no fundo do abismo. O destino dos nossos pobres camaradas também não podia ser objeto de dúvidas. Nós éramos os únicos sobreviventes daquele cataclismo artificial. Éramos os únicos homens brancos vivos na ilha.





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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.




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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


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