Ópera do malandro
Ópera do malandro
PRIMEIRO ATO
CENA 2
Esconderijo de Max; o ambiente ê rústico, quase uma cabana de pescadores; o espaço está tomado por uma montanha de caixotes e embrulhos revirados e semi-abertos; os homens de Max estão enfiados nessa montanha, procurando algo; a exceção é Barrabás que, sentado num caixote e mascando chicletes, segue Teresinha com os olhos
TERESINHA
Puxa, Max, o teu escritório é tão escuro! Mais parece um esconderijo.
MAX
Por mim, a cerimônia era no Copacabana Palace. Eu já tinha até tratado a equipe de garçons. E ainda tava arriscado a aparecer de surpresa a orquestra típica do Xavier Cugat.
TERESINHA
Mas aí o papai. . .
MAX
Pois é, o papai também era capaz de dar uma incerta e escangalhar a rumba. Então, Teresinha, o lugar mais discreto que eu encontrei foi mesmo o escritório. O diabo é que ele tá todo entulhado. Essas encomendas chegaram anteontem e não deu tempo de fazer as entregas. (Alto) Como é, macacada? Nada ainda? Procurem direito que só pode estar aí mesmo, no setor dos têxteis.
TERESINHA
Nunca vi escritório tão isolado assim, num areal...
MAX
É, baby, eu fui criado no mar. Sabe, assim que a gente se livrar dos caixotes, sei não. . . Com o gosto que você tem, dando um cuidado na decoração, aposto que a gente vai acabar morando aqui mesmo.
TERESINHA
Deus me livre e guarde! Cadê coragem pra morar num ermo desses, sem luz elétrica, sem bonde, sem telefone, sem vizinho e sem policiamento? Sem falar que não vinha visita nem aos domingos.
MAX
Então, tá. Se você não se incomoda de morar em hotel. . .
TERESINHA
Outro dia eu vi uma casinha que era uma graça, lá no Cosme Velho. . .
MAX
Ô, cambada de vagabundos! Sai ou não sai esse vestido?
TERESINHA
Bem que eu falei pra gente comprar o vestido num magazine. Era tão mais fácil. . .
MAX Ora, Teresinha, espera pra ver o modelo exclusivo que eu encomendei. Não é de armarinho do Catete, não. Veio direto da Quinta Avenida, New York! (Ouve-se o estouro dum champanhe)
TERESINHA
Que foi isso? É ladrão, Max, é ladrão!
MAX
Isso foi o safado do Johnny abrindo champanhe antes da hora. Ô, filho duma puta! Desculpe, baby. . . Ô, filho duma puta, desce daí e me passa a garrafa! Isso é hora de beber?
JOHNNY
Não tava bebendo, tava só testando a rolha, capitão.. .
MAX
Lei seca pra você! (Entorna o líquido)
JOHNNY
Não faça isso, capitão! Coitadas das bolhinhas. . .
MAX
Tem cinco minutos pra encontrar o vestido! (Bate com o pé no chão, afugentando Johnny) Não repara, Teresinha, mas esse pessoal só trabalha debaixo de chicote.
TERESINHA
Eles são tão engraçados, Max. Têm cara de gangsters de verdade! (Olha Barrabás) Parece até que saíram duma fita da Paramount.
MAX
E você, Barrabás, que é que tá fazendo aí, gostosão? Tá pensando que é artista de cinema? Mostra o teu talento, anda! Dá um mergulho aí e resgata o vestido da minha noiva.
BARRABÁS
Eu sou escafandrista. Sou roupeiro não. Meu serviço eu já fiz.
MAX
Tá brincando.
BARRABÁS
Não sou pago pra catar camisola de ninguém.
MAX
Ah, é? (Dá um pontapé no caixote, desequilibrando Barrabás) Levanta e faz o que eu te digo! E tem mais! Eu não te pago pra fazer biscate de traficante, viu? Aliás, parece que o Tigrão, nosso bravo inspetor, tá a fim de desbaratar uma quadrilha aí. E eu soube que você, Barrabás, é quem tá encabeçando a lista do Tigrão. (Barrabás junta-se aos outros, vagarosamente, de má vontade) Desculpe a cena, Teresinha, mas foi inevitável. . .
TERESINHA
Você esteve ótimo, Max.
PHILLIP
Capitão, capitão, achei uma caixa escrita nilom!
MAX
É náilon, Phillip. Passa aqui.
PHILLIP (Entrega a caixa)
Mas que tá escrito nilom, tá.
MAX Ô, cretino, são as minhas cuecas! Perdão, Teresinha.
TERESINHA
Deixa eu ver? Olha que uva, eu nunca tinha visto cuecas de náilon!
MAX
É claro que não, eu acabei de importar. . . Escuta aqui, Teresinha, como são as cuecas que você costuma ver?
TERESINHA
Ah, tem de algodão, tem de cambraia, tem de linho, tem até de seda, mas de náilon é a primeira vez que eu vejo.
MAX Sei, sei...
TERESINHA
Ah, Max, é claro que eu tô falando das ceroulas do papai. . . Puxa, você tá tão nervoso com esse casamento que parece marinheiro de primeira viagem.
MAX
Sorry, Teresinha, é esse contratempo todo. Big Ben, que horas são?
BEN (Levanta-se de dentro dum caixote e consulta os relógios que lhe cobrem os braços)
Onze e trinta e sete e vinte, capitão.
MAX
Olha aí, já passou da hora. Ainda bem que o padrinho e o juiz também estão atrasados. . . Nosso padrinho é um homem muito ocupado, Teresinha. Mas é um grande amigo. Fez questão de providenciar um juiz de toda a confiança.
GENERAL
Tá aqui, capitão, achei! (Mostra o vestido)
MAX
É esse mesmo, General, parabéns! Vai ganhar uma medalha! Joga daí mesmo! (Apanha o vestido no ar) Tá vendo, baby, não amarrota. Amassa aqui, pode amarfanhar. É puro náilon, todo ele, até o véu, até a grinalda, até as florzinhas.
TERESINHA
É lindo, Max! Vou lá dentro me trocar. (Sai)
MAX
Ô, macacada, ajuda aqui com a mesa! (Os homens pulam de onde estão e dispõem uns caixotes que, com a toalha, vão simular uma longa mesa com seus bancos) Isso, issso. . . Prataria de Portugal, cristais da Boêmia, toalha de náilon, cerâmica inglesa. . . Vamos, vamos, cuidado que isso é frágil. . . Cadê a Geni, hein?
BARRABÁS
Tá dando.
MAX
Perfeito, perfeito, assim tá bem. Os queijos franceses, o salmão da Noruega, o vinho. . . O quê? Châteauneuf du Pape? Ô, Johnny, você tá bêbado, tá? Quer me fazer passar vexame? Onde é que já se viu servir vinho tinto com salmão? Vai botar o vinho da Alsácia no gelo, vai! Vocês todos, vão passar uma loção na cara e enfiar uma roupa decente. Rápido! (Eles saem por um lado e Teresinha entra por outro, vestida de noiva)
MAX
Teresinha! Teresinha! É você ou é uma visão? (Gira a manivela do gramofone que começa a tocar "l'm in the Mood for Love" com Glenn Miller e um pouco de chiado) É você ou uma visão? Deixa eu te tocar. (Toma-a nos braços e dá alguns passos de dança) Ficou bem, baby? Não tá muito justo?
TERESINHA
Caiu como uma luva, Max. . .
MAX
Viu só? Eu sei de cor cada polegada do teu corpo.
TERESINHA
Eu só tô achando que ele tá um pouquinho úmido. . .
MAX
Ah, eu gosto de tudo úmido. Eu sou um lobo do mar, baby. E depois, não tem comerciante de secos e molhados? Pois é, eu só trabalho com molhados. Você tá tão fresquinha!
TERESINHA
O meu medo é pegar um resfriado. Voltam os capangas de Max, vestindo smokings que não lhes caem bem; o gramofone perde a força e o disco ralenta até parar
MAX
Ah, agora sim vocês estão apresentáveis. Teresinha, estes são os meus funcionários. Funcionários, esta aqui é a minha noiva, Teresinha, que dentro de instantes será a senhora Max Overseas. E agora, a grande surpresa! Baby, não parece mas os meus amigos, nas horas vagas, são compositores. . .
JOHNNY
Ah não, Max, por favor. ..
GENERAL
A música não ficou muito boa...
BARRACAS
Ficou uma bosta.
MAX
Claro que ninguém aqui é Ari Barroso. Mas eles prepararam uma cançãozinha pra você, em sua homenagem.
TERESINHA
Ah, que gracinha! Quero ouvir.
MAX Vocês escutaram? É a vontade da noiva! Orquestra ataca introdução em ritmo de tango Os capangas cantam "Tango do Covil"
Ai, quem me dera ser cantor
Quem dera ser tenor
Quem sabe ter a voz
Igual aos rouxinóis
Igual ao trovador
Que canta os arrebóis
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Deixa eu cantar tua beleza
Tu és a mais linda princesa
Aqui deste covil
Ai, quem me dera ser doutor
Formado em Salvador
Ter um diploma, anel
E voz de bacharel
Fazer em teu louvor
Discursos a granel
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Tu és a dama mais formosa
E, ouso dizer, a mais gostosa
Aqui deste covil
Ai, quem me dera ser garçom
Ter um sapato bom
Quem sabe até talvez
Ser um garçom francês
Vaiar de champinhom
Falar de molho inglês
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
És tão graciosa e tão miúda
Tu és a dama mais tesuda
Aqui deste covil
Ai, quem me dera ser Gardel
Tenor e bacharel
Francês e rouxinol
Doutor em champinhom
Garçom em Salvador
E locutor de futebol
Pra te dizer febril
Bem-vinda
Tua beleza é quase um crime
Tu és a bunda mais sublime
Aqui deste covil
continua pág 38...
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NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque Rio, junho de 1978
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Leia também:
Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2b)
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
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