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sexta-feira, 22 de julho de 2022
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2c)
Ópera do malandro
Chico Buarque
Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran
PRIMEIRO ATO
continuando...
CENA 2
À medida que Max e Chaves cantam e confraternizam, os capangas começam a botar as cabeças para fora, mais confiantes; a orquestra segue com o chorinho por mais algum tempo
MAX
Vem cá, e a galinha da tua irmã? Continua dando a bunda regularmente?
CHAVES
Catarina bateu as botas há muito tempo. . . Foi na gripe espanhola.
MAX
Xi, eu não sabia. Pêsames, Chaves. Que gafe!
CHAVES
Gafe você vai ouvir agora. Olha, Tião, são dois anos que tu não acerta as contas comigo.
MAX
Olha aí, a gente nunca se vê. Quando se vê é às pressas, às escuras e é só pra tratar de negócios. Assim eu nem posso saber como vai a família. . . Mas hoje não, Tigreza.
CHAVES
É, eu sei que o momento é impróprio. Mas é que justamente hoje o meu outro sócio telefonou e me deu um aperto. Se tu não me paga, eu não posso pagar a ele. Também não posso chegar pra ele e dizer que tô duro porque o meu sócio contrabandista joga tudo no cassino e não me paga o combinado. Não fica bem prum chefe de polícia, entende? Esse meu outro sócio é um homem muito sério. Cobra juros de vinte por cento ao mês.
MAX
Puxa vida, Chaves, por que você não me falou antes? Eu não me preocupei com isso porque achei que você tava bem de vida. Aliás, sempre invejei a tua posição, a tua estabilidade, a segurança dum emprego público. .. Nunca pensei que fosse te ver chorando por causa duma mixaria. . .
CHAVES
Mixaria? Tua dívida tá a quase vinte contos!
MAX
Vinte contos. . . Vinte contos é a minha despesa mensal de lavanderia. Quanto é que você tira por mês?
CHAVES
Olha, Tião, tu tá me obrigando a me abrir contigo. Não conte a ninguém, mas eu vivo com um drama pessoal lá em casa. Pouca gente sabe que eu tenho uma filha de vinte anos. . .
MAX
A Lúcia? CHAVES Tu conhece a Lúcia?
MAX
Claro, eu cansei de carregar ela no colo. . .
CHAVES
Mas tu não sabe que aquela criança virou um problema sério. Aqui entre nós, a Lúcia me rouba.
MAX
Te rouba?
CHAVES
No começo era coisa à toa. Depois começou a roubar cem mil-réis, duzentos, o que tivesse na minha carteira enquanto eu dormia. É claro que eu lhe apliquei uma série de correções. Mas um dia o psiquiatra do Hospital dos Servidores me disse que não adianta castigar ela não. Porque ela não é ladra. Ela sofre duma doença incurável chamada cleptomania. E que ela rouba pra compensar a ausência da mãe. Então eu tenho que deixar a Lúcia ficar me roubando. . . Roubando e comendo doce, roubando e comendo doce, porque ela gasta todo o meu dinheiro na confeitaria. O psiquiatra disse que o creme de leite é a projeção do leite materno que ela não teve.
MAX
Que chato, Chaves, que chato. . . Olha, amanhã cedo eu começo a botar nossos livros em dia.
CHAVES
É bom. Tu tá trabalhando à vontade, na maior liberalidade, e se tiver juízo faz fortuna. Agora, eu tô colaborando contigo e preciso ver o meu, né? Tu não tem telefone, não tem residência fixa e eu não sou puta de praia pra ficar te catando em cabana de pescador. Não posso me expor desse jeito.
MAX
Pode deixar. Vou levantar um vale com o meu sogro e liquidar todas as dívidas.
CHAVES
Não diga. Tu quer dizer que a rapariga, além dos chamados dotes físicos, tá sentada num baú? Ah, malandro, eu sabia que tinha carne embaixo desse angu. . . Então posso contar contigo. Já vou dizer ao Duran que pra semana a gente acerta.
MAX
Duran?
CHAVES
É meu outro sócio. Fernandes de Duran.
MAX
Ora, Fernandes de Duran é o meu sogro!
CHAVES
Tu tá me gozando. . .
MAX
Fernandes de Duran, o comerciante.
CHAVES
Fernandes de Duran, dos puteiros?
MAX
Ou isso. É ele o sócio que tá te apertando? Que nada, chapa, pode considerar perdoada a tua dívida. Ele perdoa a tua, você perdoa a minha e fica tudo em família.
CHAVES
Como é mesmo o nome da tua parceira?
MAX
Teresinha.
CHAVES
Eu tô sabendo agora quem é teu pai. Grande sujeito, cidadão de primeiríssima ordem! Ele não veio?
TERESINHA
Não, pois é, ele tá com uma enxaqueca terrível. . .
CHAVES
E a senhora dele, a dona Vitória. . .
TERESINHA
Mamãe. . . Mamãe tá com gota.
CHAVES
Ué, aquele ali não é o Joãozinho Pedestre? É ele mesmo, o maior distribuidor de iodo do Rio de Janeiro. . .
JOHNNY
Iodo não senhor. Minha muamba é honesta e quem afiança é o capitão.
MAX
E afianço mesmo! Johnny, o inspetor vai levar uma caixa de scotch pra tirar a teima. Oferta da casa.
CHAVES
Olha aí o Benê Mesbla! Tô te reconhecendo, ô, safado. Tu me vendeu um relógio há cinco anos atrás.
BEN
O senhor deve estar enganado.
CHAVES
Tô não, foi tu mesmo. Faz cinco anos mas eu me lembro como se fosse ontem. Posso até provar. Quer saber a hora exata que tu me passou a perna? (Para Max) Tá aqui. Cinco e dez. A bosta nunca mais andou. Muito me admira a tua confiança nos relógios da Mesbla.
MAX
Espera aí, Chaves, assim você me coloca em má situação. Eu só trabalho com relógio suíço, autêntico! Se o teu tá com defeito de fabricação, tem que reclamar é em Zurique.
CHAVES
Ah, é? No cú! E o recibo? E a garantia?
MAX
Big Ben, sacrifica um dos nossos aqui pro amigo.
BEN
Sim senhor. Serve um Patek Philippe?
CHAVES
Contanto que ande. . . (Troca de relógio) Não vai me dizer que aquele ali é o Geraldino Elétrico. . . Sabe que outro dia eu mandei comprar um gramofone americano? Presente pra minha filha que adora música. Pois a geringonça tá tão acelerada que a gente bota disco de Francisco Alves e sai voz de Carmem Miranda.
MAX
O general vai-lhe providenciar um gramofone novo.
GENERAL
A voz do dono, inspetor.
CHAVES
Oh, o Filipinho Mata-Rato. . .
PHILLIP
O senhor gosta de charutos, né? Tá aqui uma caixa de El Rey del Mundo.
CHAVES
E a bichona aí, não oferece nada?
GENI
Perfume Shalimar pra sua filha, inspetor.
TERESINHA
Espera aí. Afinal a noiva sou eu ou é o inspetor?
CHAVES
Macacos me mordam se aquele não é o Barrabás!
BARRABÁS
Em carne e osso.
CHAVES
Rapaz, tu é a cara do teu retrato falado!
BARRABÁS
Só que eu não tenho nada pro senhor, não.
CHAVES
Tu tá sabendo que esse teu conviva é o inimigo público número dois?
MAX
Deixa pra lá, Tigreza. Nesta data todo mundo é amigo. Como é, vamos à cerimônia?
CHAVES
Tá certo, hoje eu faço vista grossa. Mas amanhã eu te caço, viu? Tô de olho aberto em ti. "Seu" juiz, abre aí o livro de ocorrências e solta o verbo!
JUIZ
Contrato de matrimônio em regime de união de bens entre Teresinha de Jesus Fernandes de Duran, brasileira, maior, solteira, e Sebastião Pinto. . .
TERESINHA
Sebastião Pinto? Quem é Sebastião Pinto?
MAX (Sussurra)
Sou eu, baby, mas é só pro forma. . .
TERESINHA (Alto)
Sebastião Pinto? Ah, não, de jeito nenhum, eu estou aqui pra me casar com Max Overseas!
MAX (Puxa Teresinha) Não faz diferença, Teresinha. . .
TERESINHA (Mais alto)
Como não faz diferença? Por acaso Overseas é igual a Pinto? E Sebastião? Sebastião é horroroso!
MAX (No ouvido dela)
Fala baixo, Teresinha. Eu também sou Overseas. Sou Overseas por parte de mãe.
TERESINHA (Histérica)
E eu, como é que fico? Vou virar Teresinha Pinto? Deus me livre! Isso é uma humilhação!
MAX
ocê se assina como quiser, porra! Teresinha Fernandes, Teresinha Duran, Teresinha Overseas. . . Por favor, baby!
TERESINHA
Teresinha Pinto, jamais!
MAX
Claro, claro. . . Pode prosseguir, doutor.
JUIZ
De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim vírgula de vos receberdes por marido e mulher vírgula e vírgula em nome da lei vírgula vos declaro casados ponto.
General dá corda no gramofone que toca a marcha nupcial; Max puxa Teresinha para beijá-la; Johnny estoura champanhe e Teresinha leva um susto; todos avançam sobre a mesa do banquete.
MAX
Devagar, seus animais! Vocês não sabem se portar como cavalheiros? Nem diante duma senhora, dum meritíssimo e dum representante da lei? Você, Barrabás, tire as mãos da maionaise! São mesmo uns canibais. . .
TERESINHA
Posso servi-lo, inspetor Chaves?
CHAVES
Quero um bocado daquele pudim de morango.
MAX
Me passa os aspargos, baby.
JOHNNY
Olha o vinho branco!
TERESINHA
Onde é que tem pudim de morango, Max?
MAX
Pudim de morango?
CHAVES
Aquele lá no canto, cor-de-rosa caceta.
TERESINHA
Ah, o salmão.
CHAVES
Pois é, salmão, o que foi que eu disse? Também pode juntar uma colher daquela salada comunista.
TERESINHA
Passa a salada russa, Barrabás.
JOHNNY
A champanhe tá choca!
MAX
O champanhe, Johnny, o champanhe!
BARRABÁS
Esse queijo tá estragado ou alguém peidou?
GENI
Isso é camembert, ô, ignorante!
GENERAL
E essa meleca, que é isso?
GENI
É caviar, quadrúpede.
PHILLIP
Eu bem que desconfiava que a Lúcia era epilética.
BEN
Epilética, não. Piromaníaca.
GENI
Cala a boca.
BEN
E o capitão tá cada dia mais distraído.
PHILLIP
Por quê?
BEN
Casou com uma e mandou convite pro pai da outra.
GENI
Shhhhhhhhh!
GENERAL
Aí, quando a noiva ouviu o sobrenome, disse que não ia ficar com o pinto dele não.
BEN
E o juiz, hein?
PHILLIP
O juiz expulsou a noiva de campo.
GENERAL
Não, o juiz deu pênalti. Pênalti duplo.
BEN
Duplo?
GENERAL
É, porque a noiva pôs a mão nas duas bolas dentro da pequena área.
TERESINHA
O senhor está servido, senhor juiz?
JUIZ
Não, estou apenas cumprindo ordens.
TERESINHA
Então eu lhe ordeno que coma uma fatia de bolo. Quer bolo, Barrabás?
BARRABÁS
Quem gosta de doce é formiga ou é veado.
CHAVES
Eu gosto de doce. Sou formiga ou sou veado?
BARRABÁS
Pode escolher.
CHAVES
O quê? (Levanta-se e saca o revólver) Sou formiga ou veado?
MAX
Chaves. . .
CHAVES
Sai pra lá, Tião. Isto agora é caso pessoal. Tu tem dez segundos pra decidir. Formiga ou veado?
TERESINHA
Inspetor, sente-se! Que indelicadeza. . .
CHAVES
Cinco, quatro, três...
BARRABÁS
É Tigrão.
CHAVES
Não, Tigrão não vale. Tigrão é apelido. Tem que dizer que eu sou macho. Vamos, diz! Três, dois, um...
BARRABÁS
É macho.
CHAVES
Eu sou mesmo é macho! Alguém duvida? Hein? Muito bem, acabou a festa. Agora vocês são tudo bandido e eu sou o chefe de polícia, entendido? Todo mundo pra fora, já! (Saem todos correndo, exceto Max e Teresinha) Ô, juiz! Ô, bacharel de merda, você fica! Tu vai me ajudar a carregar os bagulhos. (Juiz volta e recolhe os presentes) Meu amigo Tião, minha afilhada Teresinha, eu não sei como agradecer. Tava tudo tão bom! O banquete então, tava do cacete! (Arrota) Posso beijar a noiva? (Beija Teresinha) Agora o dever me chama. Adeus, Tião. (Abraça Max) Divirtam-se, hein? Hein? Hein? (Saindo) Já besuntou a ferramenta, Tião? Ha ha ha! Ah, Tião, não esquece a facada no teu sogro, hein? (Sai)
Max e Teresinha ficam sós, de mãos dadas; a orquestra ataca a introdução em ritmo de mambo. Max e Teresinha cantam "O Casamento dos Pequenos Burgueses"
Ele faz o noivo correto
E ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia
Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho
Ele faz o macho irrequieto
E ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte
Ele é o funcionário completo
E ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros
Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos
Ele fala de cianureto
E ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida
Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias Até o fim dos dias
Ele às vezes cede um afeto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro
Ela esquenta a papa do neto
E ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os uma
Até que a morte os uma
Max e Teresinha se agarram e se beijam; black-out.
continua pág 57...
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NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.
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