sábado, 24 de setembro de 2022

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3b)

Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


PRIMEIRO ATO


continuando...


CENA 3 


Casa de Duran; sentado à escrivaninha, Duran fala ao telefone, enquanto Vitória anda de um lado para o outro


DURAN
Bravos, muito bem. Agora, Vitória, diga à tua filha que pro segundo ato ela já pode ir ensaiando a Marcha Fúnebre. Ou então aquela opereta, como é que se chama aquela opereta alemã?

VITÓRIA
O Anjo Azul.

DURAN
Não, a Viúva Alegre.

VITÓRIA
Ah é, Teresinha. Teu pai tá com uns projetos bem interessantes pro teu futuro. Há uma forte possibilidade de você vir a se safar dessa encrenca. Há uma bela possibilidade de você vir a se tornar viúva.

TERESINHA
Que isso, mamãe, vira essa boca pra lá! Acabei de me casar e você vem cheia de agouro? Saiba que o Max tem uma saúde de ferro!

VITÓRIA
Sinceramente, filha. Tem coisa melhor pra uma jovem esposa sem filhos do que enviuvar de repente? Sabe, o teu pai está entrando em contato com o chefe de polícia pra dar umas informações suplementares sobre as atividades do teu ex-marido. Eu digo ex, querida, porque esse delegado, quando põe as mãos num bandido... é uma graça! O teu pai é sócio dele. E ele deve trinta milhões de favores ao teu pai.

DURAN
Daí, se a filhota estiver disposta a colaborar...

VITÓRIA
Seu pai tá lhe dando a última oportunidade de se reintegrar na sociedade.

DURAN
É só dar a pista daquele delinquente que o inspetor Chaves completa o serviço.

TERESINHA
Mas vem cá. Vocês tão falando do dindinho?

VITÓRIA
Dindinho?

TERESINHA
O inspetor Chaves, ué. Meu padrinho de casamento. Ah, ele é uma pessoa encantadora! Tão fino! Até perguntou por vocês.. . Não sei de onde foi que saiu essa fama de mau. . . Ele e o Max são amigos de infância. Jogam biriba, bebem no mesmo copo, falam as mesmas gírias e torcem pro Vasco da Gama.

VITÓRIA
Você sabia disso, Duran?

DURAN
Não, mas já devia ter desconfiado há muito tempo! Todo mundo sabe que o indivíduo é contrabandista, fabrica licor francês no Grajaú, dá desfalque até no banco dos réus, quebra as minhas butiques e no domingo tá lá faceiro no Iate Clube, de braços com o comodoro. Ninguém tem costas quentes assim de graça.

TERESINHA
Pegam jacaré, pescam badejo, jogam monopólio. . .

VITÓRIA
Ih, Duran, o Chaves não vende essa amizade toda por trinta dinheiros. Acho melhor oferecer mais trinta por fora.

DURAN
Pois é, vou ter que alterar meus planos. Mas é interessante. . . Veja só que bonita manchete pro Diário da Noite: inimigo público número um é o melhor amigo do chefe de polícia. Que bomba! Só não sei é e um funcionário na posição do Chaves resiste a um escândalo desses. O que é uma pena, porque o Chaves tem muito apego àquele cargo. Ainda mais agora que saiu o novo plano de classificação do DASP e ele tá a três anos da aposentadoria. Pena mesmo. Depois de tanto sacrifício, tanta dedicação à causa pública, morrer na praia por tão pouco. . . Por uma amizade dessas. . .

VITÓRIA
E quem te consegue essa manchete? O Chateaubriand?

DURAN
Depois de amanhã é o primeiro de maio, certo? Dia do trabalhador. Dia de desfile, estádio repleto, chefe da nação e tudo. Pois então as nossas trabalhadoras vão aproveitar o feriado pra desfilar no estádio de São Januário. Ah, vai ser um espetáculo e tanto! Porque as nossas funcionárias normalmente são discretas. Costumam trabalhar à meia-luz, na calada da noite, nos cantos de bar, debaixo dos lençóis. . . Mas quando elas saírem em bando, às três da tarde, dando a volta olímpica com suas roupas e instrumentos de trabalho, ah, a arquibancada vai-se levantar! Vai ser gol do Diamante Negro! E as minhas trabalhadoras do Brasil, além de bolsinhas, meias de seda e camisas-de-vênus, vão ostentar cartazes. E os cartazes vão denunciar a corrupção nos serviços públicos, a insegurança do proletariado, a ameaça ao cidadão comum! O pânico da população civil! Coitado do Chaves.

VITÓRIA
E nós, Duran? E se envolverem o nome da gente? Ah, não, eu não posso ficar mal perante o chefe da nação!

DURAN
Te impressionei, hein, Vitória? Agora imagine o que não vai ficar impressionado o Chaves. Você acha que a essa altura ele vai-se preocupar com os culhões do amigo ou com os seus próprios culhões?

TERESINHA
Adeus, mamãe. E diga ao papai que o que ele tá planejando é mais criminoso que uma chantagem!

VITÓRIA
É mais criminoso que uma chantagem, Duran!

TERESINHA
Pior que criminoso. É um péssimo negócio!

DURAN
Taí, essa eu não entendi.

VITÓRIA Ele não entendeu, Teresinha.

TERESINHA
O pai é durinho mesmo. Diga que ele, papai, é tão importante pro inspetor quanto o inspetor é importante pro Max. Mas que o Max, vivo, pode ser mais importante que tudo pro papai. Com os contatos e as influências que o Max tem, as relações, as transações e os culhões, se eu fosse o papai, procurava me aproximar dele. Aliás, foi o que eu acabei de fazer.

DURAN
Diga à tua filha que eu não faço acordo com marginal. E diga também pra ela dizer ao marginal que vai ser muito difícil arrancar um tostão de mim.

TERESINHA
Então diga ao teu marido que nós não vamos precisar do dinheirinho dele, não. E diga também que enquanto ele parou no tempo do Artur Bernardes, enquanto ele vende filipeta ao Conde d'Eu, desconta promissória do Borba Gato e cria vaca em sociedade com o Caramuru, Max e eu entramos de peito aberto na era industrial. Adeus, mãe.

VITÓRIA
Minha filha, eu ia dizer "vai com Deus", mas pelo visto você preferiu a companhia de satanás.

TERESINHA 
Ah, mamãe, também não exagera!

VITÓRIA
Se há uma coisa que nunca te faltou nesta casa foi educação cristã. Ah, se a congregação mariana soubesse o que foi feito de ti... Quatro prostitutas — Dorinha, Shirley, Mimi e Dóris — vão entrando atabalhoadamente, atrapalhando-se com a porta giratória.

VITÓRIA
Que é isso? Vai, minha filha, vai. (Teresinha sai)

DURAN
Que carrossel é esse? Digo, que escarcéu é esse?

DORINHA
"Seu" Duran, nós precisamos falar com o senhor.

DURAN
Olá, Dorinha Tubão. Trouxe o borderô?

DORINHA
Arrasaram o bordel e arrombaram a gente.

DURAN
Jura? O que me contaram é que vocês se divertiram um bocado. Principalmente a Mimi Bibelô.

MIMI
Eu? Oh, "seu" Duran! Oh, dona Vitória! Vocês não sabem o pior. Aqueles brutos. . . (Soluça) Aqueles brutos me estupraram!

VITÓRIA
Oh, coitadinha. . . Doeu muito?

MIMI
Uma sangueira, dona Vitória!

DURAN
Oh, coitadinha. . . Nem deu tempo de chamar a polícia, né?

MIMI
Como é que eu ia chamar a polícia se tinha quatro cabos da PM em cima de mim?

DURAN
Espera aí. A arruaça não foi com o bando do Max?

SHIRLEY
Não, o Max não tem culpa, "seu" Duran.

DURAN
Não vem, Shirley Paquete. Você não! Esse Max já te emprenhou sete vezes e eu gastei um dinheirão em aborto!

SHIRLEY
Mas o senhor descontou...

DURAN
Quer dizer que o Max botou polícia e bandido juntos pra estuporar minha butique!

DORINHA
O Max só levou a turma dele pro puteiro. Depois é que a turma chamou os amigos da patrulha.

DURAN
Ah, Dorinha Tubão, você também é suspeita pra falar do Max. Cansou de dar pra ele e nunca prestou conta.



continua pág 66 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.


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