sábado, 5 de novembro de 2022

A Montanha Mágica - No restaurante

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo I


No restaurante

A sala do restaurante era clara, elegante e confortável. Estava situada logo à direita do vestíbulo, à frente dos salões, e conforme explicou Joachim, era frequentada principalmente pelos hóspedes recém-chegados ou por quem tinha visitas. Mas também aniversários e partidas iminentes eram festejados ali, assim como os resultados favoráveis de exames gerais. Em certas ocasiões, o ambiente era de franca alegria no restaurante, dizia Joachim, e até se servia champanhe. Mas nesse momento apenas se achava ali uma senhora de aproximadamente trinta anos, que lia um livro e ao mesmo tempo cantarolava baixinho, tamborilando na toalha com o dedo médio da mão esquerda. Quando os dois jovens se sentaram, mudou de lugar, a fim de dar-lhes as costas. Era misantropa – explicou Joachim, abafando a voz –, comia sempre no restaurante lendo um livro. Afirmava-se que desde muito jovem passava a vida em sanatórios para doenças pulmonares e nunca mais convivera com o mundo de fora.

– Ora, comparado com ela, você é apenas um principiante, com seus cinco meses, e ainda o será quando tiver cumprido um ano – disse Hans Castorp ao primo. Joachim tomou o cardápio, dando de ombros com um gesto que antes não lhe era peculiar.

Haviam escolhido a mesa mais próxima da janela, e que ficava elevada sobre um estrado. Era o lugar mais agradável da sala. Achavam-se sentados junto à cortina creme, frente a frente, com os rostos abrasados pela luz da pequena lâmpada de mesa, de quebra-luz vermelho. Hans Castorp juntou as mãos recém-lavadas e esfregou-as uma na outra com uma sensação de conforto e expectativa, como era seu hábito ao sentar-se à mesa, talvez porque seus antepassados costumassem rezar antes de tomar a sopa. Servia-os uma criada amável, de fala gutural, que trajava vestido preto com avental branco e tinha um amplo rosto de cores sumamente sadias. Com grande hilaridade, Hans Castorp aprendeu que as criadas na Suíça se chamavam Saaltöchter, filhas de sala. Pediram uma garrafa de Gruaud Larose, que Hans Castorp devolveu porque estava fria demais. A comida era excelente. O cardápio constava de sopa de aspargos, tomates recheados, um assado com diversos legumes e saladas, uma sobremesa particularmente bem preparada, queijos variados e frutas. Hans Castorp comeu muito, se bem que o seu apetite se evidenciasse menos intenso do que lhe parecera. Mas uma espécie de consideração por si próprio fazia-o comer fartamente, mesmo não sentindo fome.
Joachim não fez muita honra aos quitutes.

– Estou cansado dessa cozinha – disse – e isto se dá com todos aqui em cima; é costume resmungar contra a comida, pois quem se acha amarrado neste lugar por toda uma eternidade... – Em compensação, bebeu o vinho com prazer e mesmo com certa paixão. Evitando cuidadosamente qualquer frase por demais sentimental, manifestou várias vezes a sua satisfação por ter com quem trocar palavras sensatas.

– Sim, senhor, você veio mesmo a calhar – disse ele, e sua voz pausada revelava emoção. – Posso lhe afirmar que para mim a sua chegada é um grande acontecimento. É pelo menos uma variação... Quero dizer que ela representa um marco, uma subdivisão, nesta eterna e infinita monotonia...

– Mas o tempo deve passar depressa para vocês aqui – opinou Hans Castorp.

– Depressa ou devagar, como quiser – respondeu Joachim. – Propriamente não passa de modo algum; sabe? Aqui não há tempo nem vida; não senhor, não há nada disso – acrescentou meneando a cabeça. E novamente levantou a taça.

Também Hans Castorp voltou a beber, embora o rosto lhe ardesse como fogo. Mas o seu corpo continuava frio, e nos seus membros havia um desassossego todo especial, ao mesmo tempo eufórico e um tanto penoso. Suas palavras precipitavam-se; frequentemente se confundia, mas com um gesto displicente da mão passava por cima de tais incidentes. O próprio Joachim tornara-se mais animado também, e a conversa prosseguia ainda mais desembaraçada e alegre, quando a senhora da mesa vizinha, cessando subitamente de cantarolar e tamborilar, levantou-se e saiu. Comiam gesticulando com os garfos; davam-se ares de importância, com as bochechas túmidas de comida; riam-se, sacudiam a cabeça, encolhiam os ombros, e ainda com a boca cheia voltavam a palestrar. Joachim queria saber o que se passava em Hamburgo, e levou a conversa para o projeto da canalização do Elba.

– Fenomenal! – disse Hans Castorp. – É formidável para o desenvolvimento da nossa navegação. É de uma importância incalculável. No nosso orçamento, destinamos a essa obra cinquenta milhões para as despesas mais imediatas, e você pode ter certeza de que sabemos o que estamos fazendo.

Apesar da importância que atribuía à canalização do Elba, abandonou, porém, imediatamente o assunto, para pedir que Joachim lhe contasse mais pormenores da vida “aqui em cima” e dos hóspedes. Este lhe fez a vontade com grande prazer, já que se sentia feliz por ter uma oportunidade de desafogar-se e abrir-se. Teve de repetir a história dos cadáveres que eram transportados pela pista de trenó, e de assegurar mais uma vez que se tratava da mais estrita verdade. Como Hans Castorp mais uma vez desatasse a rir, o primo riu-se também, parecendo gozar de todo o coração. Depois relatou outras coisas divertidas, a fim de manter vivo o bom humor reinante. Falou de uma senhora que se sentava à mesma mesa que ele, uma tal Srª. Stöhr, mulher bastante doente, aliás, casada com um músico de Cannstatt, e que era a criatura mais inculta que já encontrara. Dizia ela “desinfecar”, com toda a seriedade. E ao assistente Krokowski intitulava de “fómulo”. Era preciso ouvir tudo isso, sem pestanejar. Ademais, era mexeriqueira, como de resto a maioria dos hóspedes ali em cima, e costumava contar que uma companheira, a Srª. Iltis, trazia consigo um “esterilete”.

– Imagine, chama aquilo de “esterilete”! Não é impagável? – E semideitados, recostando-se no espaldar das cadeiras, riram-se tanto, que o corpo lhes estremecia e ambos terminaram por ser acometidos de soluço.

No meio dessas conversas, Joachim se entristeceu ao pensar no seu infortúnio.

– Pois e, aqui estamos e nos divertimos – disse com uma expressão dolorosa, ainda interrompido, de vez em vez, pelas trepidações de seu diafragma – e no entanto não posso prever, nem de longe, quando poderei sair daqui. Pois, quando o Behrens me diz: “Mais meio ano”, sei que preciso preparar-me para um prazo maior. É bem duro isso. Você deve compreender como é triste para mim. Já me haviam aceitado no exército, e no mês que vem poderia fazer exames para oficial. Agora vivo aqui vadiando, com o termômetro na boca, conto os erros dessa ignorantona da Srª. Stöhr e perco meu tempo. Um ano tem tanta importância na nossa idade, traz tantas alterações e tantos progressos na vida lá de baixo! E eu obrigado a estagnar aqui como uma poça d'água, sim senhor, como um charco apodrecido. Não há exagero nenhum nessa comparação...

Ao invés de responder, Hans Castorp limitou-se a perguntar se havia um jeito de se obter porter nesse sanatório. O primo olhou-o com certa surpresa e verificou que estava a ponto de adormecer ou até já cochilava.

– Mas você está com sono! – disse Joachim. – Vamos, está na hora da gente ir para a cama.

– Não! Não está na hora – disse Hans Castorp com a língua trôpega. Mesmo assim seguiu Joachim, caminhando um pouco curvado, com as pernas duras, como um homem literalmente prostrado de cansaço. Fez, porém, um violento esforço para se dominar quando, no vestíbulo fracamente iluminado, ouviu o primo dizer:

– Aí está Krokowski. Acho que temos de parar um instante, para que eu possa apresentar você.

Diante da lareira de uma das salas de recepção, ao lado da escancarada porta corrediça, o Dr. Krokowski estava sentado junto à fonte de luz e lia um jornal. Pôs-se de pé, quando os dois jovens se aproximaram dele, e Joachim, em atitude militar, disse:

– Permita-me, doutor, que lhe apresente meu primo Castorp, de Hamburgo, que acaba de chegar.

O Dr. Krokowski cumprimentou o novo pensionista com uma certa cordialidade jovial, robusta e confortante, como se quisesse dar a entender que no contato com ele todo acanhamento era supérfluo e somente deveria reinar a mais risonha confiança. Tinha aproximadamente trinta e cinco anos; era espadaúdo, obeso e muito mais baixo do que os dois, de maneira que, para encará-los, via-se obrigado a deitar a cabeça para trás. Além disso era extremamente pálido, de uma palidez translúcida e mesmo fosforescente, que ainda mais se intensificava pelo sombrio fulgor dos olhos, pela negrura das sobrancelhas e da barba comprida, que terminava em duas pontas e já mostrava alguns fios brancos. Trajava uma fatiota preta, um tanto surrada, bem como sapatos pretos, perfurados como sandálias, grossas meias de lã cinzenta e um amplo colarinho mole, de um tipo que Hans Castorp só conhecia num fotógrafo de Dantzig, e que de fato dava ao Dr. Krokowski um ar de artista. Com um sorriso afetuoso, que fez com que os dentes amarelos apontassem por entre a barba, apertou a mão do jovem e disse numa arrastada voz de barítono, com algum sotaque estrangeiro:

– Seja bem-vindo, Sr. Castorp! Espero que o senhor se aclimate rapidamente e se sinta bem no nosso meio. Permita-me a pergunta: veio como paciente?

Era comovente ver como Hans Castorp se esforçava por mostrar-se cortês e dominar a sonolência. Sentia-se irritado pelo fato de estar tão pouco apresentável, e com a desconfiada soberba peculiar aos jovens, via no sorriso e na atitude confortante do médico apenas sinais de ironia indulgente. Respondeu que passaria três semanas ali, mencionou o seu exame e acrescentou que, graças a Deus, gozava a mais perfeita saúde.

– Será? – perguntou o Dr. Krokowski, avançando a cabeça obliquamente, como para caçoar, enquanto o seu sorriso se acentuava. – Nesse caso o senhor é um fenômeno digno de ser estudado. Eu, pelo menos, ainda não encontrei um homem de perfeita saúde. Posso perguntar qual é o exame que prestou?

– Sou engenheiro, doutor – comunicou Hans Castorp com dignidade e modéstia.

– Ah, engenheiro! – E o sorriso do Dr. Krokowski por assim dizer se retraiu, diminuindo momentaneamente em força e cordialidade. – Uma profissão excelente! De maneira que o senhor não pretende receber aqui nenhuma assistência médica, nem de ordem física nem psíquica?

– Não, muito obrigado – disse Hans Castorp, a ponto de dar um passo para trás.

Eis que o sorriso do Dr. Krokowski reapareceu vitoriosamente, e enquanto tornava a apertar a mão do jovem, exclamou com ênfase: – Pois então, durma bem, Sr. Castorp, na plena convicção de sua saúde inatacável! Durma bem e até amanhã! – Com essas palavras despediu-se dos jovens e voltou ao seu jornal.

Não havendo mais ascensorista, àquela hora, subiram a pé pela escada, silenciosos e um tanto perturbados pelo encontro com o Dr. Krokowski. Joachim acompanhou Hans Castorp até o número 34, onde o criado coxo já depositara a bagagem do recém-chegado. Continuaram a conversar durante um quarto de hora, enquanto Hans Castorp tirava da mala o pijama e os objetos de toucador, fumando um charuto grosso, mas leve. Essa noite ainda não tivera oportunidade para fumar um charuto, o que lhe parecia estranho e extraordinário.

– Ele dá a impressão de ter muita personalidade – disse, expelindo a fumaça. – Mas é pálido como cera. E o calçado que usa! Que coisa horrorosa! Imaginem, meias de lã cinzenta e ainda aquelas sandálias! Você acha que no fim ele se ofendeu?

– Ele é um pouco suscetível – admitiu Joachim. – Você não deveria ter rejeitado tão bruscamente a assistência médica, pelo menos o tratamento psíquico. Ele não gosta que alguém se esquive a isso. Comigo também antipatiza, porque não me abro bastante. Mas, de vez em quando, conto-lhe um sonho, para que tenha alguma coisa que analisar.

– Pois então escandalizei-o? Que vou fazer? – disse Hans Castorp, agastado; estava pouco satisfeito consigo próprio, por ter melindrado alguém. Ao mesmo tempo o cansaço acometia-o com força redobrada. – Boa noite – disse. – Estou caindo de sono.

– Às oito virei buscar você para o café da manhã – prometeu Joachim ao sair.

Hans Castorp aprontou-se apenas ligeiramente para a noite. Foi dominado pelo sono, apenas apagada a lâmpada de cabeceira. Mas sobressaltou-se mais uma vez, ao recordar-se de que na antevéspera alguém morrera nessa mesma cama.

– Sem dúvida não foi a primeira vez – disse de si para si, como se isso pudesse tranquilizá-lo. – Afinal de contas, é um leito de morte, um simples leito de morte. – E adormeceu.

Logo, porém, começou a sonhar. Sonhou quase sem interrupção até a manhã do dia seguinte. Em primeiro lugar, apareceu-lhe Joachim Ziemssen, numa posição estranhamente desengonçada, a descer num trenó por uma pista inclinada. Era de um palor tão fosforescente quanto o do Dr. Krokowski, e à sua frente achava-se sentado o aristocrata austríaco, cuja imagem era um tanto vaga, como a de alguém que apenas ouvimos tossir. “Pouco se nos dá, aqui em cima”, disse o desengonçado Joachim, e logo era ele, e não o aristocrata, quem tossia daquela maneira horripilante e lamacenta. Ao ouvi-lo, Hans Castorp verteu lágrimas amargas e verificou que era preciso correr à farmácia para comprar cold cream. Mas à beira do caminho estava sentada a Srª. Iltis, de focinho pontiagudo, segurando na mão alguma coisa, que devia representar o seu “esterilete”, mas na realidade era apenas um aparelho de gilete. Essa visão, por sua vez, fez com que Hans Castorp desatasse a rir, e dessa forma passou pelas mais diferentes emoções, até que o despertou a manhã, despontando através da porta semiaberta da sacada.

continua pág 013...

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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.


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