terça-feira, 8 de novembro de 2022

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1

 Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


SEGUNDO ATO

2. PRÓLOGO


Cortina fechada; luz em João Alegre, sempre batucando na caixinha de
fósforos; a orquestra dá a introdução João Alegre canta "Homenagem ao Malandro”.




Eu fui fazer
Um samba em homenagem
A nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa
E perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora jâ não é normal
O que dá de malandro
Regular, profissional
Malandro com aparato
De malandro oficial
Malandro candidato
A malandro federal
Malandro com retrato
Na coluna social
Malandro com contrato
Com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
Só espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho
E tralha e tal
Dizem as más línguas
Que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
Black-out.









CENA 1

Esconderijo de Max; Max e seus capangas sentados nos caixotes.

MAX
Olha aí, macacada. A caixinha do mês rendeu vinte contos redondinhos. Quer dizer que os felizardos têm dois contos pra repartir.

BARRABÁS
Ficou combinado que eu sou mão-de-obra qualificada, Max. Não esquece que agora eu recebo por dois.

MAX
É mesmo? Então tá. Todo mundo ouviu? Tem que espremer essa divisão aí que o Barrabás agora ganha por dois.

TODOS
Aqui ó! No meu ele não mete a mão.

BARRABÁS
Não foi isso que a gente acertou, Max.

MAX
Ah, não? Então eu entendi mal. Olha aí, macacada, fica o dito por não dito.

BARRABÁS
Não enrola, Max. Quem ficou de dobrar o meu bocado foi você. Da tua parte, entendeu? Tu leva noventa por cento e nem arregaça as mangas, tá certo isso?

MAX
O quê? É luta de classes, é? Cuidado, rapaz, vê lá o que você anda lendo. E decide se quer ser socialista ou contrabandista. As duas coisas não pode não.

TERESINHA (Entra)
Max, eu preciso falar contigo.

MAX
Teresinha, não tá vendo que estou em plena reunião de diretoria?

BARRABÁS
Mulher é um bicho enxerido pra caralho!

BEN
Ô Barrabás, você não viu ela dizer que é urgentíssimo? No mínimo deve ser pra abotoar o vestido dela.

GENI
Pra mim ela tá naqueles dias. Veio pedir dinheiro pro tampão.

TERESINHA
Preciso te falar da conversa com os meus pais.

MAX
Ah, que tal? Eles vibraram com a boa nova?

TERESINHA
É sério, Max. Faz a mala e desaparece.

MAX
Que isso, baby. Recado do velho? Olha que eu me borro todo, hein?

TERESINHA
Não brinca com o papai, Max. Ele já arruinou a carreira de muita gente. Ele é quase tão poderoso quanto um bicheiro.

MAX
O pessoal tá me esperando, Teresinha.

TERESINHA
Max, o papai vai botar a polícia atrás de ti.

MAX
Polícia? Não diga. Com o Tigrão na linha de frente. . .

TERESINHA
Exatamente. O inspetor Chaves.

MAX
Tá louca, mulher? Minha amizade com o Tigreza não tem preço.

TERESINHA
Tem sim. Sessenta contos e um emprego público. Papai armou um bafafá pra denunciar as falcatruas do inspetor. Vai botar todas as funcionárias pra desfilar com cartaz e tudo no primeiro de maio. A não ser que o inspetor te pegue, é claro.

MAX
Não acredito. . .

TERESINHA
Te apressa, Max, faz a mala e desaparece!

MAX
Eu não posso me ausentar, tenho muito trabalho. . .

TERESINHA
É só por uns dias. Uma semana, no máximo, e a coisa esfria. . .

MAX
Em uma semana entram dois cargueiros na baía.

TERESINHA
Deixa comigo. Enquanto você tá fora, eu cuido dos negócios.

MAX
O que é que você entende dos meus negócios?

TERESINHA
Max, eu vi quando o papai telefonou pro Chaves. . . Ai, eu não queria dizer, me dá arrepio só de pensar. . . Ele deu vinte e quatro horas pro inspetor acabar com a tua sombra. Te liquidar, Max. A sangue-frio! À queima-roupa. Foge, Max, pelo amor de Deus!

MAX
Tá bem, Teresinha, eu vou. Mas não é por mim, não, que eu não me assusto com essas coisas, viu?

TERESINHA
Vai por mim, Max, por mim!

MAX
É, pois é. É por você que eu vou. Mas como é que eu faço com esses cargueiros? Você compreende, Teresinha, se eu falto a um compromisso posso perder pra sempre o fornecedor.

TERESINHA
Já te disse, Max, pode deixar comigo.

MAX
Eu vou deixar as instruções com os rapazes. Contigo eu deixo o segredo do cofre, que é pra pagar a mercadoria, certo?

TERESINHA
Certo. Mas depois a gente precisa ter uma conversinha sobre o teu futuro. Max, enquanto você continuar com esses negócios escusos, tá sujeito a viver fugindo da justiça.

MAX
Ah, assim não. Eu não me casei contigo pra você se meter na minha vida profissional. Eu vou continuar trabalhando no que sempre me orgulhei de trabalhar.

TERESINHA
Mas é claro, querido, é claro. Ninguém tá pedindo pra você mudar de atividade. Só o que precisa, é dar um nome legal à tua organização. Põe um "esse-a" ou um "ele-tê-dê-a" atrás do nome e pronto, constituiu a firma. Firma de importações, por exemplo. É tão digno quanto contrabando e não oferece perigo. Você passa a ser pessoa jurídica, igualzinho ao papai. Pessoa jurídica não vai presa. Pessoa jurídica não apanha da polícia... Acho até que é imortal, pessoa jurídica. MAX Teresinha, eu não quero que você fique nervosa por minha causa. É melhor eu cair fora logo. Deixa eu falar com o pessoal.

TERESINHA
Sobre esse pessoal a gente também precisa conversar. Em primeiro lugar, é um absurdo você dar participação nos lucros da nossa empresa a essa gente. Isso aí tinha que ser assalariado. Muito bem assalariado, é evidente! Por isso mesmo, é uma pena, mas aos poucos você vai ter que se desembaraçar de uns e outros. . .

MAX
Eu? Me separar do General? Do Johnny? Dos meus companheiros de tantas batalhas? Francamente, Teresinha, onde foi que você deixou seu coração?

TERESINHA
Meu coração é teu, Max. É por ti que ele raciocina. E também é por ti que ele dispara quando sente medo. Vai, Max, eu te suplico! Foge daqui!

MAX
Macacada, muita atenção! Eu tenho que ir a Poços de Caldas tirar umas férias de alguns dias. Ordens médicas. Não, não fiquem preocupados que não é nada grave. Eu só quero que vocês se preocupem com as recomendações que vou deixar. Amanhã, ao toque da alvorada, General e Big Ben vão se deslocar para Niterói e Geni e Johnny devem subir na Urca, todos equipados com seus binóculos prismáticos. Os quatro ficarão atentos à entrada de um navio de fanico, porte médio, bandeira panamenha, que vai despontar de nor-nordeste a uma velocidade de sete nós. A junta que estiver postada na Urca deve vigiar a terceira escotilha a bombordo, partindo da proa, certo?

GENI E JOHNNY
Certo, senhor capitão.

MAX
A parelha que estiver no Saco de São Francisco deve observar a segunda escotilha a estibordo, partindo da popa, certo?

GENERAL E BEN
Certo, senhor capitão.

MAX
Quando uma lanterna piscar três vezes nessas escotilhas os quatro devem desertar de seus postos e dirigir-se ao Amarelinho, onde Phillip estará de prontidão. Pra você, Phillip, eu reservei a função mais arrojada, qual seja a de me substituir.

PHILLIP
Certo, senhor capitão.

MAX
Assim que você avistar seus camaradas, deverá avançar até o cais do porto. Quando o navio atracar, coloque-se estrategicamente junto à escadinha. A cada homem que descer você vai perguntar baixinho: message from Tony Smith? Message from Tony Smith? Até que um desses homens, ao ouvir essas palavras, vai te abraçar bem forte, fingindo ser um velho amigo. Esse aí você traz ao escritório. Aqui ele vai indicar no mapa o ponto exato em que a mercadoria foi lançada. Barrabás comandará o resgate e Teresinha entregará os dólares, certo?

PHILLIP
Como é que é mesmo aquele nome alemão?

MAX
A senha é: message from Tony Smith.

PHILLIP
Tony Chmid?

MAX
Smith! Com a língua entre os dentes. Smith!

PHILLIP
Chimid?

MAX
Assim não dá! Barrabás, diga Smith.

BARRABÁS
Chhhh. . . Chmiz.

TODOS
Chi. . . Chinite. . . Chimix? Chimik. ..

MAX
Realmente, são uns idiotas! Em que merda de Cultura Inglesa vocês estudaram, hein?

TERESINHA
Message from Tony Smith?

MAX
Olha só como a Teresinha pronuncia bem. Só que eu não posso mandar minha esposa pro cais do porto...

TERESINHA
Não se preocupe, Max. Eu ensino a eles. Pode fugir sossegado que tudo vai dar certo.

MAX
Pessoal, enquanto eu estiver de repouso absoluto quem manda aqui é Teresinha Overseas.

TODOS
O quê?

BARRABÁS
Essa não.

MAX
Essa sim! É ela quem dá ordens e contra-ordens, quem compra e vende, quem paga ou deixa de pagar, como se fosse eu! E eu não admito indisciplina, entenderam? Geni, me passa uma daquelas caixas azuis, ali no alto, que eu vou levar comigo.

GENI
Eu levo pra você, Max.

MAX
Não. Eu vou sozinho.

GENI
Me leva contigo, Max. Eu adoro Poços de Caldas.

MAX (Arranca a caixa das mãos de Geni
Já disse que vou sozinho!

GENI
Então eu vou atrás.

MAX (Beija Teresinha
Eu não demoro, baby.

TERESINHA
O segredo, Max. . .

MAX (No ouvido dela) Te amo como nunca amei ninguém. . .

TERESINHA
Não, Max, o segredo do cofre.

MAX
Ah, sim. (No ouvido dela
Três voltas pra direita até o dezesseis, uma pra esquerda até o nove e três pra direita até o vinte e cinco.

TERESINHA
Eu também te amo, Max. Adeus. Cuidado. 

Max vai saindo, seguido por Geni; dá uma súbita meia-volta e assusta Geni; Max sai; Geni dâ um tempo e corre atrás; Teresinha senta-se num caixote mais alto.

TERESINHA
Muito bem, meninos. Vamos começar as aulas de inglês. Big Ben, what time is it? 

Todos riem, assobiam, fazem barulho, atiram bolas de papel, etc.

BARRABÁS
Dona, a turma quer saber uma coisa em inglês e tá sem jeito de perguntar.

TERESINHA
Que bobagem! Pergunte você, Barrabás.

BARRABÁS
Como é que se pronuncia: eu da mãe tem dente?

Todos recomeçam a algazarra

BARRABÁS
A professorinha tá puta, pessoal... 

Mais algazarra

TERESINHA
Barrabás, cospe esse chiclete! 

Barrabás faz uma bola com o chiclete; Teresinha desce do caixote, comprime as bochechas de Barrabás e tira-lhe o chiclete da boca.

TERESINHA
Pode ir embora!

BARRABÁS
Tô expulso da classe, dona?

TERESINHA
Não. Tá expulso do meu negócio!

BARRABÁS
Eu trabalho com o Max há quinze anos, mocinha. Pra alguém me despedir, tem que ser ele.

TERESINHA
Ele me deu carta branca pra conduzir os negócios. E eu decidi que você não presta mais. Fora!

BARRABÁS
Tá bem, eu vou. Mas quando o Max voltar, eu volto.

TERESINHA
Claro, você pode pedir a ele pra ser readmitido. Só que eu vou colocar pra ele o seguinte: é Barrabás ou eu. Com quem você acha que ele vai ficar, gracinha? Fora!

BARRABÁS
Isso é uma puta sacanagem. Golpe baixo de mulher. Se você fosse homem, eu te cobria de porrada!

TERESINHA (Esbofeteia-o
Cobria nada! Você fala grosso mas não é de nada! Vamos, reage! É uma bicha enrustida, ha ha. Fora! (Barabás saí) Muito bem, pessoal, alguém mais tem alguma queixa? (Silêncio) Então vamos recomeçar a lição. Todo mundo repetindo comigo. John is a boy.

TODOS
Dijon is a bói.

TERESINHA
Mary is a girl.

TODOS
Mérí ís a guél.
 
TERESINHA
Mary is,John's sister.

TODOS
Méri is Dijon sister.

TERESINHA
John is Mary's brother.

TODOS
Dijon is Méris brózer.

TERESINHA
Brother.

TODOS
Brózer.

TERESINHA
Brother.

TODOS
Brózer.

TERESINHA
Brother.

TODOS
Brózer.

Luz vai apagando em resistência; ouve-se o som de um piano.


continua pág 85 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2c)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3c)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 2(a)
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.

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