quarta-feira, 19 de outubro de 2022

A Montanha Mágica - Número 34

 Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo 1


Número 34

Logo à direita, entre o portão e o guarda-vento, achava-se a guarita do porteiro. Um criado de tipo francês, vestido com libré cinzenta igual à do homem coxo da estação, estava ali sentado em frente do telefone, lendo jornais. Saiu ao encontro dos recém-chegados e os conduziu através do vestíbulo bem iluminado, a cuja direita ficavam os salões. Ao passar, Hans Castorp lançou um olhar para dentro e notou que estavam vazios. Perguntou ao primo onde se encontravam os hóspedes. 

 – Estão fazendo repouso – respondeu o primo. – Eu bem estou de licença, porque queria receber você. Normalmente também me deito na sacada, depois do jantar. 

 Pouco faltou para que Hans Castorp voltasse a estourar de riso. 

 – Como? Em plena escuridão, vocês ainda se deitam na sacada? – indagou com voz vacilante. 

 – Sim senhor. Isso faz parte do regulamento. Das oito às dez. Mas venha agora ver seu quarto e lavar as mãos. 

 Entraram no elevador, cujo mecanismo elétrico foi posto em ação pelo criado francês. Enquanto subiam, Hans Castorp enxugou os olhos. 

 – Estou todo moído e exausto de tanto rir – disse, respirando pela boca. – Você me contou mil coisas estranhas... Aquela história da dissecação psíquica é o cúmulo; por esta não esperava. Estou aliás um pouco cansado pela viagem. Você sofre também de pés frios? Ao mesmo tempo sinto que me arde o rosto. E bem desagradável. A gente jantará logo, não é? Tenho a impressão de que estou com fome. Come-se bem aqui em cima, entre vocês? 

 A passo silencioso, andavam pela passadeira de fibra de coqueiro, que cobria o estreito corredor. Globos de vidro fosco difundiam uma luz pálida. As paredes resplandeciam, brancas e duras, revestidas de uma tinta a óleo com aparência de verniz. Surgiu uma enfermeira de touca branca, trazendo no nariz um pince-nez, cujo cordão lhe passava por trás da orelha. Era evidentemente uma irmã protestante, sem verdadeira dedicação ao oficio, curiosa e irritada de tanto tédio que pesava sobre ela. Em dois pontos do corredor, em frente das alvas portas numeradas, viam-se no chão uns recipientes grandes, bojudos, de gargalo curto, sobre cuja finalidade Hans Castorp se esqueceu de pedir explicações. 

 – Aqui está o seu quarto – disse Joachim. – Número 34. À direita fica o meu, e à esquerda mora um casal russo; gente um pouco relaxada e barulhenta, não posso negá-lo, mas não houve jeito de evitar isso. Bem! Que tal lhe parece? 

 Havia portas duplas, com cabides no espaço entre elas. Joachim acendera a lâmpada do teto, e à sua luz trêmula o quarto se apresentava alegre e quieto, com os móveis brancos e práticos, os papéis de parede igualmente brancos, resistentes e laváveis, o linóleo limpo, cobrindo o soalho, e as cortinas de linho, bordadas de maneira simples e graciosa, conforme o gosto moderno. A porta da sacada estava aberta. Enxergavam-se as luzes do vale e ouvia-se ao longe uma música de baile. O atencioso Joachim colocara algumas flores num pequeno vaso sobre a cômoda – o que a época oferecia, aquilégias e umas poucas campânulas, que ele mesmo colhera na encosta. 

 – Muito amável da sua parte – disse Hans Castorp. – Que quarto simpático! Num lugar destes dá prazer passar algumas semanas. – Anteontem morreu aqui uma americana – disse Joachim. – Behrens achou logo que a coisa se acabaria antes da sua chegada, e que então você poderia ficar com o quarto. O noivo estava ao lado dela. Embora fosse oficial da marinha inglesa, não demonstrou muito valor. A cada instante saía ao corredor, para chorar que nem um menino. E depois esfregava as faces com cold cream, porque estava escanhoado e as lágrimas lhe ardiam na pele. Na noite de anteontem, a americana teve duas hemoptises de primeira, e com isso acabou-se a festa. Mas ela já se foi ontem de manhã. Claro que depois desinfetaram tudo a fundo, com formalina; não sabe? Dizem que é excelente nesses casos. 

 Hans Castorp ouviu essa história numa distração nervosa. Estava de mangas arregaçadas, à frente da ampla pia, cujas torneiras niqueladas cintilavam à luz elétrica. Mal lançou um olhar fugidio para a cama de metal branco, coberta de roupa limpa. 

 – Desinfetaram então? Está ótimo – disse ele, com certa loquacidade e sem muito propósito, enquanto lavava e enxugava as mãos. – Pois é, aldeído metílico; não há micróbio que resista a isso. H2CO, sim senhor! Mas tem um cheiro picante, não é? Naturalmente, a mais rigorosa limpeza é indispensável... – Sua pronúncia era mais acentuadamente hamburguesa do que a do primo, que desde os seus tempos de estudante perdera os vestígios do dialeto da sua terra. Hans Castorp continuou conversando com grande desembaraço: – Que queria eu dizer?... O oficial de marinha provavelmente se barbeava com aparelho de gilete, achou eu; esses troços esfolam a pele mais facilmente do que uma navalha bem afiada. Eu, pelo menos, fiz essa experiência, e por isso uso alternadamente uma e outra coisa... Ora, é lógico que a água salgada dói na pele irritada. E no serviço militar, quem sabe se o homem não se acostumou ao uso do cold cream; nisso não vejo nada de surpreendente... – E prosseguindo, acrescentou que tinha na maleta duzentos Maria Mancini, seu charuto preferido. A inspeção alfandegária fora muito condescendente. A seguir transmitiu as saudações de diversas pessoas de sua cidade natal. -será que não aquecem os quartos? – exclamou de repente, e correu aos radiadores, a fim de apalpá-los. 

 – Não, eles costumam manter-nos a uma temperatura fresca – respondeu Joachim. – É preciso um frio muito mais intenso, para que acendam a calefação central já em agosto. 

 – Agosto, qual agosto! – disse Hans Castorp. – Mas se estou com frio, um frio horroroso, ao menos no corpo, pois o resto me arde! Olhe, experimente, estou com o rosto em brasa. 

 Essa ideia de que alguém lhe tocasse o rosto absolutamente não condizia com a mentalidade de Hans Castorp, e a ele mesmo causou impressão penosa. Ademais, Joachim não correspondeu ao convite, limitando-se a dizer: 

 – É do ar. Não quer dizer nada. O próprio Behrens anda o dia inteiro com as faces azuladas. Há pessoas que nunca se habituam. Então, go on, senão nós não encontraremos mais nada para comer. 

 Quando saíram, a enfermeira voltou a aparecer, para examiná-los com olhares míopes e curiosos. No primeiro andar, Hans Castorp deteve-se de repente, imobilizado por um ruído simplesmente atroz, que se ouvia a pouca distância, por trás de uma volta do corredor; um ruído não muito forte, mas de som tão lúgubre, que o jovem fez uma careta e mirou o primo com os olhos arregalados. Era evidentemente uma tosse, a tosse de um homem, mas uma tosse em nada parecida com nenhuma outra que Hans Castorp jamais ouvira; sim, uma tosse em comparação com a qual todas as demais pareciam sinais de magnífica e sadia vitalidade; uma tosse inteiramente despida de prazer e alivio, que não se efetuava num acesso regular, mas que soava como se alguém chafurdasse débil e horripilantemente no lamaçal da podridão orgânica. 

 – Pois é – disse Joachim. – Este é um caso sério. Um aristocrata austríaco, homem elegante, como que feito para andar a cavalo. E agora vai desse jeito. Mas por enquanto ainda passeia. 

 Continuavam no caminho. Hans Castorp falou pormenorizadamente da tosse do cavaleiro. 

 – Você deve considerar – disse ele que nunca ouvi coisa semelhante; – tudo aqui é completamente novo para mim. É natural que me impressione com isso. Há muitas espécies de tosse, tosses secas e tosses soltas. Diz-se geralmente que as soltas são mais benignas do que aquelas que fazem a gente ladrar. Em minha juventude – ele disse mesmo “em minha juventude” – quando tive o crupe, ladrava como um lobo, e todo o mundo sentiu-se aliviado quando a tosse se tornou mais solta. Lembro-me ainda muito bem. Mas uma tosse como esta nunca se viu, pelo menos eu não tinha ideia de que existia uma coisa dessas. Já não é uma tosse viva. Não é seca, mas também não se pode chamar de solta. Não encontro, nem de longe, a palavra adequada. É como se se descortinasse o interior do homem, e tudo fosse lodo e pântano... 

 – Ora veja – disse Joachim –, ouço essas coisas todos os dias. Para mim, pode dispensar a descrição. 

 Mas Hans Castorp não conseguiu dominar-se. Afirmou repetidas vezes que para ele era como se tivesse lançado um olhar no interior do aristocrata. Quando entraram no restaurante, seus olhos fatigados da viagem mostravam um brilho exaltado. 


continua pág 010...

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Leia também:

A Montanha Mágica - Propósito
A Montanha Mágica - A Chegada
A Montanha Mágica - Número 34
A Montanha Mágica - No restaurante
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.


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