domingo, 6 de novembro de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (III) 23bs – a carrocinha e os gravetos

becos sem saída


(III) o descolocado
23bs – a carrocinha e os gravetos

baitasar


memória coloca o feijão preto de molho, depois pega a sacola do açougue e acomoda ao lado das partes desmembradas, pega as duas orelhas de porco – com uma gilete vai limpando os cabelos que costumam trazer – e as joga na bacia do assento, depois o rabo, a linguiça de porco e a língua de vaca, a pata vai deixando de lado

virgílio olha para os muriquinhos, Restamos nós, coloca a mão na cabeça do supimpo, um mistério nada pequeno, deseja de coração que as coisas se passem bem com ele, o mais velho não recebe mais nenhum conforto do pai, apenas estima que ele seja bondoso, orgulhoso, e acima de tudo, que ele seja um valente, Esse precisa crescer forte, sem paparicos, o miúdo menor ainda tem tempo de brandura e cuidado.

Estão me escutando?

têm todo respeito pelo virgílio que eles possam ter, aprendem conforme o velho costume milenar: é na família onde começa a vida e o amor nunca acaba, virgílio deseja de todo coração que a vida se passe assim tão simples e protegida, mas sabe que não é bem assim, os miúdos em algum momento vão encontrar a dor amarga da violência e a tristeza do abandono, é a trilha de todo preto 

Sim, painho...

Louvado seja Deus, estão atentos...

elogiado seja o painho sem egoísmo e covardia, orgulhoso do privilégio de ser pai, tem vez que é estranho e descabido, outras é apenas um pai que reagindo aos desafios da vida sempre se aguenta bem, não vai desaparecer e se fazer esquecido

Eu e mãinha precisamos que os dois saiam agora já.

Já?!

Pra quê?

Pra ajuntá tudo que é galho e pau jogado no chão do beco e nas ruas da Villa. Hoje, o fogão de pedra vai ficar queimando lenha por muito tempo.

a mãos dos miúdos se retesaram da surpresa, a vontade foi retesar o peito estufado até o ar acabar, finalmente, serviço de gente grande, eles já tinham as unhas sujas da terra com seus soldadinhos de pedra e brincadeiras da polícia com a escravaria, agora iam ficar mais sujas com tarefa de gente grande

juntavam pedras de todos os tamanhos e moldes que pudessem enfiar nos bolsos, nos caminhos de ida e volta da escola, em casa as pedrinhas viravam seus exércitos, encenando lutas com tiros, explosões, prisões, seus exércitos sempre venciam, Eu tô aqui, Aqui onde, Junto do pelourinho, Onde, Aqui! Pode vir, vem sem medo, Eu sei, tô vendo a tua pulícia, Aqui é lugar onde o bom vive com o mau, Acho melhor não, O que foi, Aí vem mais pulícia, Cuidado que ela agarra qualquer um, Eu sei, mãinha já disse que eles agarra qualquer um, E o que mais ela disse, Nunca correr da pulícia porque o chicote entra pelas costas, Só isso, Nunca andar descalço, Então, vai ficar pra vê, Eu não, Então, se joga no chão e abaixa a cabeça, Não quero, Então, coloca as mãos na parede e abre as pernas! Fica quieto! Nenhum piu nem ai, A púliça atiça, Ela é da justiça, Não é não, ela é do desaforo, Sai do beco, Aqui não tem tesouro, Não adianta negar nem choramingar, Entra no beco, Não entro, Entra, piá de merda, Nesse mundo não há quem me mande, Não vai obedecer, Só sei obedecer São Bento Grande, Cuidado com a valentia. A pulícia só cumpre com a ordem dada, Corre, as pedrinhas voavam de um lado e outro, atiçadas pelos muriquinhos, miragem de uma fábula de palavras em um brincadeira de pedrinhas, um mundo de crianças feito para tirar de dentro os medos do possível, Aqui... quanto mais se apanha menos se obedece, Não esqueça que a justiça não pesa o que devia, Eu sei! Ela pesa mais de um lado do que do outro, Isso, Acertei, Acertou em quê, No capitão-do-mato, Gostei da mira, Esse mundo não tem dono, Não esqueça que a pulícia tem chefia, Onde tá essa chefia, Ali, Onde, Atrás da pedra grandona, Vou jogar, Joga se tu tem coragem, Joguei, Errou, Não errei não, Cuidado com o veneno, O coração é a proteção contra o veneno, Acho que tu precisa de ajuda, Vou pedir ajuda pra São Bento Pequeno, Não dá tempo, tá chegando o sargento da Capitania, Vamos lançar cavalaria com valentia, Cuidado, valentão, Minha cabeça é o meu guia contra o fardamento da delegacia, Não adianta o armamento, Vamos tocar cavalaria contra a tirania, Ele quer o documento, grita, empurra e atira, Se exceder no tratamento vai ter pancadaria, Cuidado, eu sou brabo, Pra quem é brabo e violento vamos tocar cavalaria!

Lamparino!

Supimpo!

Xiiii... é painho, deixa tudo no lugar, Tá bem, Depois a gente continua.

era uma tarefa razoável, útil e decente pelos caminhos da villa, os dois muriquinhos pareciam dois vulcões de fogo em lama encandecida derretidos, mas também conforme as memórias brincadas eles se chamavam soldados da cavalaria, a verdadeira cavalaria espiritual

Estão prontos?

Sim

O fogão de pedra vai ficar muito tempo com o brazeiro queimando lenha.

os dois soltaram nos bolsos algumas das pedrinhas da cavalaria, preto não tem vida branda, madura ou doce, tem é uma longa tensão e tormento para libertar sua vontade das hostilidades descomedidas e degeneradas

Tão esperando o quê?

Nada, já estamos indo, os dois se olham com cumplicidade fraca de vontade, excessivamente cuidadosos, temerosos de algum mal-entendido, Pergunta, Eu não, pergunta tu.

não é uma rebelião, apenas não sabem se já podem assumir uma outra posição, ninguém diz o que eles são nem qual pedacinho de tudo eles são, é uma descoberta acidentada de tudo que são ou já foram – o que foram já foi –, o que são está sendo, a cada momento uma descoberta nova

O que é isso, agora?

não tinham certeza se a curiosidade do painho era bem-intencionada ou impaciente, tem vez que ele é um conhecido-desconhecido, dava medo

Pergunta, Lamparino...

Eu não, tu pergunta.

como é difícil ser feliz e verdadeiro consigo mesmo, os dois estavam pálidos e murchos, a sensação do gosto não experimentado, um medo ruim e irritante da vontade não ser aprovada pelo painho

O que é, Lamparino?

o muriquinho piquinino olhou o mano, ele parecia mais infeliz e desgraçado que algum coitado apanhando, Nada, painho. O Supa tá imaginando coisas.

E o que ele tá imaginando?

o instinto do lamparino sussurrava, Seja leve e livre, mas a vontade se negava, O tombo é grande.

Diz, Lamparino...

até que a própria vontade se transforma em alguma coisa que vira realidade, deixa de ser sonho ou pesadelo

Podemos levar a carrocinha pra buscar os gravetos?

Nem pensar!

Painho, a gente conta o tempo que vai poder puxar o carrinho!

Puxar carrinho não é sonho, é embaraço! Esse dali, é o socorro do nosso ganha-pão quando tudo mais não dá certo. E tem a mãe de vocês me engolindo inteiro se eu deixar. Nem pensar.

os dois se foram vigiados pelo virgílio até colocarem os pés no beco, levavam uma corda para amarrar os gravetos e pendurar nas costas


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