quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (7.3) - A terça-feira do armistício

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(7.3)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío



continuando...


A terça-feira do armistício amanheceu fresca e chuvosa. O Coronel Aureliano Buendía apareceu na cozinha antes das cinco e tomou o seu café sem açúcar habitual.

“Num dia como este você veio ao mundo”, Úrsula disse a ele. “Todos se assustaram com os seus olhos abertos.” Ele não lhe prestou atenção, porque estava alerta aos preparos da tropa, aos toques de cometa e às vozes de comando que estragavam a alvorada. Ainda que depois de tantos anos de guerra estes ruídos lhe devessem parecer familiares, desta vez sentiu o mesmo desalento nos joelhos, e o mesmo arrepio da pele que tinha sentido na juventude, em presença de uma mulher nua. Pensou confusamente, enfim capturado numa armadilha da saudade, que talvez se tivesse se casado com ela teria sido um homem sem guerra e sem glória, um artesão sem nome, um animal feliz. Esse estremecimento tardio, que não figurava nas suas previsões, amargou-lhe o café da manhã. As sete horas, quando o Coronel Gerineldo Márquez foi procurá-lo em companhia de um grupo de oficiais rebeldes, encontrou-o mais taciturno do que nunca, mais pensativo e solitário. Úrsula tratou de jogar-lhe sobre os ombros uma manta nova. “O que é que o governo vai pensar”, disse a ele. “Vão imaginar que você se rendeu porque já não tinha nem com que comprar uma manta.”

Mas ele não a aceitou. Já na porta, vendo que a chuva continuava, deixou que lhe pusessem um velho chapéu de feltro de José Arcadio Buendía.

— Aureliano — Úrsula disse a ele então — prometa-me que se você encontrar por aí com a hora difícil, você vai pensar na sua mãe.

Ele lhe deu um sorriso distante, levantou a mão com todos os dedos estendidos, e sem dizer uma palavra abandonou a casa e enfrentou os gritos, vitupérios e blasfêmias que haveriam de persegui-lo até a saída do povoado. Úrsula colocou a tranca no portão, decidida a não tirá-la durante o resto da vida. “Nós vamos apodrecer aqui dentro”, pensou. “Nós vamos nos transformar em cinza nesta casa sem homens, mas não vamos dar a este povo miserável o gosto de nos ver chorar.” Passou a manhã inteira procurando uma lembrança do filho nos cantos mais escondidos e não conseguiu encontrar.
O ato se realizou a vinte quilômetros de Macondo, à sombra de uma paineira gigantesca, em torno da qual se haveria de fundar mais tarde o povoado de Neerlândia. Os delegados do governo e os do partido e a comissão rebelde que entregou as armas foram recebidos por um buliçoso grupo de noviças de hábitos brancos, que pareciam uma revoada de pombas assustadas pela chuva. O Coronel Aureliano Buendía chegou numa mula enlameada. Estava barbado, mais atormentado pela dor dos furúnculos que pelo imenso fracasso dos seus sonhos, pois tinha chegado ao fim de qualquer esperança, além da glória e da saudade da glória. De acordo com o determinado por ele mesmo, não houve música, nem foguetes, nem sinos de júbilo, nem placas comemorativas, nem nenhuma outra manifestação que pudesse alterar o caráter triste do armistício. Um fotógrafo ambulante, que tirou o único retrato seu que poderia ser conservado, foi obrigado a destruir o filme sem o revelar.
O ato durou apenas o tempo indispensável para que se pusessem as assinaturas. Ao redor da rústica mesa colocada no centro de uma remendada barraca de circo onde sentaram os delegados, estavam os últimos oficiais que permaneceram fiéis ao Coronel Aureliano Buendía. Antes de recolher as assinaturas, o delegado pessoal do Presidente da República tentou ler em voz alta a ata da rendição, mas o Coronel Aureliano Buendía se opôs. “Não vamos perder tempo com formalidades”, disse, e se dispôs a assinar os papéis sem os ler. Um dos oficiais, então, rompeu o silêncio soporífero da tenda.

— Coronel — disse — faça-nos o favor de não ser o primeiro a assinar.

O Coronel Aureliano Buendía concedeu. Quando o documento deu a volta completa à mesa, em meio a um silêncio tão nítido que seria possível decifrar as assinaturas pelo puro floreio da pena no papel, o primeiro lugar ainda estava em branco. O Coronel Aureliano Buendía se dispôs a ocupá-lo.

— Coronel — disse então outro dos seus oficiais — o senhor ainda tem tempo para ficar bem.

Sem se perturbar, o Coronel Aureliano Buendía assinou a primeira cópia. Ainda não tinha acabado de assinar a última quando apareceu na porta da tenda um coronel rebelde, trazendo pelo cabresto uma mula carregada com dois baús. Apesar da sua extrema juventude, tinha um aspecto árido e uma expressão paciente. Era o tesoureiro da revolução na circunscrição de Macondo. Fizera uma penosa viagem de seis dias, arrastando a mula morta de fome, para chegar em tempo ao armistício. Com uma calma exasperante descarregou os baús, abriu-os, e foi colocando na mesa, uma por uma, setenta e duas barras de ouro. Ninguém se lembrava da existência daquela fortuna. Na desordem do ano anterior, quando o poder central se partiu em pedaços e a revolução degenerou nu-ma sangrenta rivalidade de caudilhos, era impossível determinar qualquer responsabilidade. O ouro da rebelião, fundido em blocos que foram logo cobertos de barro cozido, ficou fora de qualquer controle. O Coronel Aureliano Buendía fez com que se incluíssem as setenta e duas barras de ouro no inventário da rendição, e fechou o ato sem permitir discursos. O esquálido adolescente permaneceu diante dele, olhando-o nos olhos com os seus serenos olhos cor de caramelo.

— Alguma coisa mais? — perguntou-lhe o Coronel Aureliano Buendía. O jovem coronel trincou os dentes.

— O recibo — disse.

O Coronel Aureliano Buendía estendeu-lhe um, feito do seu próprio punho e letra. Em seguida, tomou um copo de limonada e comeu um pedaço de biscoito que as noviças serviram, e se retirou para uma tenda de campanha que lhe haviam preparado para quando quisesse descansar. Ali tirou a camisa, sentou-se na beira do catre e, às três e quinze da tarde, desferiu um tiro de pistola no círculo de iodo que o seu médico particular lhe pintara no peito. A essa hora, em Macondo, Úrsula destampou a panela do leite no fogão, estranhando que demorasse tanto a ferver, e encontrou-a cheia de vermes.

— Mataram Aureliano! — exclamou.

Olhou para o quintal, obedecendo a um costume da sua solidão, e viu José Arcadio Buendía, ensopado, triste de chuva e muito mais velho do que quando morreu.

“Mataram-no à traição”, precisou Úrsula, “e ninguém fez a caridade de lhe fechar os olhos.” Ao anoitecer viu através das lágrimas os rápidos e luminosos discos alaranjados que cruzaram o céu como uma exalação, e pensou que era um sinal da morte. Estava ainda debaixo do castanheiro, soluçando nos joelhos do marido, quando trouxeram o Coronel Aureliano Buendía embrulhado na manta dura de sangue seco e com os olhos abertos de raiva.
Estava fora de perigo. O projétil seguira uma trajetória tão desimpedida que o médico lhe enfiou um cordão molhado de iodo pelo peito e tirou-o pelas costas. “Esta é a minha obra-prima”, disse a ele satisfeito. “Era o único ponto por onde podia passar uma bala sem atingir nenhum centro vital.” O Coronel Aureliano Buendía se viu rodeado de noviças misericordiosas que entoavam salmos desesperados pelo eterno descanso da sua alma, e então se arrependeu de não ter dado o tiro no céu da boca como tinha previsto, só para enganar o prognóstico de Pilar Temera.

— Se eu ainda tivesse autoridade — disse ao médico — mandava fuzilar o senhor sem julgamento. Não por me ter salvo a vida, mas por me fazer cair no ridículo.

O fracasso da morte lhe devolveu em poucas horas o prestígio perdido. Os mesmos que inventaram a lorota de que vendera a guerra por um aposento cujas paredes estavam construídas com tijolos de ouro definiram a tentativa de suicídio como um ato de honra e o proclamaram mártir. Em seguida, ando recusou a Ordem do Mérito que o Presidente da Repúblca lhe outorgou, até os seus rivais mais encarniçados desfilaram no seu quarto, pedindo que desconhecesse os termos do armistício e promovesse uma nova guerra. A casa se encheu de presentes de solidariedade. Tardiamente impressionado com o apoio maciço dos seus antigos companheiros de armas, Coronel Aureliano Buendía não descartou a possibilidade de satisfazê-los. Pelo contrário, em dado momento pareceu tão entusiasmado com a idéia de uma nova guerra que o Coronel Gerineldo Márquez pensou que ele só esperava um pretexto para proclamá-la. O pretexto se ofereceu, efetivamente, quando o Presidente da República se negou a conceder as pensões de guerra aos antigos combatentes, liberais ou conservadores, enquanto cada processo não fosse revisto por uma comissão especial e a lei das concessões aprovada pelo Congresso. “Isto é uma confusão”, trovejou o Coronel Aureliano Buendía. “Vão morrer de velhice esperando o correio.”
Abandonou pela primeira vez a cadeira de balanço que Úrsula comprara para a sua convalescença e, andando de um lado para o outro na alcova, ditou uma mensagem taxativa para o Presidente da República. Nesse telegrama, que nunca foi publicado, denunciava a primeira violação do Tratado de Neerlândia e ameaçava proclamar a guerra de morte se a concessão das pensões não fosse resolvida ao fim de quinze dias. Era tão justa a sua atitude que permitia contar, inclusive, com a adesão dos antigos combatentes conservadores. Mas a única resposta do governo foi o reforço da guarda militar que colocara na porta da sua casa com o pretexto de protegêla e a proibição de toda e qualquer espécie de visitas. Medidas similares foram adotadas em todo o país, com outros caudilhos de cuidado. Foi uma operação tão oportuna, drástica e eficaz que dois meses depois do armistício, quando o Coronel Aureliano Buendía teve alta, os seus instigadores mais decididos já estavam mortos ou expatriados ou haviam sido assimilados para sempre pela administração pública.
O Coronel Aureliano Buendía abandonou o quarto em dezembro, e bastou dar uma olhada na varanda para não voltar a pensar na guerra. Com uma vitalidade que parecia impossível na sua idade, Úrsula voltou a rejuvenescer a casa. “Agora vão ver quem sou eu”, disse quando soube que o filho viveria. “Não haverá uma casa melhor, nem mais aberta a todo o mundo, que esta casa de loucos.” Mandou-a lavar e pintar, trocou os móveis, restaurou o jardim e semeou flores novas, e abriu as portas e janelas para que entrasse até os quartos a deslumbrante claridade do verão. Decretou o fim dos numerosos lutos superpostos e ela mesma mudou os velhos trajes rigorosos por roupas juvenis. A música da pianola voltou a alegrar a casa. Ao ouvi-la, Amaranta se lembrou de Pietro Crespi, da sua gardênia crepuscular e do seu cheiro de lavanda, e no fundo do seu murcho coração floresceu um rancor limpo, purificado pelo tempo. Uma tarde em que tentava pôr em ordem a sala, Úrsula pediu ajuda aos soldados que custodiavam a casa. O jovem comandante da guarda concedeu-lhes a permissão. Pouco a pouco, Úrsula lhes foi designando novas tarefas. Convidava-os para almoçar, presenteava-lhes roupas e calçados e os ensinava a ler e a escrever. Quando o governo suspendeu a vigilância, um deles ficou morando na casa, e esteve a seu serviço por muitos anos. No dia de Ano-Novo, enlouquecido pelas grosserias de Remedios, a bela, o jovem comandante da guarda amanheceu morto de amor junto à sua janela


continua página 116...

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Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.1) - A nova casa...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.1) - ... puberdade antes de superar os hábitos infantis
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