Maria Firmina dos Reis
Úrsula
A mais de uma légua distante de Santa Cruz deixamos Fernando P. galopando ansioso, blasfemando e praguejando contra aquele que por ventura o contrariasse, e acompanhamos aos jovens desposados até o convento de ***, onde deixaremos por agora Úrsula meditando sobre os últimos acontecimentos de sua vida, que mais risonha e sedutora já se lhe figurava, e vamos ao encontro desse homem, animado por tão loucas esperanças, e tão disposto a amar, como a perseguir ao objeto da sua adoração.
O comendador, talvez mais por ostentação que por sentimentos religiosos, tinha em sua casa um capelão, que era voz pública ser-lhe muito dedicado em consequência de altos favores feitos pelos pais de Fernando à sua família. Fosse pelo que fosse, o capelão de Fernando P. dizia-se amigo deste, e isso causava a todos admiração; porque o comendador era um homem detestável e rancoroso, e o sacerdote parecia ser santo varão.
Por uma singular anomalia, estes dois homens pareciam querer-se, ou suportar-se reciprocamente, e essa união dava-lhes a reputação de íntimos amigos.
Fernando, homem estúpido e orgulhoso, não sabendo sequer exprimir seus próprios pensamentos, e não querendo confiar a alguém que ele julgava inferior a si pela posição, e pelo nascimento – única tábua de salvação, a que se pegava em seu naufragar contínuo de completa ignorância – tinha ido à cidade, suposto que ralado de mortais desconfianças, arranjar os papéis da mais absoluta necessidade, ou para fazer-se incontinente esposo de Úrsula, no caso de ainda encontrar viva a mãe desta menina, ou para, constituído por esta senhora tutor de sua filha, esta não poder escapar à sua vigilância, nem à sua paixão. Como ainda este erro seu era grosseiro!
Úrsula podia deixar de aceitá-lo por tutor, e, ainda aceitando-o, recusar-se energicamente a ser sua esposa. O comendador estava afeito a mandar, e por isso julgava que todos eram seus súditos ou seus escravos.
Já o sol não dominava as regiões da terra, quando Fernando P. apeou-se à porta de sua habitação para dar ligeiramente algumas ordens. Vinha esbaforido e preocupado por um pressentimento, que embalde tentava destruir.
— Talvez eu venha por demais tarde! – ao apear exclamou sem intenção de o fazer; porque era contra o seu orgulho, que não imaginava dificuldades.
Dois negros de cabeça baixa, e humilhados, que lhe vieram pegar as rédeas, ouviram em silêncio essa exclamação desesperada, e pela contração dos supercílios do comendador tremeram involuntariamente.
Depois subiu para a varanda, e logo uma multidão de escravos se lhe veio aproximando; mas ele, erguendo a voz imperiosa, perguntou:
– Onde está o padre F.?
— Saiu ainda há pouco, meu senhor – animou-se a responder o menos tímido entre os que ali estavam.
— Saiu? – interrogou Fernando, enrugando a testa. – Para onde foi?
— Ignoro-o, meu senhor – tornou o mesmo escravo com voz convulsa pelo medo. – E creio que o mesmo acontece aos mais parceiros. Tomou a sua mula azeitonada, e há pouco o vimos desaparecer pela estrada do cemitério.
Os negros acabavam apenas de tirar a sela ao cavalo fatigado, quando o comendador, descendo de um salto as escadas, foi-lhes golpeando com o chicotinho que trazia, e gritando:
— Eia, que fazem, animais! Outro cavalo imediatamente selado. E os meus dois pajens, que me sigam.
Os míseros escravos gemeram de ódio e de dor; mas nem a mais leve exprobração, nem um sinal de justa indignação se lhes pintou no rosto. Eram escravos, estavam sujeitos aos caprichos de seu bárbaro senhor.
E a ordem era tão peremptória, que um outro cavalo apareceu como por encanto arreado, e os dois pajens montados em suas cavalgaduras.
Fernando P. montou e impaciente cravou as esporas nos flancos do animal, e os negros o imitaram. A carreira era rápida, e nada os podia conter. Fernando pensava encontrar o padre, e não se enganou, que bem perto ia ele. Caminhava a passo lento e ia levar consolações àquela a quem o comendador ia pedir amor.
— Meu padre, – exclamou Fernando ao avistar o homem de paz, que o precedera na viagem – enfim vos encontro! Eia, dizei-me, o que há de novo?
O padre fixou-o com olhar que queria dizer:
— Resignai-vos!
— Minha irmã?! Minha pobre irmã?! – soluçou magoado aquele coração de ferro.
— Morreu, Filho! – disse o padre comovido – E Úrsula geme acurvada pela mais pungente e aflitiva dor.
Então duas lágrimas rolaram dos olhos de Fernando, que se esqueceu de si, imerso nesse sentimento, único que esclarecia a sua vida em todos os demais pontos tão negra. Abandonou as rédeas, e o seu cavalo seguia os passos tardos da mula do digno sacerdote.
E esse torpor doído durou muito, e ninguém ousava quebrar o silêncio que era completo.
Então a corrida de rápida tornou-se vagarosa e pesada, e a lua já passeava bem alta nos campos do céu, quando o comendador, ajudado por seus dois pajens, apeou-se à porta dessa casa silenciosa, cuja fachada melancólica demonstrava os grandes pesares de que o interior era testemunha atenta, posto que muda e impassível.
Enquanto o padre humildemente desmontava, os dois negros batiam à porta. O arruído enfim despertou a velha africana de seus pensamentos dolorosos, e fê-la vir pressurosa ao reclamo, persuadida de que eram os dois cavaleiros, e Úrsula, que regressavam.
— Susana! – bradou Fernando assim que a viu.
— O senhor comendador!... – murmurou a negra, recuando assustada.
Fernando entrou e dirigiu-se à sala, e depois de ter-se atirado sobre uma cadeira, e investigado com um olhar melancólico aqueles lugares, que lhe recordavam a única afeição sincera que havia tido, chamou Susana.
Esta, aflita e angustiada; com os braços cruzados sobre o peito, e a cabeça inclinada para o chão acudiu ao seu chamado.
— Onde está Úrsula? – perguntou com voz alterada.
Susana estremeceu involuntariamente. Úrsula tinha saído à tarde e ainda ela a esperava com ânsia. Achá-la-ia Tancredo? Fugiriam juntos? O que lhe teria acontecido? Apesar de seus receios respondeu com segurança:
— Saiu à tarde, meu senhor, e disse-me que ia orar ao cemitério.
— Úrsula saiu só, e foi até Santa Cruz sem a companhia de alguém? – interrogou o comendador com sinistra incredulidade.
— Só, meu senhor – tornou a negra.
— Mentes! – bradou com voz de trovão.
Levantou-se com ímpeto, e como um tigre que se arremessa à presa ia cair sobre a infeliz Susana, quando o sacerdote, até então testemunha muda dessa cena, lhe disse:
— Prudência, filho! Por que vos encolerizais contra essa mísera velha? Mandai primeiro que tudo a Santa Cruz, e talvez lá seja possível encontrá-la. Sua dor era tão profunda, que minhas consolações tornaram-se inúteis. Hoje ao amanhecer pediu-me que queria ficar só por algumas horas, e voltei a Santa Cruz, onde gastei algum tempo a esperar-vos; mas vendo que não chegáveis, e lembrando-me do penoso estado em que a tinha deixado, tomei a resolução de vir de novo trazer-lhe a palavra divina, único bálsamo para as chagas do coração. Este seu desaparecimento, confrontado com a desesperação em que estava, faz-me recear alguma desgraça.
Susana, erguendo as mãos à altura da cabeça, bradou:
— Meu Deus! – E caiu sem acordo.
Fernando P. não lhe ouviu esta exclamação de desespero; porque já havia montado, e com seus dois pajens corria afanoso e desesperado a estrada que conduz a Santa Cruz. Os cavalos dispararam fogosos e rápidos como o aquilão, e sumiram-se com velocidade incrível.
A noite era já adiantada, e o galo, que cantara na fazenda de Santa Cruz, e que ele ouvira ao longe, veio revelar-lhe que tinha soado a hora dos mistérios, a hora em que aquele que medita em meio dos palmares, ou sobre as ribas do mar, debaixo do nosso opulento e magnifico céu todo estrelado, enche o coração de maga poesia, e de um sentir delicioso, que vai como nuvem de incenso desfazer-se puro aos pés do trono do monarca do universo. A hora alta e silenciosa da noite encerra mistérios tão profundos, que só os compreende a alma que verga ao peso de uma dor íntima e incurável, ou o coração, que transborda de afetos, que a vida inteira não pode resfriar.
Para os demais, a hora da meia-noite não tem significação. O comendador Fernando não estava nesse caso – amava; e a sua paixão era ardente e arrebatada como o seu vulcânico coração. Entrou corajosamente no cemitério, onde com terror o acompanharam seus dois pajens horripilados e trêmulos.
Todavia mais de um remorso lhe devia povoar a alma de terror à vista desse lugar onde dormiam Paulo B., Luísa, e tantos outros, cujos dias ele tanto amargurara, e cuja morte talvez pesasse sobre sua consciência.
Mas Fernando P. não era homem que parecesse ter remorsos: talvez o fogo de seu amor sufocasse em sua alma todos os outros sentimentos, que por ventura aí existissem.
Nesta ocasião, a lua era perpendicular ao topo da cruz, e a noite derramava sobre ela seu choro algente e triste.
A cruz estava úmida e orvalhada, e o musgo, que por ela distendia os braços, ostentava o brilhante esplendor de sua verdura, e a gota cristalina, que se filtrara do céu, esmaltava-o com celeste encanto.
O silêncio era tétrico e melancólico, e uma só ave noturna o não interrompia. Parece que toda a natureza o observava estupefata.
E Fernando P. percorreu essa morada da morte anelante e duvidoso, e não encontrou Úrsula.
— Susana! Hás de pagar-me! – bradou fora de si. — Não zombarás de mim impunemente. Ao inferno descerás, negra maldita, e todo o meu rigor não bastará para a tua punição. Foi debalde que tentastes iludir-me! O coração bem mo dizia, que a não acharia aqui!...
Tancredo! Infame!... Seus nomes enlaçados no tronco do jatobá, em que a vi a vez primeira, traiu-me o estado do seu coração. Ela o ama, já o sabia; mas o seu amor não poderá resistir ao meu ódio. Juro, mulher, que hás de ser minha esposa, ou o inferno nos receberá a ambos!
Tancredo! Tu não hás de rir de um rival desprezado. Não.
Blasfemando horrivelmente, tinha chegado à porta de sua casa, desatinado e furioso.
— O feitor branco – gritou com voz medonha. – chamem-me o feitor branco.
O serão ainda não havia acabado: o débil bruxulear de uma luz esmorecida no meio dessa vasta casa de trabalho indicava que aí ainda todos velavam; porque as tarefas não estavam acabadas.
O feitor apareceu com prontidão. Era um homem de mediana estatura, tez pálida, e olhar melancólico. Ao entrar, fez uma respeitosa cortesia ao comendador, que a não respondeu, e disse:
— Às vossas ordens, senhor comendador.
— Quero imediatamente dois negros, que irão voando à casa que foi de Paulo B. – parou, e com as mãos pareceu afastar de diante dos olhos uma sombra desagradável; mas foi um momento, recuperou sua feroz energia, e continuou:
— Que me tragam sem detença Susana. Ouvis, senhor? Que a tragam de rastos. Que a atem à cauda de um fogoso cavalo, e que o fustiguem sem piedade, e...
— Senhor comendador, – observou o homem, que recebia as ordens – ela chegará morta.
— Morta?... Não, poupem-lhe um resto de vida, quero que fale, e demais reservo-lhe outro gênero de morte.
O homem mordeu os lábios de indignação e perguntou:
— Nada mais ordenais?
— Sim, – tornou ele – quero que dobre hoje o serão destes marotos. Ah! Esta cáfila de negros, só surrados, e...
— Mas, senhor comendador, – interrompeu o feitor com acento apesar seu repreensivo, e indignado – é já meia-noite, os desgraçados ainda trabalham por acabar o serão, como pois é possível dobrar-se-lhes a tarefa?
— Oh! Lá!... – bradou Fernando e sorriu-se com horrível sarcasmo. – Que tal? Quem manda nesta casa?
— Fartai-vos de atrocidades, já que sois um monstro, – retrucou fora de si o feitor, fixando-o com um olhar de desprezo, que ele suportou –, banhai- -vos no sangue dos vossos semelhantes, juntai crimes horrendos a crimes imperdoáveis; mas não conteis mais doravante comigo para instrumento dessas ações, que revoltam ainda a um coração viciado, e que só no vosso pode achar morada.
Desde já contai-me despedido do vosso serviço.
— Miserável! – rugiu Fernando sufocado pela cólera.
— Vou imediatamente avisar a velha Susana – disse consigo o feitor – e ainda será tempo de fugir. – Saiu correndo a pegar o seu cavalo, mas, à hora que tão generosamente se dirigia à casa de Luísa B., um sacerdote montado em uma mula acompanhava a preta Susana, conduzida por dois negros, e murmurava em voz inteligível estas palavras do salmo 138: “Para onde me irei de vosso espírito? E para onde fugirei de vossa face?”
Susana não vinha atada à cauda de um cavalo, caminhava com a fronte erguida, e com a tranquilidade do quem não teme; porque é justo.
— Foge, Susana! – bradou-lhe da orla da estrada uma voz forte: ela pareceu nada ouvir, e o padre continuou:
— “Se subira ao céu, vós lá estais; se descera aos infernos ali vos encontraria”.
Então a voz tornou-se a ouvir, e um homem apareceu. Era o ex-feitor; o padre e os negros o reconheceram.
— Foge, Susana!
— Fugir? Não, meu senhor. Não sabeis que sou inocente?
— Louca! – tornou ele – Toma o meu cavalo e foge. Que importa àquela fera a tua inocência? Acaso não conheces o comendador?
Susana replicou-lhe com vivo reconhecimento:
— O céu vos pague tão generoso empenho; mas os que estão inocentes não fogem.
E o sacerdote prosseguia:
— “Se tomasse as asas da alva, e habitasse no cabo do mar, até ali vossa mão me guiaria e vossa destra me sustentaria”.
Susana levantou os olhos para o céu, e quando os abaixou, disse:
— Ide, meu filho! O céu vos abençoe.
O ex-feitor deu então as rédeas ao seu cavalo; deixou passar aquela vítima resignada de tão implacável cólera, e tocado pela sublime brandura daquela velha africana, lamentou profundamente a sorte mesquinha e horrível que lhe preparara o comendador, que em sua insânia parecia despenhar-se irremissivelmente nos abismos do inferno.
Prosseguiam na sua marcha.
Na casa do trabalho, muito mais frouxa lobrigava-se ainda a escassa luz de um lampião: os negros tinham recebido novas tarefas, empenhavam-se por acabá-las. Desgraçados! Não eram eles que trabalhavam por acabá-las – era o novo feitor, que com azorrague em punho ao som dos estalos os despertava. E já nem uma lágrima lhes vinha aos olhos, nem um queixume aos lábios – eram mudos; estorciam-se com a dor da chibatada, abriam os olhos, moviam-se maquinalmente para continuar o serviço, e logo recaíam naquela penosa prostração, que revela a extrema fadiga de um corpo, que descai já para o túmulo, cansado de lutar em vão contra mil privações que o desgastaram e aniquilaram.
O dia não tardava muito a despontar, quando Susana e o sacerdote descobriram, pasmados, a cena espantosa da dupla tarefa na fazenda de Santa Cruz.
— Deus esteja convosco, filho, – disse brandamente o padre ao entrar.
Fernando P. passeava na varanda com um passo incerto e desigual.
— Mandei informar-me, meu padre, do caminho que seguiu a minha louca fugitiva, e em menos de dez minutos aguardo pela resposta. Os homens da minha guarda estão prontos, e partirão ao primeiro sinal; as nossas cavalgaduras esperam-nos no pátio.
— E para que todo esse afã?! – perguntou o sacerdote com estupefação.
— Para quê?! Ainda mo perguntais?! Essa menina, senhor, a necessidade tornou-a minha pupila; e antes que o fosse, meu coração a havia escolhido para esposa!
— Ela? Úrsula? A vossa sobrinha! A filha!...
— Basta – bradou imperiosamente o comendador. – Susana, venha Susana.
Fernando P. pensara que o padre lhe ia lembrar o seu crime, e impôs-lhe silêncio.
Ao reclamo, dois negros entraram conduzindo a velha, cujos cabelos alvejavam como o cume dos Andes e cujos olhos exprimiam sublime resignação.
Ao vê-la, o comendador rugiu como um tigre, os olhos injetaram-se-lhe de sangue, e as artérias entumecidas ameaçavam arrebentar: seu semblante tornou-se roxo de ódio, e a fisionomia era medonha, e horripilante.
— Para onde foi Úrsula? – interrogou com voz que horrorizava – Para onde foi Úrsula? Fala, ou prepara-te para morrer sob o azorrague.
— Não sei, meu senhor, – respondeu humildemente a velha – disse-me que vinha orar ao cemitério.
— Não sabes dela?! Queres arrostar comigo?... – e os olhos desferiram chamas de raiva, que gelavam de terror.
— Foste sua cúmplice, hás de pagar-mo.
— Em nome do céu! – exclamou a mísera, atormentada por tão sinistras ameaças: – que sei eu?
— Cala-te, atrevida, ou ao menos modifica o teu crime, revelando-me o nome do homem que ma roubou.
— Ah! Meu senhor... – tornou a mísera africana, – ela saiu só.
— Pois bem! Confessarás à força de tormentos o que é feito dela, e qual o nome do seu sedutor.
Julgas que o ignoro?
Tancredo! Rápido foi o teu regresso; mas hás de arrepender-te, assim como tu, velha louca e maldita!
Levem-na, – disse, acenando para os dois negros que a tinham conduzido – levem-na, e que ela confesse o seu crime.
— Filho – objetou o padre, – filho, em nome do que nos há de julgar não mandeis flagelar esta pobre velha; ela é inocente.
O comendador bramiu de cólera, e lançou-se sobre a pobre escrava.
— Confessa a tua cumplicidade, diz-me para onde foi ela, ou apronta-te para morrer.
Susana havia dito a Tancredo que Úrsula lhe falara de um perigo iminente, se ele Tancredo retardasse mais o seu regresso, e que esse perigo criava-o o comendador; lembrava-se de que o moço partira imediatamente para o lugar por ela indicado, e onde devia estar Úrsula, persuadiu-se mesmo algumas vezes de que a moça, para escapar às perseguições de seu tio, se houvesse submetido à proteção do mancebo, e fugido; mas tudo isso não era mais que suposição e quando mesmo ela o soubesse com certeza, estava longe de querer denunciá-la a um homem que tão funesto era para quantos o conheciam.
Pediu a Deus que lhe pusesse um selo nos lábios, e o valor do mártir no coração.
— Então... – tornou ele enfurecido – confessas, ou não?...
— Não sei, meu senhor! – replicou Susana.
— Não sabes quem seja o seu sedutor? Não o viste sair em sua companhia?...
— A menina saiu só, eu a quis acompanhar; porque ela estava louca de aflição; mas disse-me:
— Proíbo-te que venhas; deixa-me que vá rezar sobre a sepultura de minha mãe, e...
— Levem-na! – bradou o implacável comendador. – Mais tarde confessarás tudo.
— Meu filho, – de novo começou o padre – o sangue do inocente condena ao inferno aquele que o derrama: esta mulher não é cúmplice na fuga de vossa desposada.
Um negro entrou correndo, e disse-lhe:
— Meu senhor, acabo de saber que a senhora, acompanhada de um cavaleiro branco, e de um outro negro, tomou a estrada da cidade de ***.
Então um sorriso infernal lhe arregaçou o lábio superior, e seu rosto ficou hediondo.
— Levem-na! – tornou acenando para Susana – Miserável! Pretendeste iludir-me... saberei vingar-me. Encerrem-na na mais úmida prisão desta casa, ponha-se-lhe corrente aos pés e à cintura, e a comida seja-lhe permitida quanto baste para que eu a encontre viva.
Susana ouviu tudo isto com a cabeça baixa; depois ergueu-a, fitou aos céus, onde a aurora começava a pintar-se, como se intentasse dar à luz seu derradeiro adeus, e de novo volvendo para o chão, exclamou:
— Paciência!
— Não há tempo a perder – disse Fernando, e entrou no seu gabinete, onde deu ordens, que para logo se cumpriram. Dois homens, de hórridas fisionomias, foram introduzidos, e o que lhes disse o comendador, só Deus e eles o puderam ouvir.
Não se passou muito tempo, que não voltassem: eram ligeiros e vinham vestidos como talvez lhes tivesse ordenado o homem, a quem serviam.
Tinham excelentes cavalgaduras. Trajavam calções de couro, e sobre suas selas descansavam enormes capotes de peles de onça. Da cinta pendiam-lhes enormes facas pontiagudas, e a esses horríveis instrumentos, acompanhava um par de pistolas. Aos ombros levavam um medonho bacamarte.
O padre viu todo esse apresto execrando, e aguardava ansioso pelo seu hóspede.
Não esperou muito.
— Meu padre, o dever obriga-me a partir. Roubaram-me a filha de minha irmã; mancharam a honra da minha casa, assassinaram a minha ventura!...
— Meu padre, – continuou depois de alguma pausa – essa menina era minha desposada, jurei que havia de ser seu esposo; pelo céu ou pelo inferno, sê-lo-ei ainda. Sim, – prosseguiu espumando de ira – ei de ser seu esposo; porque não a tornarei a ver em quanto o sangue do seu raptor não tenha lavado, extinguido o ferrete da infâmia estampado em minha fronte.
— Jesus! Senhor meu Deus! – bradou o pobre padre. – Ainda é tempo de retroceder. Pelo céu, meu filho, não mancheis vossas mãos no sangue de vosso irmão! Filho, o assassino é maldito do Senhor; Caim o foi. Para o assassino não há na vida sossego, nem paz na morte. O sepulcro mesmo, quem sabe se lhe promete tranquilidade?
A vingança, filho, é um prazer amargo, e seu fruto, é o requeimar do remorso em toda a existência, e até o último extremo, até a sepultura!
Fernando P. escutou-o; mas em suas veias agitava-se o sangue, que lhe queimava o coração. Rangia os dentes, e os lábios lívidos e trêmulos exprimiam a impaciência e o furor, até que por último prorrompeu irado:
— Mentes, padre maldito! A vossa doutrina não a escutarei nunca. A vingança, desejo-a com ardor, afago-a. Não sabes que é a única esperança, que me resta? Amor! Ventura!... Tudo, tudo caiu no abismo... eles o quiseram... oh! Não os hei de poupar.
O inferno? Haverá pior de que o que trago no coração?! O inferno?! O inferno me restituirá Úrsula pura da nódoa do amor de outrem, porque será lavado no sangue do homem por quem desprezou-me.
Sabes acaso o que é ser desdenhado pela mulher que amamos? Sabes o que é ser iludido, aviltado por aquela a quem déramos a vida, a honra, a alma se no-la pedisse!?...
— Filho, – arriscou ainda o velho sacerdote – não desafieis a cólera do Senhor. O sangue de vosso irmão vos queimará a alma; e o amor de que vos servirá então? Julgais que vos poderá ele afagar quando ante vós se erguer mudo, e impassível o espectro ensanguentado de vossa vítima, clamando: – És meu assassino!!!...
Então embalde suplicareis o meigo auxílio do sono, que vossos olhos pasmados e fitos no medonho fantasma não se poderão cerrar.
Então ele erguerá a voz, e exclamará com horrífico acento, que vos resfriará os membros: – maldição do Senhor sobre aquele que assassinou o homem, que era seu irmão!
— Cala-te... cala-te, estúpido que és – rugiu o comendador.
– Que me importa a mim a vingança dos mortos! Tancredo, Úrsula, não se hão de rir do homem a quem ludibriaram.
— Tancredo? – objetou o padre
– Que quereis dizer desse mancebo?
— É o sedutor de Úrsula.
— Ele? – replicou o homem de paz – É impossível!
— Ele. – retrucou Fernando. – Amam-se, já o sabia; mas contava que o seu regresso seria alguma coisa mais demorado.
Sim, eu vi Úrsula, era uma tarde, um jatobá antigo como os séculos prestava-lhe doce sombra; no tronco dessa árvore gravava ela um nome, que me ocultou com o seu corpo; mais tarde, no dia imediato, todos os dias à mesma hora eu ia ao lugar indicado, ela jamais voltou a ele; mas seu nome e o nome de Tancredo entrelaçados aí estavam gravados para advertir-me que se amavam.
Oh! Maldita sejas tu, mulher infame, maldito o teu sedutor! De joelhos hás de pedir-me compaixão para esse que preferiste a mim; mas não hás de achá-la!
— Misericórdia, meu Deus! – bradou o padre erguendo as mãos ao céu.
— Silêncio! – exclamou Fernando ardendo em ira, e aproximando-se- -lhe, disse: – Sois meu prisioneiro. A justiça da terra não me estorvará a vingança, porque ninguém senão vós ousará denunciar-me.
— As...sas...si...no!! – estupefato disse o pobre sacerdote, e ficou estacado nesse lugar sem movimento, com os cabelos eriçados, os membros hirtos, e os olhos parados, como se um raio o houvesse fulminado.
continua pág 121...
_________________________
Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
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