sábado, 19 de novembro de 2022

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 8. Mostrar um inferno não significa

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


8..



Mostrar um inferno não significa, está claro, dizer-nos algo sobre como retirar as pessoas do inferno, como amainar as chamas do inferno. Contudo, parece constituir um bem em si mesmo reconhecer, ampliar a consciência de quanto sofrimento causado pela crueldade humana existe no mundo que partilhamos com os outros. Alguém que se sinta sempre surpreso com a existência de fatos degradantes, alguém que continue a sentir-se decepcionado (e até incrédulo) diante de provas daquilo que os seres humanos são capazes de infligir, em matéria de horrores e de crueldades a sangue-frio, contra outros seres humanos, ainda não alcançou a idade adulta em termos morais e psicológicos.

Ninguém, após certa idade, tem direito a esse tipo de inocência, de superficialidade, a esse grau de ignorância ou amnésia.

Existe, agora, um vasto repertório de imagens que torna mais difícil a manutenção dessa deficiência moral. Deixemos que as imagens atrozes nos persigam. Mesmo que sejam apenas símbolos e não possam, de forma alguma, abarcar a maior parte da realidade a que se referem, elas ainda exercem uma função essencial. As imagens dizem: é isto o que seres humanos são capazes de fazer — e ainda por cima voluntariamente, com entusiasmo, fazendo-se passar por virtuosos. Não esqueçam.

Isso não é absolutamente o mesmo que pedir às pessoas que recordem um surto de maldade especialmente monstruoso. (“Nunca esqueçam.”) Talvez se atribua um valor demasiado à memória, e pouco valor ao pensamento. Recordar é um ato ético, tem um valor ético em si mesmo e por si mesmo. A memória é, de forma dolorosa, a única relação que podemos ter com os mortos. Portanto a crença de que recordar constitui um ato ético é profunda em nossa natureza de seres humanos, pois sabemos que vamos morrer e ficamos de luto por aqueles que, no curso normal da vida, morrem antes de nós — avós, pais, professores e outros amigos. Insensibilidade e amnésia parecem andar juntas. Mas a história dá sinais contraditórios no tocante ao valor de recordar, quando se trata do período muito mais longo que corresponde a uma história coletiva. Existe simplesmente injustiça demais no mundo. E recordar demais (agressões antigas: sérvios, irlandeses) gera rancor. Fazer as pazes significa esquecer. Para reconciliar-se, é necessário que a memória seja imperfeita e limitada.

Se o objetivo é ter um espaço para viver a própria vida, então é desejável que o registro de injustiças específicas se dilua em uma compreensão mais geral de que os seres humanos de toda parte cometem coisas terríveis uns contra os outros.


Plantados diante das telinhas — televisões, computadores, palmtops —, podemos surfar por imagens e notícias sucintas a respeito de desgraças em todo o mundo. Parece haver uma quantidade de notícias desse tipo maior do que havia antes. Provavelmente isso é uma ilusão. Ocorre apenas que a difusão de notícias abrange “o mundo inteiro”. E o sofrimento de determinadas pessoas tem um interesse muito mais intrínseco para determinado público (admitindo-se que o sofrimento deva ter um público) do que o sofrimento de outras pessoas. A circunstância de as notícias sobre guerra estarem hoje disseminadas por todo o mundo não significa que a capacidade de pensar nas aflições de pessoas distantes tenha se tornado significativamente maior. Na vida moderna — vida em que há uma superabundância de coisas a que somos chamados a prestar atenção —, parece normal dar as costas para imagens que nos fazem simplesmente sentir-nos mal. Muito mais pessoas mudariam de canal caso os noticiários dedicassem mais tempo a detalhes do sofrimento humano causado por guerra e outras infâmias. Mas, provavelmente, não é verdade que as pessoas estejam menos sensíveis.

O fato de não estarmos completamente transformados, de podermos dar as costas, virar a página, mudar de canal, não impugna o valor ético de uma agressão por meio de imagens. Não é um defeito o fato de não ficarmos atormentados, de não sofrermos o bastante quando vemos essas imagens. Tampouco tem a foto a obrigação de remediar nossa ignorância acerca da história e das causas do sofrimento que ela seleciona e enquadra. Tais imagens não podem ser mais do que um convite a prestar atenção, a refletir, aprender, examinar as racionalizações do sofrimento em massa propostas pelos poderes constituídos. Quem provocou o que a foto mostra? Quem é responsável? É desculpável? É inevitável? Existe algum estado de coisas que aceitamos até agora e que deva ser contestado? Tudo isso com a compreensão de que a indignação moral, assim como a compaixão, não pode determinar um rumo para a ação.

A frustração de não ser capaz de fazer nada a respeito daquilo que as imagens mostram pode se traduzir numa acusação contra a indecência de olhar tais imagens, ou das indecências existentes nas maneiras como tais imagens são disseminadas — ladeadas, como pode muito bem ocorrer, por publicidade de cremes emolientes, analgésicos e automóveis caríssimos. Se pudéssemos fazer algo a respeito daquilo que as imagens mostram, talvez não nos preocupássemos tanto com essas questões.

As imagens têm sido criticadas por representarem um modo de ver o sofrimento à distância, como se existisse algum outro modo de ver. Porém, ver de perto — sem a mediação de uma imagem — ainda é apenas ver.

Algumas críticas contra imagens de atrocidade não diferem da caracterização do próprio ato de olhar. Olhar não requer esforço; requer uma distância espacial; o olhar pode ser desligado (não temos portas nos ouvidos, mas nos olhos dispomos das pálpebras). Os mesmos atributos que levaram os antigos filósofos gregos a considerar a visão o mais elevado e nobre de nossos sentidos estão agora associados a uma deficiência.

Há a sensação de que existe algo moralmente errado na ementa da realidade oferecida pela fotografia; de que não se tem o direito de experimentar à distância o sofrimento dos outros, despido da sua força crua; de que pagamos um preço humano (ou moral) demasiado alto por esses atributos da visão até agora admirados — o afastamento da agressividade do mundo, posição que nos deixa livres para a observação e a atenção eletiva. Mas isso é apenas descrever a própria função da mente.

Nada há de errado em pôr-se à parte e pensar. Não se pode pensar e bater em alguém ao mesmo tempo.


continua pág 318...

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Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (1)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (4)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (2)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 6. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 6. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 7. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 7. (2) 
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 8. 
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 9. 
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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."

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"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."

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