sábado, 19 de novembro de 2022

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (d) ... Mais uma vez Orlando

Capítulo 6



continuando...


Mais uma vez Orlando pôs-se à janela, mas deixemos o leitor tomar alento; não vai acontecer nada da mesma natureza hoje, porque não é mais, de modo algum, o mesmo dia. Não — pois, se olharmos pela janela como Orlando fazia no momento, veremos que o próprio Park Lane mudara consideravelmente. Na verdade, podia-se ficar ali dez minutos ou mais, como Orlando estava agora, sem se ver um único landó. “Olhe aquilo!”, exclamou ela alguns dias depois, quando uma carruagem absurda, truncada, sem cavalos, se pôs a deslizar por sua própria conta. Uma carruagem sem cavalos! Ela foi chamada enquanto dizia isso, mas voltou pouco depois e tornou a olhar pela janela. Tempo estranho, esse de hoje em dia. O próprio céu — não podia deixar de pensar — tinha mudado. Não era mais tão espesso, tão chuvoso, tão prismático, agora que o rei Eduardo — ei-lo ali, saindo de seu elegante automóvel para visitar uma certa dama em frente — sucedera à rainha Vitória. As nuvens tinham se reduzido a uma fina gaze; o céu parecia feito de metal, que com o calor manchava-se de verde-acinzentado, cor de cobre ou laranja, como um metal na neblina. Era um pouco alarmante esta redução. Tudo parecia ter encolhido. Passando pelo Palácio de Buckingham ontem à noite, não havia traço daquela vasta construção que ela pensara ser eterna; chapéus altos, véus de viúva, trombetas, telescópios, coroas fúnebres, tudo desaparecera sem deixar no calçamento nem mancha nem mesmo uma poça de lama. Mas agora — depois de outro intervalo ela retornara ao seu posto predileto à janela —, agora, à noite é que a mudança era mais notável. Olhem para as luzes nas casas! Com um toque, toda uma sala se ilumina; centenas de salas se iluminam; e uma era precisamente igual à outra. Podia-se ver tudo nessas pequenas caixas quadradas; não havia privacidade; não havia nenhuma daquelas sombras demoradas, nem daqueles ângulos estranhos a que se estava acostumado; nenhuma daquelas mulheres de avental carregando luzes oscilantes, que pousavam cuidadosamente nesta ou naquela mesa. Com um toque toda a sala estava iluminada. E o céu ficava claro durante a noite inteira; e o calçamento ficava claro; tudo ficava claro. Ela voltou ao meio-dia. Como as mulheres tinham se tornado delgadas ultimamente! Pareciam espigas de milho, retas, brilhantes, idênticas. E os rostos dos homens: eram tão lisos como a palma da mão. A secura da atmosfera trouxe a cor a todas as coisas e parecia endurecer os músculos das faces. Era mais difícil chorar agora. A água ficava quente em dois segundos. A hera perecera ou fora raspada das casas. Os vegetais eram menos férteis; as famílias, muito menores. Cortinas e capas tinham sido abolidas, e as paredes eram tão lisas que os novos quadros coloridos, representando coisas reais como ruas, guarda-chuvas, maçãs, estavam pendurados em molduras ou pintados sobre a madeira. Havia algo definido e diferente, a respeito da época, que lhe lembrava o século XVIII, exceto que havia uma distração, uma desesperança... enquanto pensava nisso o túnel imensamente longo em que parecia estar viajando por centenas de anos se alargou; a luz penetrou nele; seus pensamentos se tornaram misteriosamente tensos e estirados, como se um afinador de piano colocasse a chave em suas costas e lhe esticasse os nervos ao máximo; ao mesmo tempo, sua audição se aguçou; podia ouvir cada sussurro e cada estalido na sala, de modo que o tique-taque do relógio sobre a lareira soava como um martelo. E assim, por alguns segundos, a luz foi se tornando mais e mais brilhante, e ela viu tudo cada vez mais claramente, e o relógio soou mais e mais alto, até que aconteceu uma terrível explosão bem no seu ouvido. Orlando pulou, como se tivesse levado uma violenta pancada na cabeça. Dez pancadas. Na verdade, eram dez horas da manhã. Era dia 11 de outubro. Era 1928. Era o momento presente.

Ninguém precisa se surpreender que Orlando tenha se sobressaltado, levado a mão ao coração e empalidecido. Pois pode haver revelação mais terrível do que constatar que este é o momento presente? Se sobrevivemos ao choque é apenas porque o passado nos protege de um lado e o futuro de outro. Mas não temos tempo para reflexões; Orlando já estava terrivelmente atrasada. Correu escada abaixo, saltou para o carro, pressionou o arranque e partiu. Vastos blocos azuis de construções elevavam-se para o ar; os capelos vermelhos das chaminés salpicavam irregularmente o céu; a estrada brilhava como pregos de cabeça de prata; os ônibus vinham em sua direção, com motoristas de esculpidos rostos brancos; observou esponjas, gaiolas, caixas de tecido americano verde. Mas não permitiu que nenhuma dessas visões penetrasse em sua mente, nem por uma fração de polegada, enquanto atravessava a estreita prancha do presente, com receio de cair lá embaixo, na raivosa torrente. “Por que não olha para onde vai?... Não pode pôr a mão para fora?”, era o que ela dizia, rispidamente, como se as palavras lhe fossem arrancadas. Pois as ruas estavam completamente apinhadas. As pessoas atravessavam sem olhar para onde iam. As pessoas murmuravam e cochichavam em redor de vitrines espelhadas, dentro das quais se podia ver um brilho vermelho, um fulgor amarelo — como se fossem abelhas, Orlando pensou; mas o seu pensamento de que eram abelhas foi logo decepado, e ela viu, recuperando com um golpe de vista a perspectiva, que eram corpos. “Por que não olham para onde vão?”, vociferou.

Finalmente, parou na loja Marshall & Snelgrove e entrou. Sombra e perfume a envolveram. O presente desprendeu-se dela como gotas de água escaldante. A luz oscilava para cima e para baixo como panos finos soprados por uma brisa de verão. Tirou uma lista da bolsa e começou a ler, numa voz a princípio estranha e áspera, como se segurasse as palavras debaixo de uma torneira de água multicolorida — botas para menino, sais de banho, sardinhas. Observou como se transformavam quando a luz caía sobre elas. As palavras banho e botas tornavam-se rombudas; a palavra sardinhas denteava-se como uma serra. Assim permaneceu no andar térreo da Marshall & Snelgrove; olhou para um lado e para outro; sentia este cheiro e aquele, e assim gastou alguns segundos. Depois tomou o elevador, pela simples razão de que a porta estava aberta, e foi lançada suavemente paca cima. A verdadeira textura da vida agora é mágica, pensou enquanto subia. No século XVIII sabia-se como cada coisa era feita; mas aqui vou eu, subindo pelo ar; ouço vozes da América; vejo homens voando — mas não posso nem imaginar como isso é feito. Assim minha crença na magia retorna. Agra o elevador deu um pequeno solavanco quando parou no primeiro andar, e ela avistou inúmeros tecidos coloridos flutuando numa brisa que produzia cheiros estranhos, especiais; e, cada vez que o elevador parava e abria as portas de par em par, uma outra fatia do mundo era exposta, impregnada de todos os cheiros daquele mundo. Recordou-se do rio além de Wapping, no tempo da rainha Elizabeth, onde os navios de tesouro e os navios mercantes costumavam ancorar. Como cheiravam intensa e estranhamente! Como se lembrava bem do contato dos rubis ásperos deslizando-lhe entre os dedos, quando metia a mão num saco de tesouro! E de estar deitada com Sukey — ou qualquer que fosse o seu nome — e de serem surpreendidos pela lanterna de Cumberland! Os Cumberlands tinham agora uma casa em Portland Place, ela almoçara com eles outro dia, e atrevera-se a uma pequena piada com o velho, a respeito dos asilos de Sheen Road. Ele piscara. Mas aqui, como o elevador não podia ir mais acima, teve que saltar — sabem os céus em que “departamento”, como diziam. Parou consultando a sua lista de compras, mas ali não teve sorte de encontrar nem sais de banho nem botas de menino, como a lista pedia. E na verdade já ia descer novamente sem comprar nada, mas escapou dessa vergonha dizendo automaticamente em voz alta o último item de sua lista, que vinha a ser “lençóis para cama de casal”.

— Lençóis para cama de casal — disse para um homem no balcão, e, por uma concessão da Providência, eram lençóis que o homem daquele exato balcão vendia. Pois Grimsditch, não, Grimsditch já tinha morrido; Bartholomew, não, Bartholomew já tinha morrido; então Luísa — Luísa viera até ela numa grande aflição, outro dia, pois encontrara um buraco na ponta do lençol da cama real. Muitos reis e rainhas tinham dormido lá. — Elizabeth; Jaime; Carlos; Jorge; Vitória; Eduardo; não era de admirar que o lençol tivesse um buraco. Mas Lufsa era afirmativa: ela sabia quem o fizera. Era o príncipe consorte.

Sale boche! [1] — disse (pois tinha havido outra guerra, desta vez contra os alemães). Lençóis para cama de casal — repetia Orlando sonhadoramente, para uma cama de casal com uma colcha prateada, num quarto decorado com um gosto que ela agora achava talvez um pouco vulgar — todo de prata; pois ela o mobiliara quando estava apaixonada por aquele metal. Enquanto o homem foi buscar os lençóis para cama de casal, ela pegou um pequeno espelho e uma pluma de pó. As mulheres não são mais tão disfarçadas em suas maneiras, pensava, empoando-se com a maior despreocupação, como no tempo em que pela primeira vez se transformara em mulher e repousava no convés do Enamoured Lady. Deliberadamente, deu ao nariz o tom apropriado. Nunca tocava suas faces. Honestamente, embora tivesse agora 36 anos, não aparentava nem um dia a mais. Parecia tão amua-da, tão mal-humorada, tão bonita, tão rosada (como uma árvore de Natal com mil velas, como dissera Sasha) como ficara naquele dia no gelo, quando o Tâmisa congelara e tinham ido patinar...

— O melhor linho irlandês, senhora — disse o vendedor, desdobrando os lençóis no balcão —, e eles tinham encontrado uma velhinha apanhando lenha. Nisso, enquanto apalpava distraidamente o linho, uma da portas giratórias entre os departamentos se abriu e deixou passar, talvez do departamento de artigos de fantasia, uma rajada de cheiro de cera, como se tingido por velas cor-de-rosa, e o cheiro curvou-se como uma concha em redor de uma figura — seria um rapaz ou uma moça? — jovem, delgada, sedutora — uma moça, por Deus! coberta de peles, pérolas, de calças russas; mas infiel, infiel!

— Infiel! — gritou Orlando (o vendedor tinha se retirado), e toda a loja parecia balouçar em águas amarelas, e bem longe viu os mastros do navio russo fazendo-se ao mar, e então, miraculosamente (talvez a porta tivesse sido aberta outra vez), a concha que o perfume produzira se transformou numa plataforma, num tablado do qual saiu uma mulher gorda, coberta de peles, maravilhosamente bem-conservada, sedutora, cheia de joias, uma amante do grão-duque; a mesma que, inclinada às margens do Volga, comendo sanduíches, tinha contemplado os homens se afogando — e começou a atravessar a loja em sua direção.

— Oh, Sasha! — gritou Orlando. Na verdade, estava chocada que tivesse chegado àquele ponto; engordara tanto, estava tão pesadona; inclinou a cabeça sobre o linho, de modo que passasse por trás dela, despercebida, essa aparição de uma mulher cinzenta, envolta em peles, e de uma jovem russa, de calças, com todos esses cheiros que trazia consigo — de velas de cera, de flores brancas e de velhos navios.

— Guardanapos, toalhas, guarda-pós hoje, senhora? — insistiu o vendedor. E foi graças à lista de compras que Orlando agora consultava que pôde responder, com aparente tranquilidade, que só precisava de uma coisa no mundo, que eram sais de banho — e que isso era em outro departamento.

Mas, descendo outra vez no elevador — tão insidiosa é a repetição de qualquer cena —, mergulhava de novo bem longe do momento presente; e quando o elevador bateu no chão, pensou ter ouvido um pote quebrar contra a margem do rio. E quanto a achar o departamento apropriado, qualquer que fosse ele, permaneceu absorta entre as bolsas, surda às sugestões de todos os vendedores polidos, vestidos de preto, penteados, atentos, que, descendo também — e alguns, talvez, tão orgulhosamente — das mesmas profundezas do passado que ela, preferiram deixar cair a impenetrável barreira do presente, de modo a hoje aparecerem como simples vendedores em Marshall & Snelgrove. Orlando ficou ali hesitante. Através das grandes portas de vidro podia ver o tráfego em Oxford Street. Ônibus pareciam empilhar-se sobre ônibus e depois apartar-se. Assim os blocos de gelo tinham-se amontoado e balançado, naquele dia, no Tâmisa. Um velho nobre de chinelos de pele estava escarranchado num deles. Ele passara — ela podia vê-lo agora — lançando maldições aos rebeldes irlandeses. Eles naufragaram ali, onde o carro dela estava parado.

“O tempo tem passado por mim”, pensou, procurando se recobrar; “é a chegada da meia-idade. Que coisa estranha! Nada é mais uma coisa só! Pego uma bolsa e penso numa velha vendedora de maçãs, num barco, congelada. Alguém acende uma vela cor-de-rosa e vejo um moça de calças russas. Quando saio — como faço agora”, aqui pisou na calçada de Oxford Street, “que gosto sinto? De pequenas ervas. Ouço sinos de cabras. Vejo montanhas. Turquia? Índia? Pérsia?”, seus olhos se encheram de lágrimas.



continua na página 119...

___________________________

Leia também:

Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (a) ... O biógrafo agora se depara
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (b) ... Como esta pausa era...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (c) ... No mesmo momento
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (d) ... Nunca a casa
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (a) ... É realmente uma grande infelicidade
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (b) ... Felizmente, a srta. Penelope Hartopp, filha do general
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (c) ... O som das trombetas diminuiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (a) ... Com alguns guinéus
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (b) ... Ninguém manifestou a menor suspeita
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (c) ... Para fazer justiça a ela
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (d) ... Orlando atirou a segunda meia
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (d) ... Mais uma vez Orlando

____________________

[1] Em francês no original: alemão sujo! (N.E.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário