O triste fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto
A João Luiz Ferreira
Engenheiro Civil
Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire.
Renan, Marc-Auréle
TERCEIRA PARTE
II - Você, Quaresma, É um Visionário
Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado da terra, mal se enxergam as partes baixas dos edifícios próximos; para o lado do mar, então, a vista é impotente contra aquela treva esbranquiçada e flutuante, contra aquela muralha de flocos e opaca, que se condensa ali e aqui em aparições, em semelhanças de cousas. O mar está silencioso: há grandes intervalos entre o seu fraco marulho. Vê-se da praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e o odor da maresia parece mais forte com a neblina. Para a esquerda e para a direita, é o desconhecido, o Mistério. Entretanto, aquela pasta espessa, de uma claridade difusa, está povoada de ruídos. O chiar das serras vizinhas, os apitos de fábricas e locomotivas, os guinchos de guindastes dos navios enchem aquela manhã indecifrável e taciturna; e ouve-se mesmo a bulha compassada de remos que ferem o mar. Acreditase, dentro daquele decoro, que é Caronte que traz a sua barca para uma das margens do Estige... Atenção! Todos perscrutam a cortina de névoa pastosa. Os rostos estão alterados; parece que, do seio da bruma, vão surgir demônios...
Não se ouve a bulha: o escaler afastou-se. As fisionomias respiram aliviadas...
Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a hora da angústia, é a luz da incerteza. No mar, não há estrelas nem sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro às paredes brancas das casas. A nossa miséria é mais completa e a falta daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do nosso isolamento no seio da natureza grandiosa.
Os ruídos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da terra ou são alucinações auditivas. A realidade só nos vem do pedaço de mar que se avista, marulhando com grandes intervalos, fracamente, tenuemente, a medo, de encontro à areia da praia, suja de bodelhas, algas e sargaços.
Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela relva que continua a praia.
Alguns já cochilam; outros procuram com os olhos o céu através do nevoeiro que lhes umedece o rosto.
O cabo Ricardo Coração dos Outros, de rifle à cintura e gorro à cabeça, sentado numa pedra, está de parte, sozinho, e olha aquela manhã angustiosa.
Era a primeira vez que via a cerração assim perto do mar, onde ela faz sentir toda a sua força de desesperar. Em geral, ele só tinha olhos para as alvoradas claras e purpurinas, macias e fragrantes; aquele amanhecer brumoso e feio era uma novidade para ele.
Sob o fardamento de cabo, o menestrel não se aborrece. Aquela vida solta da caserna vai-lhe bem n’alma; o violão está lá dentro e, em horas de folga, ele o experimenta, cantarolando em voz baixa. É preciso não enferrujar os dedos... O seu pequeno aborrecimento é não poder, de quando em quando, soltar o peito.
O comandante do destacamento é Quaresma que, talvez, consentisse...
O major está no interior da casa que serve de quartel, lendo. O seu estudo predileto é agora artilharia. Comprou compêndios; mas, como sua instrução é insuficiente, da artilharia vai à balística, da balística à mecânica, da mecânica ao cálculo e à geometria analítica; desce mais a escada; vai à trigonometria, à geometria e à álgebra e à aritmética. Ele percorre essa cadeia de ciências entrelaçadas com uma fé de inventor. Aprende uma noção elementaríssima após um rosário de consultas, de compêndio em compêndio; e leva assim aqueles dias de ócio guerreiro enfronhado na matemática, nessa matemática rebarbativa e hostil aos cérebros que já não são moços.
Há no destacamento um canhão Krupp, mas ele nada tem a ver com o mortífero aparelho; contudo, estuda artilharia. É encarregado dele o Tenente Fontes, que não dá obediência ao patriota major. Quaresma não se incomoda com isso; vai aprendendo lentamente a servir-se da boca-de-fogo e submete-se à arrogância do subalterno.
O comandante do “Cruzeiro do Sul”, o Bustamente da barba mosaica, continua no quartel, superintendendo a vida do batalhão. A unidade tem poucos oficiais e muito poucas praças; mas o Estado paga o pré de quatrocentas. Há falta de capitães, o número de alferes está justo, o de tenentes quase, mas já há um major, que é Quaresma, e o comandante, Bustamente, que, por modéstia, se fez simplesmente tenente-coronel.
Tem quarenta praças o destacamento que Quaresma comanda, três alferes, dous tenentes; mas os oficiais pouco aparecem. Estão doentes ou licenciados e só ele, o antigo agricultor do “Sossego”, e um alferes, Polidoro, este mesmo só à noite, estão a postos. Um soldado entrou:
- Senhor comandante, posso ir almoçar?
- Pode. Chama-me o cabo Ricardo.
A praça saiu capengando em cima de grandes botinas; o pobre homem usava aquela peça protetora como um castigo. Assim que se viu no mato, que levava a sua casa, tirou-as e sentiu pelo rosto o sopro da liberdade.
O comandante chegou à janela. A cerração se ia dissipando. Já se via o sol que brilhava como um disco de ouro fosco.
Ricardo Coração dos Outros apareceu. Estava engraçado dentro do seu fardamento de caporal. A blusa era curtíssima, sungada; os punhos lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e arrastavam no chão.
- Como vais, Ricardo?
- Bem. E o senhor, major?
- Assim.
Quaresma deitou sobre o inferior e amigo aquele seu olhar agudo e demorado:
Não se ouve a bulha: o escaler afastou-se. As fisionomias respiram aliviadas...
Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a hora da angústia, é a luz da incerteza. No mar, não há estrelas nem sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro às paredes brancas das casas. A nossa miséria é mais completa e a falta daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do nosso isolamento no seio da natureza grandiosa.
Os ruídos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da terra ou são alucinações auditivas. A realidade só nos vem do pedaço de mar que se avista, marulhando com grandes intervalos, fracamente, tenuemente, a medo, de encontro à areia da praia, suja de bodelhas, algas e sargaços.
Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela relva que continua a praia.
Alguns já cochilam; outros procuram com os olhos o céu através do nevoeiro que lhes umedece o rosto.
O cabo Ricardo Coração dos Outros, de rifle à cintura e gorro à cabeça, sentado numa pedra, está de parte, sozinho, e olha aquela manhã angustiosa.
Era a primeira vez que via a cerração assim perto do mar, onde ela faz sentir toda a sua força de desesperar. Em geral, ele só tinha olhos para as alvoradas claras e purpurinas, macias e fragrantes; aquele amanhecer brumoso e feio era uma novidade para ele.
Sob o fardamento de cabo, o menestrel não se aborrece. Aquela vida solta da caserna vai-lhe bem n’alma; o violão está lá dentro e, em horas de folga, ele o experimenta, cantarolando em voz baixa. É preciso não enferrujar os dedos... O seu pequeno aborrecimento é não poder, de quando em quando, soltar o peito.
O comandante do destacamento é Quaresma que, talvez, consentisse...
O major está no interior da casa que serve de quartel, lendo. O seu estudo predileto é agora artilharia. Comprou compêndios; mas, como sua instrução é insuficiente, da artilharia vai à balística, da balística à mecânica, da mecânica ao cálculo e à geometria analítica; desce mais a escada; vai à trigonometria, à geometria e à álgebra e à aritmética. Ele percorre essa cadeia de ciências entrelaçadas com uma fé de inventor. Aprende uma noção elementaríssima após um rosário de consultas, de compêndio em compêndio; e leva assim aqueles dias de ócio guerreiro enfronhado na matemática, nessa matemática rebarbativa e hostil aos cérebros que já não são moços.
Há no destacamento um canhão Krupp, mas ele nada tem a ver com o mortífero aparelho; contudo, estuda artilharia. É encarregado dele o Tenente Fontes, que não dá obediência ao patriota major. Quaresma não se incomoda com isso; vai aprendendo lentamente a servir-se da boca-de-fogo e submete-se à arrogância do subalterno.
O comandante do “Cruzeiro do Sul”, o Bustamente da barba mosaica, continua no quartel, superintendendo a vida do batalhão. A unidade tem poucos oficiais e muito poucas praças; mas o Estado paga o pré de quatrocentas. Há falta de capitães, o número de alferes está justo, o de tenentes quase, mas já há um major, que é Quaresma, e o comandante, Bustamente, que, por modéstia, se fez simplesmente tenente-coronel.
Tem quarenta praças o destacamento que Quaresma comanda, três alferes, dous tenentes; mas os oficiais pouco aparecem. Estão doentes ou licenciados e só ele, o antigo agricultor do “Sossego”, e um alferes, Polidoro, este mesmo só à noite, estão a postos. Um soldado entrou:
- Senhor comandante, posso ir almoçar?
- Pode. Chama-me o cabo Ricardo.
A praça saiu capengando em cima de grandes botinas; o pobre homem usava aquela peça protetora como um castigo. Assim que se viu no mato, que levava a sua casa, tirou-as e sentiu pelo rosto o sopro da liberdade.
O comandante chegou à janela. A cerração se ia dissipando. Já se via o sol que brilhava como um disco de ouro fosco.
Ricardo Coração dos Outros apareceu. Estava engraçado dentro do seu fardamento de caporal. A blusa era curtíssima, sungada; os punhos lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e arrastavam no chão.
- Como vais, Ricardo?
- Bem. E o senhor, major?
- Assim.
Quaresma deitou sobre o inferior e amigo aquele seu olhar agudo e demorado:
- Andas aborrecido, não é?
O trovador sentiu-se alegre com o interesse do comandante:
- Não... Para que dizer, major, que sim... Se a coisa for assim até ao fim, não é mau... O diabo é quando há tiro... Uma coisa, major; não se poderia, assim, aí pelas horas em que não há que fazer, ir nas mangueiras, cantar um pouco...
O major coçou a cabeça, alisou o cavanhaque e disse:
- Eu, não sei... É...
- O senhor sabe que isso de cantar baixo é remar em seco... Dizem que no Paraguai...
- Bem. Cante lá; mas não grite, hein?
Calaram-se um pouco; Ricardo ia partir quando o major recordou:
- Manda-me trazer o almoço.
Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro também dormir. As refeições eram-lhe fornecidas por um “frege” próximo e ele dormia em um quarto daquela edificação imperial. Porque a casa em que se acantonara o destacamento era o pavilhão do imperador, situado na antiga Quinta da Ponta do Caju. Ficavam nela também a estação da estrada de ferro do Rio Douro e uma grande e barulhenta serraria. Quaresma veio até à porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o imperador a quisesse para banhos. A cerração se ia dissipando inteiramente.
As formas das cousas saíam modeladas do seio daquela massa de névoa pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase repentinamente, as altas.
À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos à vela - que iam saindo da bruma, e, por instantes, aquilo tudo tinha um ar de paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos azuis, altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com os seus depósitos de carvão; e, alongando a vista pelo mar sossegado, Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz daquela manhã atrasada.
A neblina foi-se e um galo cantou. Era como se a alegria voltasse à terra; era uma aleluia. Aqueles chiados, aqueles apitos, os guinchos tinham um acento festivo de contentamento.
Chegou o almoço e o sargento veio dizer a Quaresma que havia duas deserções.
- Mais duas? fez admirado o major.
- Sim, senhor. O cento e vinte e cinco e o trezentos e vinte não responderam hoje a revista.
- Faça a parte.
Quaresma almoçava. O Tenente Fontes, o homem do canhão, chegou. Quase nunca dormia ali; pernoitava em casa, e, durante o dia, vinha ver as cousas como iam.
Uma madrugada, ele não estava. A treva ainda era profunda. O soldado de vigia viu lá ao longe um vulto que se movia dentro da sombra, resvalando sobre as águas do mar. Não trazia luz alguma: só o movimento daquela mancha escura revelava uma embarcação, e também a ligeira fosforescência das águas. O soldado deu rebate; o pequeno destacamento pôs-se a postos e Quaresma apareceu.
- O canhão! Já! Avante! ordenou o comandante. E em seguida, nervoso, recomendou:
- Esperem um pouco.
Correu a casa e foi consultar os seus compêndios e tabelas. Demorou-se e a lancha avançava, os soldados estavam tontos e um deles tomou a iniciativa: carregou a peça e disparou-a.
Quaresma reapareceu correndo, assustado, e disse, entrecortado pelo resfolegar:
- Viram bem... a distância... a alça... o ângulo... É preciso ter sempre em vista a eficiência do fogo.
Fontes veio e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:
- Ora, major, você pensa que está em um polígono, fazendo estudos práticos... Fogo para diante!
E assim era. Quase todas as tardes havia bombardeio, do mar para as fortalezas, e das fortalezas para o mar; e, tanto os navios como os fortes saíam incólumes de tão terríveis provas.
Lá vinha uma ocasião, porém, que acertavam, então os jornais noticiavam: “Ontem, o forte Acadêmico fez um maravilhoso disparo. Com o canhão tal, meteu uma bala no ‘Guanabara’.” No dia seguinte, o mesmo jornal retificava, a pedido da bateria do cais Pharoux, que era a que tinha feito o disparo certeiro. Passavam-se dias e a cousa já estava esquecida, quando aparecia uma carta de Niterói, reclamando as honras do tiro para a fortaleza de Santa Cruz.
O Tenente Fontes chegou e esteve examinando o canhão com o faro de entendedor. Havia uma trincheira de fardo de alfafa e a boca da peça saía por entre os fiapos de palha, como as goelas de um animal feroz oculto entre ervas.
Olhava o horizonte, depois de exame atento ao canhão, e considerava a ilha das Cobras, quando ouviu o gemer do violão e uma voz que dizia:
Prometo pelo Santíssimo Sacramento...
Dirigiu-se para o local donde partiam os sons e se lhe derrapou este lindíssimo quadro: à sombra de uma grande árvore, os soldados deitados ou sentados em círculo, em torno de Ricardo Coração dos Outros, que entoava endechas magoadas.
As praças tinham acabado de almoçar e beber a pinga, e estavam tão embevecidas na canção de Ricardo que não deram pela chegada do jovem oficial.
O trovador sentiu-se alegre com o interesse do comandante:
- Não... Para que dizer, major, que sim... Se a coisa for assim até ao fim, não é mau... O diabo é quando há tiro... Uma coisa, major; não se poderia, assim, aí pelas horas em que não há que fazer, ir nas mangueiras, cantar um pouco...
O major coçou a cabeça, alisou o cavanhaque e disse:
- Eu, não sei... É...
- O senhor sabe que isso de cantar baixo é remar em seco... Dizem que no Paraguai...
- Bem. Cante lá; mas não grite, hein?
Calaram-se um pouco; Ricardo ia partir quando o major recordou:
- Manda-me trazer o almoço.
Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro também dormir. As refeições eram-lhe fornecidas por um “frege” próximo e ele dormia em um quarto daquela edificação imperial. Porque a casa em que se acantonara o destacamento era o pavilhão do imperador, situado na antiga Quinta da Ponta do Caju. Ficavam nela também a estação da estrada de ferro do Rio Douro e uma grande e barulhenta serraria. Quaresma veio até à porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o imperador a quisesse para banhos. A cerração se ia dissipando inteiramente.
As formas das cousas saíam modeladas do seio daquela massa de névoa pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase repentinamente, as altas.
À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos à vela - que iam saindo da bruma, e, por instantes, aquilo tudo tinha um ar de paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos azuis, altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com os seus depósitos de carvão; e, alongando a vista pelo mar sossegado, Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz daquela manhã atrasada.
A neblina foi-se e um galo cantou. Era como se a alegria voltasse à terra; era uma aleluia. Aqueles chiados, aqueles apitos, os guinchos tinham um acento festivo de contentamento.
Chegou o almoço e o sargento veio dizer a Quaresma que havia duas deserções.
- Mais duas? fez admirado o major.
- Sim, senhor. O cento e vinte e cinco e o trezentos e vinte não responderam hoje a revista.
- Faça a parte.
Quaresma almoçava. O Tenente Fontes, o homem do canhão, chegou. Quase nunca dormia ali; pernoitava em casa, e, durante o dia, vinha ver as cousas como iam.
Uma madrugada, ele não estava. A treva ainda era profunda. O soldado de vigia viu lá ao longe um vulto que se movia dentro da sombra, resvalando sobre as águas do mar. Não trazia luz alguma: só o movimento daquela mancha escura revelava uma embarcação, e também a ligeira fosforescência das águas. O soldado deu rebate; o pequeno destacamento pôs-se a postos e Quaresma apareceu.
- O canhão! Já! Avante! ordenou o comandante. E em seguida, nervoso, recomendou:
- Esperem um pouco.
Correu a casa e foi consultar os seus compêndios e tabelas. Demorou-se e a lancha avançava, os soldados estavam tontos e um deles tomou a iniciativa: carregou a peça e disparou-a.
Quaresma reapareceu correndo, assustado, e disse, entrecortado pelo resfolegar:
- Viram bem... a distância... a alça... o ângulo... É preciso ter sempre em vista a eficiência do fogo.
Fontes veio e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:
- Ora, major, você pensa que está em um polígono, fazendo estudos práticos... Fogo para diante!
E assim era. Quase todas as tardes havia bombardeio, do mar para as fortalezas, e das fortalezas para o mar; e, tanto os navios como os fortes saíam incólumes de tão terríveis provas.
Lá vinha uma ocasião, porém, que acertavam, então os jornais noticiavam: “Ontem, o forte Acadêmico fez um maravilhoso disparo. Com o canhão tal, meteu uma bala no ‘Guanabara’.” No dia seguinte, o mesmo jornal retificava, a pedido da bateria do cais Pharoux, que era a que tinha feito o disparo certeiro. Passavam-se dias e a cousa já estava esquecida, quando aparecia uma carta de Niterói, reclamando as honras do tiro para a fortaleza de Santa Cruz.
O Tenente Fontes chegou e esteve examinando o canhão com o faro de entendedor. Havia uma trincheira de fardo de alfafa e a boca da peça saía por entre os fiapos de palha, como as goelas de um animal feroz oculto entre ervas.
Olhava o horizonte, depois de exame atento ao canhão, e considerava a ilha das Cobras, quando ouviu o gemer do violão e uma voz que dizia:
Prometo pelo Santíssimo Sacramento...
Dirigiu-se para o local donde partiam os sons e se lhe derrapou este lindíssimo quadro: à sombra de uma grande árvore, os soldados deitados ou sentados em círculo, em torno de Ricardo Coração dos Outros, que entoava endechas magoadas.
As praças tinham acabado de almoçar e beber a pinga, e estavam tão embevecidas na canção de Ricardo que não deram pela chegada do jovem oficial.
- Que é isto? disse ele severamente.
Os soldados levantaram-se todos, em continência; e Ricardo, com a mão direita no gorro, perfilado, e a esquerda, segurando o violão, que repousava no chão, desculpou-se:
- “Seu” tenente, foi o major quem permitiu. Vossa Senhoria sabe que se nós não tivéssemos ordem, não iríamos brincar.
- Bem. Não quero mais isto, disse o oficial.
- Mas, objetou Ricardo, o Senhor Major Quaresma...
- Não temos aqui Major Quaresma. Não quero, já disse!
Os soldados levantaram-se todos, em continência; e Ricardo, com a mão direita no gorro, perfilado, e a esquerda, segurando o violão, que repousava no chão, desculpou-se:
- “Seu” tenente, foi o major quem permitiu. Vossa Senhoria sabe que se nós não tivéssemos ordem, não iríamos brincar.
- Bem. Não quero mais isto, disse o oficial.
- Mas, objetou Ricardo, o Senhor Major Quaresma...
- Não temos aqui Major Quaresma. Não quero, já disse!
Os soldados debandaram e o Tenente Fontes seguiu para a velha casa imperial, ao encontro do major do “Cruzeiro do Sul”. Quaresma continuava no seu estudo, um rolar de Sísifo, mas voluntário, para a grandeza da pátria. Fontes foi entrando e dizendo:
- Que é isto, “Seu” Quaresma! Então o senhor permite cantorias no destacamento?
O major não se lembrava mais da cousa e ficou espantado com o ar severo e ríspido do moço. Ele repetiu:
- Então o senhor permite que os inferiores cantem modinhas e toquem violão, em pleno serviço?
- Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha...
- E a disciplina? E o respeito?
- Bem, vou proibir, disse Quaresma.
- Não é preciso. Já proibi.
Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo para agastamento e disse com doçura:
- Fez bem.
Em seguida perguntou ao oficial o modo de extrair a raiz quadrada de uma fração decimal; o rapaz ensinou-lhe e eles estiveram cordialmente conversando sobre cousas vulgares. Fontes era noivo de Lalá, a terceira filha do general Albernaz, e esperava acabar a revolta para efetuar o casamento.
Durante uma hora a conversa entre os dous versou sobre este pequenino fato familiar a que estavam ligados aqueles estrondos, aqueles tiros, aquela solene disputa entre duas ambições. Subitamente, a corneta feriu o ar com a sua voz metálica. Fontes assestou o ouvido; o major perguntou:
- Que toque é?
- Sentido.
Os dous saíram. Fontes perfeitamente fardado; e o major apertando o talim, sem encontrar jeito, tropeçando na espada venerável que teimava em se lhe meter entre as pernas curtas. Os soldados já estavam nas trincheiras, armas à mão; o canhão tinha ao lado a munição necessária. Uma lancha avançava lentamente, com a proa alta assestada para o posto. De repente, saiu de sua borda um golfão de fumaça espessa: Queimou! - gritou uma voz. Todos se abaixaram, a bala passou alto, zunindo, cantando, inofensiva. A lancha continuava a avançar impávida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a assistir o tiroteio, e fora um destes que gritara: queimou!
E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.
Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o céu.
Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de teatro: “Queimou Santa Cruz! Agora é o ‘Aquidabã’! Lá vai!” E dessa maneira a revolta ia, familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade. Nos cais Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornais, engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinários, das árvores, a ver, a esperar a queda das balas; e quando acontecia cair uma, corriam todos em bolo, a apanhá-la como se fosse uma moeda ou guloseima.
As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de relógios, lapiseiras, feitas com as pequenas balas de fuzis; faziam-se também coleções das médias e com os seus estojos de metal, areados, polidos, lixados, ornavam os consolos, os dunkerques das casas médias; as grandes, os “melões” e as “abóboras”, como chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou estátuas.
A lancha continuava a atirar; Fontes fez um disparo. O canhão vomitou o projétil, recuou um pouco e logo foi posto em posição. A embarcação respondeu e o rapazote gritou: queimou!
Eram sempre esses garotos que anunciavam os tiros do inimigo. Mal viam o fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar devagar, muito pesada, gritavam: queimou!
Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade. Chamavam-no “Trinta-Réis”; os jornais do tempo ocuparam-se com ele, fizeram-se subscrições a seu favor. Um herói! Passou a revolta e foi esquecido, tanto ele como a “Luci”, uma bela lancha que chegou fazer-se entidade na imaginação da urbs, a interessá-la, a criar inimigos e admiradores.
A embarcação deixou de provocar a fúria do posto do Caju, e Fontes deu instruções ao seu chefe da peça, e foi-se embora
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
- Que é isto, “Seu” Quaresma! Então o senhor permite cantorias no destacamento?
O major não se lembrava mais da cousa e ficou espantado com o ar severo e ríspido do moço. Ele repetiu:
- Então o senhor permite que os inferiores cantem modinhas e toquem violão, em pleno serviço?
- Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha...
- E a disciplina? E o respeito?
- Bem, vou proibir, disse Quaresma.
- Não é preciso. Já proibi.
Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo para agastamento e disse com doçura:
- Fez bem.
Em seguida perguntou ao oficial o modo de extrair a raiz quadrada de uma fração decimal; o rapaz ensinou-lhe e eles estiveram cordialmente conversando sobre cousas vulgares. Fontes era noivo de Lalá, a terceira filha do general Albernaz, e esperava acabar a revolta para efetuar o casamento.
Durante uma hora a conversa entre os dous versou sobre este pequenino fato familiar a que estavam ligados aqueles estrondos, aqueles tiros, aquela solene disputa entre duas ambições. Subitamente, a corneta feriu o ar com a sua voz metálica. Fontes assestou o ouvido; o major perguntou:
- Que toque é?
- Sentido.
Os dous saíram. Fontes perfeitamente fardado; e o major apertando o talim, sem encontrar jeito, tropeçando na espada venerável que teimava em se lhe meter entre as pernas curtas. Os soldados já estavam nas trincheiras, armas à mão; o canhão tinha ao lado a munição necessária. Uma lancha avançava lentamente, com a proa alta assestada para o posto. De repente, saiu de sua borda um golfão de fumaça espessa: Queimou! - gritou uma voz. Todos se abaixaram, a bala passou alto, zunindo, cantando, inofensiva. A lancha continuava a avançar impávida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a assistir o tiroteio, e fora um destes que gritara: queimou!
E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.
Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o céu.
Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de teatro: “Queimou Santa Cruz! Agora é o ‘Aquidabã’! Lá vai!” E dessa maneira a revolta ia, familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade. Nos cais Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornais, engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinários, das árvores, a ver, a esperar a queda das balas; e quando acontecia cair uma, corriam todos em bolo, a apanhá-la como se fosse uma moeda ou guloseima.
As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de relógios, lapiseiras, feitas com as pequenas balas de fuzis; faziam-se também coleções das médias e com os seus estojos de metal, areados, polidos, lixados, ornavam os consolos, os dunkerques das casas médias; as grandes, os “melões” e as “abóboras”, como chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou estátuas.
A lancha continuava a atirar; Fontes fez um disparo. O canhão vomitou o projétil, recuou um pouco e logo foi posto em posição. A embarcação respondeu e o rapazote gritou: queimou!
Eram sempre esses garotos que anunciavam os tiros do inimigo. Mal viam o fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar devagar, muito pesada, gritavam: queimou!
Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade. Chamavam-no “Trinta-Réis”; os jornais do tempo ocuparam-se com ele, fizeram-se subscrições a seu favor. Um herói! Passou a revolta e foi esquecido, tanto ele como a “Luci”, uma bela lancha que chegou fazer-se entidade na imaginação da urbs, a interessá-la, a criar inimigos e admiradores.
A embarcação deixou de provocar a fúria do posto do Caju, e Fontes deu instruções ao seu chefe da peça, e foi-se embora
continua na página 80...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
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