(III) o descolocado
24bs – a noite do sábado
baitasar
O que é, Maria?
memória limpava as orelhas e o rabo do porco, Limpa as patas...
Deixa pra mim.
quando acabou de limpar e lavar as patas, todo o resto estava pronto para ser jogado no caldeirão, Maria!
O que é, Virgílio?
Onde tá o latão?
Não sei... jogado por aí, Por aí onde, minha preta?
memória sentiu o aviso de aproximação, virgílio não tinha esses costumes de beijinhos, abraços e carinhos, aquele chamado de: Minha preta, lhe provocou um desconforto esperançoso, e mais certeza lhe deu que essa feijoada é comida da alma, Por aí... procura, sentou um pouquinho de nada pra respirar depois de tanta lavação e mamada
Achei!
É bem isso, viu? pra achar é preciso levantar a bunda da cadeira e procurar, ele não retrucou, outro aviso de achegamento
Agora é só começar a fervura dos bofes: banha, fígado, coração, toucinho e os miudeza mais pequena.
memória bateu a palma das mãos nas pernas e levantou enquanto a voz abaixou, A vizinha não vai gostar, Virgílio. Acho que não tinha necessidade de tanta exatidão nas partes do porco. Essa justeza todo só faz dar lucro pro açougueiro. Vou até a casinha...
o feijoeiro parou de mexer e remexer as águas do caldeirão, largou na pia a colher de pau, ele mesmo fez de um pau ajuntado da rua, só precisou de uma faca e paciência, resmungava sozinho na deserção da memória, Mas é claro que vai gostar. É alimento que já deu e dá sustento. Aprendi com painho que aprendeu do avôinho e assim foi...
E se ela perguntar, Virgílio, o feijoeiro assustado resmungava palavrão e reprovação, Cruzes, Maria! Chegando assim de mansinho até parece que gosta de alvoroçar as minha calmaria, memória não estava confortável naquela papel de enganação, às vezes se faz o bem, outras nem tão bem mesmo não querendo assim
Perguntar o quê? Sobre como temperamos nossa vida? Aposto que não pergunta.
E se perguntar das partes do porco que tem na feijoada, não estava satisfeita com aquele assentamento da enganação, já tinha discutido com o virgílio outras jeitos de fazer a feijoada sem mentirinha pequena ou grande
Caso ela pergunte, o que eu duvido muito, tu responde que não.
E por que tu não responde?
na verdade, nenhum dos dois se espantaria caso a vizinha nada perguntasse, parecia ser uma pessoa verdadeira, e pessoas assim não acreditam que as pessoas mentem, sabem que mentem, mas não acreditam, Deixa pra mim, eu sou o degenerado aqui em casa.
Vou aproveitar o sossego da Futuro e lavar o latão...
Quê latão?
O latão da feijoada...
Já coloquei quase tudo no latão.
Virgílio!, os dois se olhavam sem acreditar, como poderia algo bom nascer da mentira, a enganação egoísta de fazer ver e experimentar só a sua vontade não iria funcionar, Já estou arrependida, isso tudo parece uma feijoada de fachada.
O que foi, Maria? Calma...
a guerra fria se restabelecia, mesmo quando nada ou quase nada adianta, coisa nenhuma nem ninguém protege quem não se protege, nuvens carregadas de chuvas e relâmpagos dançam na atmosfera da casa, olhos de aguardente, a invencível água braba para um homem repleto de aguardente, Onde tu achou esse latão?
No pátio... eu lavei... eu já lavei...
Tu jura?!
Juro, e fez o sinal da cruz enquanto resmungava sua prece preferida, O que não mata cura...
passaram por mais essa pequena crise enquanto virgílio começava o fogo enredado com gravetinhos secos e pedrinhas de carvão, avivando o brazeiro com seu sopro, memória oferecendo a mamada para a miúda, Viva! Começou o fogo! Venha ver, minha filha, a miúda grudada na mamada não parecia ter apetite para a feijoada, Olhe o painho, minha filha.
Começamos a fervura hoje, desmanchando tudo na agitação do fogo.
para uma gente encharcada de miséria, não falar e não se mover é o que esperam os dono de tudo, montinhos de gente nas terras das umidades para serem vendidas ou usadas como descarrego sanitário, E temos lenha pra tanto tempo de fogo?
É isso ou usar o fogão a gás... ou não ter a feijoada...
Nem pensar, foi a palavra final da memória
as gentes das terras de baixo já convivem com mosquitos e as umidades do seu buraco de metro e meio de fundura por metro e meio de lado e frente, cal no fundo – ajuda desmanchar o estrume – e uma casinha com assento e espelho, é o jeito diferente das gentes povoarem aquelas terras, os dono de tudo descarregam suas porcarias no rio encanado que depois recolhem para matar a sede, a gentarada das terras de baixo é obrigada se contentar em enterrar suas águas sujas no buracos das casinhas, não podem desistir fácil da feijoada, Foi o que pensei.
mesmo assim, estão a mentir
esqueceram que se você mente em uma coisa mente em tudo mais, pelo menos, sabe como mentir em tudo mais
pegou a bacia do assento com as últimas miudezas espicaçadas, outras retalhadas ou desmembradas e jogou na água iniciando a sentir o calor do brazeiro, Acho que não temos lenha pra tanto tempo de fogaréu.
Se não tem, vai ter...
a comida da alma começava a noite do sábado, a culinária dos descendentes de escravizados pretos tem como especiaria central o feijão preto, partes do porco e farinha de mandioca, um lembrete do lar e da família na chaga aberta – e jamais fechada – da escravidão, infâmia que resiste desde o início da história humana até os dias de hoje, a propriedade de gente arrancada do seu lugar para serem compradas e vendidas sofrendo violência, sempre à disposição do dono, passando de pai para filho a propriedade de gente preta, um desenraizamento pelo chicote até o estranhamento do não pertencimento ao lugar, o desdém das rezas e das línguas de antes, pessoas perdidas da comida que reúne, ajunta e celebra a vida
E o rabo e as patas?
Deixa pra mim...
o olhar desconfiado e desaprovador da memória desafiava virgílio, O que tu vai fazer?
Já falei, é coisa pouca, na escassez é que essa gente das terras da beirada se criou e sobrevive, uma vida que continua apenas pela vontade de cada uma que não se deixa abater, O que tu vai fazer?
Nada além de cortar tudo em pedacinhos e colocar na fervura até parecer carne desfiada.
virgílio acredita que tudo tem razão de ser, se a feijoada já foi feita assim, é assim que precisa continuar a ser feita. É um ajuntamento do que aconteceu e não precisa mudar.
É bom mesmo não parecer o que é, ela só não quer confusão e mal-entendidos, no fim e ao cabo de tudo, ninguém sabe de ninguém nem falam de verdade as suas palavras mais secretas
a vontade racista associa a cor da pele com a condição de escravizado, selvagem, bárbaro, preguiçoso, idólatra, inteligência curta, canibal, promíscuo, salvo pelo aprendizado na servidão, assim nasce o racismo – a partir da escravidão dos negros e negras – no feitio e temperamento da villa
E pra temperar: um punhado de sal, pimentão, alho, cebolas, salsas, pimenta, talos e tomates...
E as patas?
As patas e o rabo estarão bem fininhas, ele se faz de desentendido, vão parecer costelinhas junto com tudo mais.
tudo acostuma, se não cabem todos
E a farinha de mandioca?
Calma, Maria.
E o óleo?
não conseguiu esconder seu tom de irritação com aquela pressa toda, Meu Deus, Maria! Calma... tudo a seu tempo.
Essa feijoada tem que dar certo!
Vai dar tudo certo, minha preta.
de novo o mesmo aviso de acercamento, a miúda depois da mamada e da bofada do jorro de ar pela boca dorme abastecida e tenra, Vou largar a miúda no cercado... em que posso ajudar? Não gosto de ficar só olhando, fico nervosa se não meto a mão na massa.
Coloca mais um pouco de água e sal.
Só isso? Tá bem assim?
Mais água... isso... mais um pouquinho... tá muito bom... enquanto levanta a fervura tu lava e eu descasco o aipim...
Vai cortar em rodelas fininhas?
Não vou cortar em rodelas fininhas, não é mocotó.
Ah é, confundi o cozido.
Vamos deixar o aipim descascado de molho até amanhã.
Mocotó... feijoada... que deliciosa mistura de sabores.
E cheiros... Maria!
O que foi, Virgílio?
pensava que tinha mais sorte que mais gente da rua, um teto, comida, cama e água, dois miúdos e uma miúda para contarem suas histórias, uma mulher com o mesmo rumo, nenhum dos dois tinha ganância, também não sobrava gratidão, eles sabiam que a vida podia ser diferente para eles, a polícia chegava gritando, empurrando a porta com os pés, espalhando chutes, pancadas, corpos pelo chão, entrava no beco para castigar nunca entrou para socorrer, as crianças choravam e aprendiam que na polícia não se podia confiar, as mulheres lamentavam
Onde está a serra de ferro?
Não sei e não imagino onde tá.
Que merda! Eu preciso dessa serra!
Pra quê?
Pra serrar o rabo... e as patas...
Tu ainda não aprontou a enganação, imaginava o som frenético da serrinha em cadenciados balanceios até que escapou um ai doloroso e profundo, a serra macabra indo e voltando, fatiando os pedaços das partes do porco
não acharam, é sempre assim, pelo menos, com memória e virgílio, aquilo que precisam não encontram, só vão achar a coisa perdida quando seu uso não é mais de utilidade – acham quase sempre nos desfrutes de brincadeira dos miúdos, nas coisas de passar o tempo da criancice
Tudo a seu tempo...
agora não tinha outra tarefa que produzir belas e apetitosas fatias do rabo e das patas, nas quais a sua destreza de serrar iria contrabalançar o nervosismo da enganação, Maria!
O que é, Virgílio?
Pede pra vizinha uma serrinha emprestada...
Eu não!
Maria, por favor.
a feijoada do domingo começava efetivamente a noite do sábado
E a couve... esquecemos da couve!
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