quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Massa e Poder - A Massa (A Erupção)

Elias Canetti


A  ERUPÇÃO


A massa aberta é a massa propriamente dita, que se entrega livremente a seu ímpeto de crescimento. Uma massa aberta não tem uma ideia ou sensação clara de quão grande poderá vir a ser. Ela não se atém a nenhum edifício que conheça e deva preencher. Sua medida não se encontra fixada; ela deseja crescer até o infinito, e aquilo de que precisa para tanto são mais e mais pessoas. É nesse seu estado nu e cru que a massa mais chama a atenção. Ainda assim, ela conserva algo de extraordinário e, visto desintegrar-se sempre, não é levada totalmente a sério. Talvez se persistisse não a encarando com a seriedade que lhe é devida, não fosse pelo fato de o aumento vertiginoso da população mundial e o rápido crescimento das cidades, ambos característicos desta nossa época moderna, terem propiciado oportunidades cada vez mais frequentes para sua formação.

As massas fechadas do passado, das quais ainda se falará mais adiante, transformaram-se todas em instituições conhecidas. O estado peculiar no qual mergulhavam amiúde seus participantes parecia algo natural; as pessoas sempre se reuniam com um determinado fim — fosse ele de natureza religiosa, comemorativa ou bélica —, e esse fim parecia santificar seu estado. Quem assistia a uma pregação certamente acreditava de boa-fé ser a pregação o que lhe interessava; tê-lo-ia espantado e mesmo revoltado, talvez, que alguém lhe explicasse causar-lhe maior satisfação o grande número de ouvintes presentes do que o próprio pregador. Todas as cerimônias e regras pertinentes a tais instituições visavam fundamentalmente apanhar a massa: melhor uma igreja segura, cheia de de fieis do que todo o inseguro mundo. Na regularidade das idas à igreja, na repetição familiar e precisa de certos ritos, assegura-se à massa uma espécie de experimentação domesticada dela mesma. O transcorrer dessas cerimônias, realizadas de tempos em tempos, transforma-se num sucedâneo para necessidades de natureza mais rude e violenta.

Tivesse o número de homens permanecido aproximadamente o mesmo, talvez tais instituições houvessem bastado. Mas cada vez mais pessoas circulavam pelas cidades; nos últimos duzentos anos, a multiplicação da população deu-se numa velocidade crescente. Com isso, estavam dados todos os incentivos para a formação de massas novas e maiores, e, sob tais condições, nada — nem mesmo o governo mais experimentado e refinado — teria sido capaz de coibi-las.

Todas as insurreições contra um cerimonial tradicional que a história da religião relata apresentam-se voltadas contra a limitação da massa, que, afinal, quer tornar a sentir o seu crescimento. Tome-se, por exemplo, o Sermão da Montanha, no Novo Testamento: ele acontece ao ar livre — milhares de pessoas podem ouvi-lo — e dirige-se, não há dúvida, contra a realização restritiva das cerimônias no templo oficial. Pense-se, ademais, na tendência do cristianismo paulino a romper as fronteiras do judaísmo, enquanto nação e tribo, e tornar-se uma crença universal, para toda a humanidade. E veja-se o desdém do budismo pelo sistema de castas da Índia de outrora.

Mesmo a história interna de cada uma das religiões universais é rica em acontecimentos de significado semelhante. O templo, a casta e a igreja são sempre demasiado estreitos. As Cruzadas conduzem à formação de massas de uma proporção que nenhuma igreja do mundo de então teria sido capaz de abrigar. Posteriormente, cidades inteiras transformam-se em espectadoras dos atos dos flagelantes, que, ademais peregrinam de cidade em cidade. Ainda no século XVIII, Wesley constrói seu movimento a partir de pregações ao ar livre. Tem plena consciência do significado da enorme massa dos seus ouvintes e, por vezes, calcula em seu diário quantos o terão ouvido em sua última pregação. Invariavelmente, a erupção para além dos locais fechados significa que a massa quer de volta o velho prazer que lhe proporciona o crescimento súbito, rápido e ilimitado.

Denomino, pois, erupção a repentina transformação de uma massa fechada em aberta. Trata-se de um fenômeno frequente, mas não se pode entendê-lo num sentido puramente espacial. Em geral, seu aspecto é o de uma massa transbordando de um espaço no qual se encontrava bem protegida para a praça e para as ruas de uma cidade, onde, atraindo todos para si e exposta a tudo, ela se movimenta livremente. Mais importante, porém, do que esse processo interior é o fenômeno exterior correspondente: a insatisfação com o caráter limitado do número de participantes; a vontade súbita de atrair, a firme e apaixonada disposição de atingir a todos.

A partir da Revolução Francesa, tais erupções repentinas adquiriram uma forma que entendemos como moderna. Talvez em função de a massa ter se libertado tão grandemente do teor das religiões tradicionais, é-nos desde então mais fácil vê-la nua e crua, vê-la biologicamente — poder-se-ia dizer —, destituída dos significados e metas transcendentais que, anteriormente, ela se deixava inculcar. A história dos últimos 150 anos culminou numa veloz multiplicação de tais erupções, incluindo até mesmo as guerras, transformadas em guerras de massas. A massa não se contenta mais com condições e promessas pias; deseja vivenciar ela própria a grandiosa sensação de sua força e paixão animais, valendo-se continuamente para tanto de tudo quanto se lhe oferece em termos de oportunidades e demandas sociais.

É importante estabelecer, antes de tudo, que a massa jamais se sente saciada. Enquanto houver alguém que não se tenha deixado apanhar por ela, ela demonstrará apetite. Se seguiria demonstrando-o, uma vez tendo realmente absorvido a totalidade dos homens, isso ninguém pode afirmar com certeza, embora seja de se supor que sim. Há algo de impotência em suas tentativas de persistir. E o único caminho promissor para tanto é a formação de massas duplas, quando, então, uma massa se mede com outra. Quanto mais próximas elas forem em força e intensidade, tanto mais longamente sobreviverão ambas as massas a medir-se.



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Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (A Erupção)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.


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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg

Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim

Título original Masse und Macht


"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."


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