OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
A Luta
I . Antecedentes.II . Causas próximas da luta. Uauá.III . Preparativos da reação. A guerra das caatingas.IV . Autonomia duvidosa.,
III - Preparativos da reação
Esta, porém, preparou-se sob extemporânea disparidade de vistas entre o chefe da força federal na Bahia e o governador do Estado. Ao otimismo deste, resumindo a agitação sertaneja a desordem vulgar acessível às diligências policiais, contrapunha-se aquele, considerando-a mais séria, capaz de determinar verdadeiras operações de guerra.
De tal modo, a segunda expedição organizou-se sem um plano firme, sem responsabilidades definidas, através de explicações recíprocas entre as duas autoridades independentes e iguais. Compôs-se a princípio de 100 praças e 8 oficiais de linha, e 100 praças e 3 oficiais da força estadual.
Assim constituída, seguiu, a 25 de novembro, para Queimadas, sob o comando de um major do 9º Batalhão de Infantaria, Febrônio de Brito.
Simultaneamente o comandante do Distrito apelava para o governo federal requisitando, para a aparelhar melhor, 4 metralhadoras Nordenfelt, 2 canhões Krupp, de campanha, e mais 250 soldados: 100 do 26º Batalhão, de Aracaju, e 150 do 33º, de Alagoas.
Todo este aparato era justificável. Sucediam-se informações alarmantes, dando, dia a dia, realce à gravidade das cousas. À parte os exageros que houvessem, delas se colhiam a grandeza do número de rebeldes e os sérios empecilhos inerentes à região selvagem em que se acoutavam.
Estas novas, porém, baralhavam-nas sem-número de versões contraditórias agravadas pelos interesses inconfessáveis de uma falsa política sobre a qual nos dispensamos de discorrer.
Nem os apontaremos, embora largo tempo se perdesse, inútil, nesse agitar estéril de minudências desvaliosas — enquanto as linhas telegráficas vibravam da orla dos sertões para o Brasil inteiro, e permanecia, expectante, em Queimadas, o chefe da nova expedição, à frente de 243 praças de pré.
Baldo de recursos e a braços com toda espécie de dificuldades; oscilando no desencontro das informações; ora em desalentos, afigurando-se-lhe insuperável a empresa; ora cheio de inesperadas esperanças no alcançar o fim que se propunha, dali abalou somente em dezembro, para Monte Santo, ao tempo que lhe era mandado da Bahia novo reforço, de 100 praças.
Esta avançada já ia adscrita a um plano de campanha.
O comandante do Distrito compreendera a situação. Planeara atacar a revolta por dous pontos, fazendo avançar para um objetivo único não uma, mas duas colunas, sob a direção geral do coronel do 9º de Infantaria Pedro Nunes Tamarindo. Era um plano compatível com as circunstâncias da luta: estabelecer antes de tudo um cerco a distância; bater os insurrectos parceladamente e apertá-los, ao cabo, em movimentos envolventes de forças pouco numerosas e adestradas.
Realmente, libertas, estas, da morosidade própria às grandes massas, ajustar-se-iam melhor às escabrosidades do terreno, e do mesmo passo enfraqueceriam todas as causas de insucesso. Por outro lado, por mais original que seja o método combatente dos matutos — guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga! — rola todo neste círculo único. Não se desenvolve num plano qualquer permitindo dar aos grupos dispersos o centro unificador de um objetivo prefixado. Atacá-los, atraindo-os para diferentes pontos, é vencê-los.
Foi o que perceberam, desde muito, os nossos patrícios de há cem anos. Práticos nas vicissitudes das lutas sertanejas tinham organização militar correlativa1 — visando a formação sistemática de “tropas irregulares”, que, sem o embaraço das unidades táticas inalteráveis, e sem formaturas, agissem folgadamente no trançado das matas e sobre as asperezas do solo, auxiliando, reforçando e esclarecendo a ação das tropas regulares.
Daí as façanhas que crivam a nossa história nos XVII e XVIII séculos; o sem conto de revoltas debeladas ou quilombos dissolvidos por aqueles minúsculos exércitos de capitães-do-mato, através de batalhas ferocíssimas e sem nome. Imitando o próprio sistema do africano e do índio, os sertanistas dominavam-nos graças à mesma norma que se traduz por uma fórmula paradoxal: — dividir para fortalecer.
Devíamos, num transe igual, adotá-la. Era sem dúvida um recuo inevitável à guerra primitiva. Mas quando não o impusesse o jagunço solerte e bravo, impunha-o a natureza excepcional, que o defendia.
Vejamos.
A guerra das caatingas
Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a ciência, perturbando-he o remanso com um retinir de esporas insolentes — e formulam leis para a guerra pondo em equação as batalhas, têm definido bem o papel das florestas como agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sábios feldmarechais — guerreiros de cujas mãos caiu o franquisque heroico trocado pelo lápis calculista — se ouvissem a alguém que às caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às grandes matas virgens.
Porque estas, malgrado a sua importância para a defesa do território — orlando as fronteiras e quebrando o embate às invasões, impedindo mobilizações rápidas e impossibilitando a translação das artilharias — se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, aos dous beligerantes oferecendo a ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando-lhes por igual as manobras ou todos os desdobramentos em que a estratégia desencadeia os exércitos. São uma variável nas fórmulas do problema tenebroso da guerra, capaz dos mais opostos valores.
Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu.
E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, intangível...
As caatingas não o escondem apenas, amparam-no.
Ao avistá-las, no verão, uma coluna em marcha não se surpreende. Segue pelos caminhos em torcicolos, aforradamente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. Reagindo à canícula e com o desalinho natural às marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados.
É que nada pode assustá-los. Certo, se os adversários imprudentes com eles se afrontarem, serão varridos em momentos. Aqueles esgalhos far-se-ão em estilhas a um breve choque de espadas e não é crível que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras prontas. E lá se vão, marchando, tranquilamente heroicos...
De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro... A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada veem.
Há a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras.
E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda...
Então estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o antagonista que vê e não é visto. Forma-se celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhões constritos na vereda estreita. Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas...
Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projetis dos atiradores invisíveis batendo em cheio nas fileiras.
A situação rapidamente engravesce, exigindo resoluções enérgicas. Destacam-se outras unidades combatentes, escalonando-se por toda a extensão do caminho, prontas à primeira voz; — e o comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra os duendes. A força, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o matagal numa expansão irradiante de cargas. Avança com rapidez. Os adversários parecem recuar apenas. Nesse momento surge o antagonismo formidável da caatinga.
As seções precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que lhes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. Vê-se um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do Sol joeirados pelas árvores sem folhas; e parte-se, faiscando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos...
Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm, à toa, num labirinto de galhos. Caem presos pelos laços corredios dos quipás reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras...
Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontarias, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confusão e a desordem; — enquanto em torno, circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis bem apontados, caem inflexivelmente os projetis do adversário.
De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.
As seções voltam desfalcadas para a coluna, depois de inúteis pesquisas nas macegas. E voltam como se saíssem de recontro braço a braço, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondeadas ou perdidas; golpeadas de gilvazes; claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos...
Reorganiza-se a tropa. Renova-se a marcha. A coluna, estirada a dous de fundo, deriva pelas veredas em fora, estampado no cinzento da paisagem o traço vigoroso das fardas azuis listradas de vermelho e o coruscar intenso das baionetas ondulantes. Alonga-se; afasta-se; desaparece.
Passam-se minutos. No lugar da refrega, então, surgem, dentre moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no máximo. Deslizam, rápidos, em silêncio, entre os arbúsculos secos...
Agrupam-se na estrada. Consideram por momentos a tropa, indistinta, ao longe; e sopesando as espingardas ainda aquecidas, tomam precípites pelas veredas dos pousos ignorados.
A força vai prosseguindo mais cautelosa agora.
Subjugam o ânimo dos combatentes, caminhando em silêncio, o império angustioso do inimigo impalpável e a expectativa torturante dos assaltos imprevistos. O comandante rodeia-os de melhores resguardos: ladeiam-nos companhias dispersas, pelos flancos: duzentos metros na frente, além da vanguarda, norteia-os um esquadrão de praças escolhidas.
No descair da encosta agreste, porém, escancela-se um sulco de quebrada que é preciso transpor. Felizmente as barrancas, esterilizadas dos enxurros, estão limpas: escassos restolhos de gramíneas; cactos esguios avultando raros, entre blocos em montes; ramalhos mortos de umbuzeiros alvejando na estonadura da seca...
Desce por ali a guarda da frente. Seguem-se-lhe os primeiros batalhões. Escoam-se, vagarosas, as brigadas pela ladeira agreste. Embaixo, coleando nas voltas do vale estreito já está toda a vanguarda, armas fulgurantes, feridas pelo sol, feito uma torrente escura transudando raios...
E um estremecimento, choque convulsivo e irreprimível, fá-la estacar de súbito.
Passa, ressoando, uma bala.
Desta vez os tiros partem, lentos, de um só ponto, do alto, parecendo feitos por um atirador único.
A disciplina contém as fileiras; debela o pânico emergente; e como anteriormente, uma seção se destaca e vai, encosta acima, rastreando a direção dos estampidos. O torvelino dos ecos numerosos, porém, torna aquela variável; e os tiros não revelados, porque o fumo não se condensa naqueles ares ardentes, continuam lentos, assustadores, seguros.
Afinal cessam. Soldados esparsos pelos pendores, pesquisaram-nos inutilmente.
Volvem exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a marcha com algumas praças de menos. E quando as últimas armas desaparecem, ao longe, na última ondulação do solo, desenterra-se de montões de blocos — feito uma cariátide sinistra em ruínas ciclópicas — um rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado e rude; e transpondo velozmente as ladeiras vivas desaparece, em momentos, o trágico caçador de brigadas...
Estas seguem desinfluídas de todo. Daí por diante velhos lutadores têm pavores de criança. Há estremecimentos em cada volta do caminho, a cada estalido seco nas macegas. O exército sente na própria força a própria fraqueza.
Sem plasticidade segue numa exaustão contínua pelos ermos, atormentado no golpear das ciladas, lentamente sangrado pelo inimigo, que o assombra e que foge.
A luta é desigual. A força militar decai a um plano inferior. Batem-na o homem e a terra. E quando o sertão estua nos bochornos dos estios longos não é difícil prever a quem cabe a vitória. Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua envergadura de aço e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui à retaguarda, fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela flora agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo.
Então — nas quadras indecisas entre a seca e o verde, quando se topam os últimos fios de água no lodo das ipueiras e as últimas folhas amareladas nas ramas das baraúnas, e o forasteiro se assusta e foge ante o flagelo iminente, aquele segue feliz nas travessias longas, pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece a palmo todos os recantos do imenso lar sem teto. Nem lhe importa que a jornada se alongue, e as habitações rareiem, e se extingam as cacimbas, e escasseiem, nas baixadas, os abrigos transitórios, onde sesteiam os vaqueiros fatigados.
Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados.
O umbu desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras folhas; o araticum, o ouricuri virente, a mari elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarus talhados a facão, ou as folhas dos juás — sustentam-lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os caroás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes... E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no escuro apenas lobriga a fosforescência azulada das cunanãs dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante...
A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos.
continua 103...
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Leia também:
OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES - A Terra: III O clima
OS SERTÕES - A Terra: IV As secas
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: II ... A gênese do jagunço
OS SERTÕES - O Homem: II ... Um parêntese irritante
OS SERTÕES - O Homem: III ... O sertanejo é, antes de tudo, um forte
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Antônio Conselheiro, documento vivo
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Como se faz um monstro ...
OS SERTÕES - O Homem: V... Canudos antecedentes
OS SERTÕES - O Homem: V Polícia de bandidos
OS SERTÕES - O Homem: V... Agrupamento bizarro
OS SERTÕES - O Homem: V Uma missão abortada
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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