Graciliano Ramos
Volume I
Editora Record
PRIMEIRA PARTE
VIAGENS
6
Embarcamos, ziguezagueamos longamente na iluminação fraca do Recife. Achara-me ali vinte e dois anos antes, recolhido, enfermo, e ignorava a topografia da cidade: as
ruas es treitas e sem nome nada me diziam do itinerário. A um lado, o meu companheiro
dava-me palpites desprovidos de significação; no outro lado, o nosso guia, atento, digno, o
busto ereto, quase se invisibilizava na penumbra do veículo. Começava a esboçar-se a
terrível situação que ia perdurar: uma curiosidade louca a emaranhar-se em cordas,
embrenhar-se em labirintos, marrar paredes, e ali perto o informe necessário, imperceptível
nas linhas de uma cara enigmática e fria. Chegamos afinal diante de um vasto edifício,
saltamos. E, lembrando-me da exigência da manhã, aproximei-me do chauffeur, abri a
carteira, disposto a reduzir os cobres escassos.
– Ah! não! interpôs-se o nosso condutor. É um carro oficial.
Respirei aliviado. Atravessamos um portão, percorremos lugares que não me
deixaram nenhum vestígio na memória, desembocamos numa saleta onde um sujeito em
mangas de camisa bebia chá e mastigava torradas. Não se alterou com a nossa presença:
continuou sentado à mesinha, diante da bandeja, e nem deu mostra de perceber a
continência e algumas palavras indistintas do rapaz cortês. Pouco a pouco, inteirando-se de
qualquer coisa, entrou a manifestar sinais de inquietação, jogando-nos de soslaio olhadelas
descontentes. Tínhamos ido incomodá-lo, impacientava-se, murmurava uma recusa
teimosa, falando para dentro, sem deixar de mastigar a torrada. O movimento dos queixos e
o som abafado e monótono casavam-se de tal jeito que a recusa e a torrada pareciam
confundir-se. E as migalhas economizadas voltavam à boca, juntavam-se às sílabas
indecisas, tudo se moia num ronrom asmático. Não me chegava uma palavra, e o desagrado
apenas se revelava no gesto arrepiado, no resmungo cavernoso. O moço fez nova
continência, meia-volta, veio dizer-nos que não havia ali acomodações para nós.
Saímos, reembarcamos, outra vez nos largamos pelas ruas estreitas e sombrias.
Segunda parada, e mergulhamos num casarão, subimos e descemos numerosos degraus de
cimento, dobramos esquinas, fomos acordar o sujeito que dormia num quarto pequeno
situado no fim de um alpendre. Levantou-se bocejando, a cara enferrujada.. E travou-se um
diálogo de que nada consegui entender. Expressões técnicas soavam inutilmente, pessoas
agora esquecidas por inteiro entravam, saíam, colaboravam na conversa, e, não me sendo
possível distinguir a posição social delas, ordens e evasivas se confundiam, para diferençá-las havia apenas o tom, o gesto, a postura humilde ou arrogante.
Na verdade me achava num mundo bem estranho. Um quartel. Não podia arrogar-me inteira ignorância dos quartéis, mas até então eles me haviam surgido nas relações com
o exterior, esforçando-se por adotar os modos e a linguagem que usávamos lá fora.
Aparecia-me de chofre interiormente, indefinido, com seu rígido simbolismo, um quadro de
valores que me era impossível recusar, aceitar, compreender ao menos. Tinha-me livrado
em poucos meses do serviço militar, numa linha de tiro, sem nenhum patriotismo, apenas
interessado na ginástica. Habituara-me cedo a considerar o exército uma inutilidade. Pior:
uma organização maléfica. Lembrava-me dos conquistadores antigos, brutos, bandidos,
associava-os aos generais modernos, bons homens, excelentes pais de família, em todo
o caso brutos e bandidos teóricos, mergulhados numa burocracia heroica e dispendiosa.
Mais tarde, numa prefeitura da roça, percebera que os melhores trabalhadores, os mais
capazes, tinham sido soldados – e aquele ninho de parasitas se revelara incongruente. Uma
ideia preconcebida, rigorosa, esbarrava com a observação. Nada mais besta que as
generalizações precipitadas. A antipatia que os militares me inspiravam com certeza
provinha de nos separarmos. Eu achava as fórmulas deles, os horríveis lugares-comuns,
paradas, botões, ordens do dia e toques de corneta uma chatice arrepiadora; se algum deles
atentasse nas minhas ocupações, provavelmente as julgaria bem mesquinhas.
Das frases rápidas e obscuras, das idas e vindas, percebi vagamente que também ali
não havia lugar para nós. Isto me espantava. Como era possível em tão grande estabelecimento não haver cela onde se alojassem dois indivíduos? Não se tratava disso, foi o que me
pareceu: não se procurava uma cela, mas uma determinada espécie de cela. No papel que
nos dava ingresso estávamos classificados, etiquetados, e só nos poderíamos recolher a
local previamente estabelecido. Perplexo, perguntava a mim mesmo se esse rigorismo nos
seria vantajoso ou desvantajoso. Não me seria possível recordar as feições do homem que
se levantara, bocejando estremunhado. Certamente o vi nos dias seguintes, mas confundi-o com outros, não consegui identificá-lo. Recordo-me, porém, de um pormenor desprezível,
o sentimento desarrazoado que me assaltou ao vê-lo chateado, indeciso a respeito do ponto
onde nos devia guardar: acusei-me, não de tentar subverter a ordem, mas de perturbar o
sono de um desconhecido. Evidentemente isso era estúpido – e reconhecendo a estupidez,
continuava a censurar-me, tinha desejo de me desculpar, livrar-me do enleio absurdo.
Enfim, ao cabo de meia hora, venceu-se a dificuldade: o homem resolveu ceder-nos aquele
aposento e mudar-se: mandou buscar outra cama e saiu depois de nos fazer algumas.
advertências incompreensíveis. O moço que nos acompanhara despediu-se também.
– Obrigado, tenente.
– Não senhor, sou apenas sargento.
– Perdão. Com essa luz tão fraca, difícil notar.
Aleguei a falta de luz como alegaria outra coisa qualquer, pois de fato, ignorante de
uniformes, nem procurara distinguir o posto do rapaz. Imaginara-o tenente – e surpreendia-me que houvesse inferiores tão bem-educados. Julgava-os ásperos, severos, carrancudos,
possuidores de horríveis pulmões fortes demais, desenvolvidos em berros a recrutas, nos
exercícios. E aquele, amável, discreto, de aprumo perfeito e roupa sem dobras, realmente
me desorientava. Surpresa tola, por causa das generalizações apressadas.
continua página 28...
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Leia também:
Memórias do Cárcere - Viagens 6
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Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
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