domingo, 25 de dezembro de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (III) 29bs – luzes da ribalta

becos sem saída


(III) o descolocado
29bs – luzes da ribalta

baitasar


assim, duros como chumbo, outros dias e noites vieram, inevitáveis, alguns tensos, outros monótonos,  muitos intoleráveis, infindáveis noites medíocres, defeituosas, tensas, torturantes, silenciosas, num tempo onde não há mais garantias de nada, o marcha soldado cabeça de papel ganhou as ruas, ensandeceu os cabeça de papel

e o improvável aconteceu

virgílio silva e ana rosa silva desapareceram, ele e seu serviço de socorro à ferrovia não deixou nem um dente para trás, ela com seu fogo de lamparina também não deixou nada para trás, tornaram-se invisíveis

durante muitos dias, depois do sumiço da palpável e do papeleiro, memória se fez ausente, desmaiada no acordamento do dia, como se o seu espírito estivesse afastado dela, um corpo vazio e sem sentido, não ficava nem saia, esmagada, as mãos ossudas, as pernas estendidas, os lábios grossos sussurrando para o travesseiro, a vida continuava malvada e silenciosa para sempre

os miúdos puxando o carrinho, A gente pega garrafa vazia, ferro-velho, osso e vidro quebrado, a voz miúda com braços e pernas miúdas, a escola também tinha ficado para trás, meninos invisíveis

quando o sol rasgava a pele que cobria a noite, memória voltava a repetir que o seu virgílio estava encantado em alguma árvore, estava como as sementes no chão, sentia que algum espírito lhe assoprava, junto com os ventos que entravam no beco e empurravam as cortinas, que o seu homem havia encontrado o caminho para o quilombo do rei zumbi, esperava a estação de brotar do cio da terra a nação dos pretos, até lá, não lhe tinha ouvidos

nas horas de desmaiamento, parecia que ficava sem a própria alma, não entendia essa desaparição, uma dor desconhecida que parecia sem fim, sem cura, sem cicatrização, parecia que dormia, mas não dormia, sofrida da desconfiança dormida

numa manhã, acordada e  menos desconfiada, em outra sem alguma notícia de explicação da fugição, cheia de pesadelos com caveiras e vermes, chegou a desejar ter o corpo presente do virgílio desaparecido, assim, poderia enterrar essa desaparição e desenterrar o choro que não desapertava

ninguém se espante ou vire as costas para essa mulher, dor de desaparecimento é assim mesmo, mistura da esperança com o cansaço da espera inútil, a vida para de andar, precisa ser empurrada, o desejo do desfecho procura por uma explicação que não vem, o ponto final que nunca chega

uma desconfiança que jamais termina, Cruz e credo que a glória de Deus o tenha vivo!

no tempo do luto a mamada secou e a miúda passou a experimentar as variações do caldo de feijão até chegar aos grãos, Guria de apetite.

depois do tempo do luto a espera foi se acomodando sem a explicação da fugição, Por que não manda dizer nada, nenhuma resposta, a separação do vínculo conjugal foi o mais óbvio para todos

e diante dos olhos sonolentos da miúda e o cansaço dos guris, o negrão espadaúdo e abandonado pela ana passou a cuidar das carnes da maria memória e silva qualquer coisa

assumiu os compromissos do virgílio

memória convenceu os guris que era o melhor a fazer, precisava se desfazer das despesas, das contas de comer do armazém, A dona Carmem não vai esperar muito pelo pagamento do fiado, Mãinha, a gente vai mais longe com o carrinho, Meninos, toda família precisa de um chefe, Mãinha é a chefe, Nada disso, eu sou chefe da porta pra dentro. Ogum, agora, é o chefe da porta pra fora, O carrinho continua nosso, Pode ser, pode ser, mas depois da escola.

o espadáudo levanta antes do galo cantar e se joga com o carrinho para a central de alimentos, busca legumes e verduras, não reclama, vem antes do almoço com o arrecadado, depois se vai pela obra de tijolos, ainda procura um rumo de segurança noturno

memória se observa todas as manhãs em acordamento mais satisfeita, mais conformada, admira o seu pássaro engaiolado, pulando de poleiro em poleiro, submetido às vontades daquele esqueleto de arame, a mulher ileié está sem entender o seu pássaro engaiolado

virgílio deixou para trás os miúdos e os ganhos avulsos dos biscates, não trocou explicação, virou lembrança para ser esquecida

enquanto espera ogum, agora ajuizado de serviço, a roda vida parece que carrega o seu destino para cá, depois leva para lá, o negão volta com as costas curvadas e as mãos caladas, é o chefe da casa

é assim mesmo, o novo sempre vem vestido de velho

na vitrola, achada atirada pelo chão das ruas, presente do ogum, escuta a voz de joão dias

Vidas se acabam a sorrir
Luzes que se apagam, nada mais
É sonhar em vão, tentar aos outros iludir
Se o que se foi, pra nós não voltará jamais

Para que chorar o que passou?
Lamentar perdidas ilusões
Se o ideal que sempre nos acalentou
Renascerá em outros corações

Vidas que se acabam a sorrir
Luzes que se apagam, nada mais
É sonhar em vão, tentar aos outros iludir
Se o que se foi, pra nós não voltará jamais

Para que chorar o que passou?
Lamentar perdidas ilusões
Se o ideal que sempre nos acalentou
Renascerá em outros corações





Fim do Livro Um

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Leia também:

Livro Um:
becos sem saída (I) 01bs - as águas que vêm e vão
becos sem saída (I) 02bs - histórias desamarradas e borradas
becos sem saída (I) 03bs - sobre nós e histórias borradas
becos sem saída (I) 04bs - cacete pra todo lado!
becos sem saída (I) 05bs - as mãos amarradas
becos sem saída (I) 06bs - o vazio da botina
becos sem saída (I) 07bs - maria futuro
becos sem saída (I) 08bs - um lugar para voltar
becos sem saída (I) 09bs - e adianta saber?
becos sem saída (II) 10bs - sem emprego, sem utilidade
becos sem saída (II) 11bs - notícia ruim
becos sem saída (II) 12bs - fome é fome
becos sem saída (II) 13bs - os tempos eram assim...
becos sem saída (II) 14bs - um marido eficiente
becos sem saída (III) 26bs – o amuleto
becos sem saída (III) 27bs – Vamos comer?
becos sem saída (III) 29bs – luzes da ribalta

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