terça-feira, 27 de dezembro de 2022

O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (2)

Simone de Beauvoir


02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




SEGUNDA PARTE

SITUAÇÃO
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CAPÍTULO I
A   MULHER CASADA



Os casamentos combinados pelos pais não desapareceram: há toda uma burguesia bem pensante que os perpetua. Ao lado do túmulo de Napoleão, na Opéra, no baile, na praia, num chá, a aspirante de cabelos recém-penteados, vestida com um vestido novo, exibe timidamente suas graças físicas e sua conversação modesta; seus pais não a deixam em paz: "Já me custaste bastante caro com estas entrevistas, resolve logo. A próxima vez será a vez de tua irmã". A infeliz candidata sabe que suas possibilidades diminuem na medida em se faz mais madura: os pretendentes não são numerosos, ela não tem muito mais liberdade de escolha do que a jovem beduína que trocam por rebanho de ovelhas. Como diz Colette (La Maison de Claudine): "uma jovem sem fortuna e sem ofício e que vive à custa de seus irmãos, tem apenas que se calar, aceitar a sorte e agradecer a Deus".

De maneira menos crua, a vida mundana permite que os jovens se encontrem sob os olhares vigilantes das mães. Um pouco mais livres, as jovens multiplicam as saídas, frequentam as faculdades, aprendem um ofício que lhes dá a oportunidade de conhecer homens. Um inquérito foi realizado entre 1945 e 1947 no seio da burguesia belga por Mme Claire Leplae acerca do problema da escolha matrimonial (Cf. Leplae, Les Fiançailles). A autora procedeu por entrevistas; citarei algumas das perguntas que apresentou e as respostas obtidas.


P.: São frequentes os casamentos combinados pelos pais?

R.: Não há mais casamentos combinados (51%).
São muito raros, 1%; no máximo (16%).
De 1 a 3% dos casamentos são combinados (28%).
De 5 a 10% dos casamentos são combinados (5%).

As pessoas interessadas assinalam que os casamentos combinados pelos pais, numerosos antes de 1945, quase acabaram. Entretanto, "o interesse, a ausência de relações, a timidez, a idade, o desejo de realizar uma boa união são os motivos de alguns casamentos combinados". Tais casamentos são amiúde arranjados por padres; por vezes também a jovem casa-se por correspondência. Fazem elas próprias seus retratos por escrito, o qual é transcrito numa folha especial com um número e que é enviada a todas as pessoas que nela se descrevem. Tal folha comporta cerca de duzentas candidatas ao casamento e um número mais ou menos igual de candidatos. Estes também fizeram seu próprio retrato. Todos podem livremente escolher um correspondente a quem escrevem por intermédio da instituição.


P.: Em que circunstâncias puderam os jovens tornar-se noivos nestes últimos dez anos?

R.: Em reuniões mundanas (48%).
Estudos, obras realizadas em comum (22%).
Reuniões íntimas, temporadas (30%).

Todos concordam em que "os casamentos entre amigos de infância são muitos raros. O amor nasce do imprevisto".


P.: Desempenha o dinheiro papel primordial na escolha da pessoa que se desposa?

R.: 30% dos casamentos não passam de um negócio (48%).
50% " " " " " " " (35%).
70% " " " " " " " (17%).


P.: Pensam os pais avidamente em casar as filhas?

R.: Os pais pensam avidamente em casar as filhas (58%).
Os pais desejam casar as filhas (24%).
Os pais gostariam de conservar as filhas consigo (18%).


P.: Pensam as moças avidamente em casar?

R:  As moças pensam avidamente em casar (36%).
As 'moças desejam casar (38%).
As moças preferem não casar a casar mal (26%).

"As moças assaltam os rapazes. As moças casam-se com o primeiro que aparece para ter uma situação. Todas esperam casar-se e esforçam-se para o conseguir. É humilhante para uma moça não ser procurada: para escapar dessa humilhação casam-se com o primeiro que surge. As moças casam-se por casar. As moças casam-se para serem casadas. As moças têm pressa em arranjar marido porque o casamento lhes assegura maior liberdade." Neste ponto quase todos os testemunhos concordam.


P.: São as moças mais ativas do que os rapazes na procura do casamento?

R.: As moças declaram seus sentimentos aos rapazes e pedem-lhes que as desposem (43%).
As moças são mais ativas que os rapazes na procura do casamento (43%).
As moças são discretas (14%)

Em relação a este ponto igualmente há quase unanimidade: são as moças que em geral tomam a iniciativa do casamento. "As moças dão-se conta de que não adquiriram com que se arranjar na vida; não sabendo como poderiam trabalhar para ter com que viver, procuram no casamento uma tábua de salvação. As moças fazem declarações, jogam-se em cima dos homens. São terríveis! A moça tudo faz para se casar. . . é a mulher que procura o homem etc."


Não existe documento semelhante no que concerne à França; mas, sendo a situação da burguesia análoga na França e na Bélgica, chegar-se-ia sem dúvida a conclusões aproximativas. Os casamentos "combinados" sempre foram mais numerosos na França do que em qualquer outro país, e o famoso Club des Lisérés verts (Clube das listas verdes), cujos aderentes se encontram em festas destinadas a facilitar a aproximação entre os dois sexos, prospera ainda. Os anúncios matrimoniais ocupam compridas colunas em numerosos jornais.

Na França, como na América do Norte, as mães, as irmãs mais velhas, os hebdomadários femininos ensinam com cinismo às moças a arte de "pegar" um marido como o papel de pegar moscas pega moscas; é uma "pesca", uma "caça" que exige muito tato: não visem nem alto nem baixo demais; não sejam romanescas e sim realistas; misturem o coquetismo com a modéstia; não peçam nem demais nem de menos... Os jovens desconfiam das mulheres "que querem casar". Um jovem belga declara (Cf. Claire Leplae, Les Fiançailles):

"Não há nada mais desagradável para um homem do que se sentir perseguido, do que perceber que uma mulher procura deitar-lhe a unha." Eles se esforçam por não cair em armadilhas. A escolha da moça é o mais das vezes muito limitada; só seria realmente livre se ela se julgasse igualmente livre de não se caçar. Há em geral em sua decisão, cálculo, nojo, resignação mais do que entusiasmo. "Se o jovem que a pede em casamento lhe convém mais ou menos (meio social, saúde, carreira), ela o aceita sem o amar. Ela o aceita até com restrições e conserva a cabeça fria."

Entretanto, ao mesmo tempo que o deseja, a moça teme o casamento. Este representa um benefício mais considerável para ela do que para o homem, e eis por que o deseja avidamente; mas exige também pesados sacrifícios: em particular implica uma ruptura muito mais brutal com o passado. Vimos que muitas adolescentes se sentiam angustiadas à ideia de deixar o lar paterno: quando o acontecimento se aproxima essa ansiedade exaspera-se. É nesse momento que nascem muitas neuroses; estas ocorrem também em rapazes que se assustam com as novas responsabilidades que assumem, mas são mais comuns nas moças pelas razões que já analisamos e que pesam sobremodo nessa crise. Citarei apenas um exemplo que tomo de empréstimo de Stekel. Teve que tratar de uma jovem de boa família que apresentava vários sintomas neuróticos.


No momento em que Stekel a conhece, ela sofre de vômitos, toma morfina todas as noites, tem acessos de cólera, recusa-se a se lavar, come na cama e afirma adorar o noivo. Confessa a Stekel que se entregou a ele. . . Mais tarde diz que não teve nenhum prazer: que conservou mesmo dos beijos dele uma recordação repugnante e nisso se encontra a causa dos vômitos. Descobre-se que, com efeito, ela se entregou para punir a mãe porque não se sentia suficientemente querida; em criança, espiava os pais durante a noite porque tinha medo de que lhe dessem um irmão ou uma irmã; adorava a mãe. "E agora teria que casar, deixar a casa paterna, abandonar o quarto de dormir de seus pais? Era impossível." Ela procura engordar, arranha e estraga as mãos, fica doente, tenta ofender o noivo de todos os modos. O médico cura-a, mas ela suplica à mãe que renuncie à ideia de casamento: "Queria ficar em casa sempre, para continuar filha". A mãe insistia para que se casasse. Uma semana antes do dia do casamento encontraram-na morta na cama: matara-se com um tiro de revólver.


Em outros casos, a jovem obstina-se numa prolongada enfermidade: desespera-se porque seu estado não lhe permite desposar o homem "que adora"; em verdade fica doente para não o desposar e só reencontra o equilíbrio rompendo o noivado. Por vezes o medo do casamento vem do fato de a moça ter tido anteriormente experiências eróticas que a marcaram; em particular pode recear que se descubra a perda da virgindade. Mas, muitas vezes, é um sentimento ardente pelo pai, pela mãe, pela irmã, ou o apego ao lar que lhe torna insuportável a ideia de se submeter a um estranho. E muitas das que se decidem — porque é preciso afinal casar, porque os outros fazem pressão, porque elas sabem que é a única solução razoável, porque querem uma existência normal de esposa e mãe — conservam assim mesmo no fundo do coração secretas e opiniáticas resistências que tornam difíceis os primeiros tempos de vida conjugai, que podem até impedi-las de jamais encontrar um equilíbrio feliz no casamento.

Portanto, não é geralmente por amor que se resolvem os casamentos. "O esposo não passa nunca, por assim dizer, de um sucedâneo do homem amado, não é esse homem", diz Freud. Uma tal dissociação nada tem de acidental. Está implicada na própria natureza da instituição. Trata-se de transcender para o interesse coletivo a união econômica e sexual do homem e da mulher, e não de assegurar uma felicidade individual. Nos regimes patriarcais acontecia — acontece ainda hoje entre certos muçulmanos — que os noivos escolhidos pela autoridade dos pais não se tenham sequer visto antes do dia do casamento. Não se trataria de basear a empresa de uma vida, considerada sob seu aspecto social, num capricho sentimental ou erótico.


Neste discreto estado, diz Montaigne, não são tão ardorosos os apetites, antes são calmos e atenuados. O amor não quer que se leve em conta senão a si próprio nem que se acheguem a eles as ligações que se mantém por outros motivos, como o casamento: neste as conveniências e os recursos pesam tanto ou mais do que as graças e as belezas. Não se casa alguém tanto para si como principalmente para a posteridade, para a família (Livro III, cap. V ).




continua página 175...

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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.


"O que é uma mulher?"

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