Diante da Dor dos Outros
Certas fotos — emblemas de sofrimento, como o instantâneo do garotinho no Gueto de Varsóvia em 1943, de mãos levantadas, arrebanhado na direção de um veículo, rumo ao campo de extermínio — podem ser usadas como advertências, como objetos de contemplação destinados a aprofundar o sentido de realidade de uma pessoa; como ícones seculares, se preferirem. Mas isso pareceria exigir o equivalente a um espaço sagrado ou meditativo para olharmos essas fotos. Um espaço reservado para sermos sérios é algo difícil de conseguir na sociedade moderna, cujo modelo principal de espaço público é a megastore (que também pode ser um aeroporto ou um museu).
Parece um oportunismo olhar fotos mortificantes da dor de outras pessoas numa galeria de arte. Mesmo aquelas imagens supremas cuja seriedade, cuja força emocional parece estabelecida de uma vez por todas, as fotos de campos de concentração tiradas em 1945, têm um peso diferente quando vistas num museu fotográfico (o Hôtel Sully em Paris, o Centro Internacional de Fotografia em Nova York); numa galeria de arte contemporânea; num catálogo de museu; na tevê; nas páginas de The New York Times; nas páginas da Rolling Stone; num livro. Uma foto vista num álbum fotográfico ou impressa em papel de jornal grosseiro (como as fotos da Guerra Civil Espanhola) tem um significado diferente quando exposta numa butique Agnès B. Toda imagem é vista em algum cenário. E os cenários se multiplicaram. Uma campanha publicitária tristemente famosa da Benetton, fábrica italiana de roupa esporte, usou uma foto da camisa ensanguentada de um soldado croata morto. Fotos publicitárias são, muitas vezes, tão ambiciosas, engenhosas, enganosamente espontâneas, transgressivas, irônicas e solenes quanto fotos artísticas. Quando o soldado fotografado por Capa, no instante em que tombava para trás, apareceu na revista Life ao lado do anúncio da pomada Vitalis, havia uma enorme e insuperável diferença de aspecto entre os dois tipos de fotografia, a “editorial” e a “publicitária”. Agora, não existe mais.
Grande parte do ceticismo atual em torno da obra de certos fotógrafos engajados parece resumir-se a pouco mais do que o desprazer com o fato de as fotos circularem de modo tão diversificado; de não haver uma forma de garantir condições reverenciais para olhar tais fotos e mostrar-se plenamente sensível a elas. Com efeito, afora os cenários onde se pratica a deferência patriótica aos líderes, parece não haver hoje maneira de garantir um espaço contemplativo ou inibidor para coisa alguma.
Na medida em que fotos de tema extremamente solene ou pungente são arte — e é nisso que elas se transformam quando penduradas na parede, a despeito de todas as negativas —, passam a compartilhar o destino de toda arte, pendurada na parede ou apoiada sobre o chão, exposta em locais públicos. Ou seja, elas constituem paradas no percurso de um passeio — que, em geral, se faz acompanhado. A visita a um museu ou a uma galeria é uma situação social, crivada de distrações, no curso da qual a arte é vista e comentada. [1] Em certa medida, o peso e a seriedade de tais fotos sobrevivem melhor em um livro, onde elas podem ser vistas de modo privado, demoradamente, em silêncio. Todavia, em algum momento, o livro será fechado. A emoção forte se tornará passageira. Mais cedo ou mais tarde, a especificidade das acusações contidas nas fotos vai perder a força; a denúncia de um conflito particular e a incriminação por crimes específicos vão se converter na denúncia da crueldade humana, da selvageria humana como tal. As intenções do fotógrafo são irrelevantes para esse processo mais amplo.
[1] A evolução do museu, propriamente dito, avançou bastante no sentido de expandir essa atmosfera de distração. Outrora um repositório para conservar e expor as belas- artes do passado, o museu tornou-se um vasto empório-instituição educacional, do qual uma das funções é a exposição de arte. A função primária é o entretenimento e a educação, combinados de várias maneiras, e o marketing de experiências, gostos e simulacros. O Museu Metropolitano de Arte de Nova York monta uma exposição das roupas usadas por Jacqueline Bouvier Kennedy Onassis durante os anos em que morou na Casa Branca, e o Museu de Guerra Imperial de Londres, admirado por sua coleção de material bélico e pela seção de iconografia, oferece agora dois ambientes que reproduzem fielmente para o público circunstâncias da Primeira Guerra Mundial, A experiência das trincheiras (o rio Somme, em 1916), um percurso completo com ruídos reproduzidos em fitas (explosões de bomba, gritos), mas sem cheiros (nada de cadáveres putrefatos, nem gás venenoso); e, da Segunda Guerra Mundial, A experiência da Blitz, descrita como uma apresentação das condições durante o bombardeio alemão contra Londres em 1940, que inclui a simulação de um ataque aéreo, do modo como era experimentado no interior de um abrigo subterrâneo.
Existe um antídoto contra a eterna sedução da guerra? E será esta uma pergunta com mais probabilidade de ser feita por uma mulher do que por homem? (Provavelmente sim.)
Poderia alguém ser mobilizado para opor-se à guerra de forma atuante por uma imagem (ou por um grupo de imagens), assim como uma pessoa podia aderir aos opositores da pena de morte sob o efeito da leitura, digamos, de Uma tragédia americana, de Dreiser, ou da leitura de “A execução de Troppmann”, de Turgueniev, uma narrativa escrita por um escritor expatriado, convidado a acompanhar, numa prisão parisiense, as últimas horas de vida de um famigerado criminoso, antes de ser guilhotinado? Parece mais plausível que uma narrativa demonstre uma eficácia maior do que uma imagem. Em parte, a questão reside na extensão de tempo em que a pessoa é obrigada a ver e sentir. Nenhuma foto ou coleção de fotos pode se desdobrar, ir além, e avançar mais ainda, como fazem A ascensão, da cineasta ucraniana Larissa Chepitko, o filme mais impressionante que conheço sobre a tristeza da guerra, e um assombroso documentário japonês de Kazuo Hara, O exército nu do imperador em marcha (1987), o retrato de um “ensandecido” veterano da guerra do Pacífico, cuja missão na vida é denunciar os crimes de guerra japoneses em um carro de som que ele mesmo dirige pelo Japão e visitar, da forma mais inconveniente, seus antigos superiores militares, exigindo que se desculpem pelos seus crimes, como o assassinato de prisioneiros americanos nas Filipinas, que eles ordenaram ou toleraram.
Entre as imagens antibelicistas isoladas, a enorme foto criada por Jeff Wall em 1992 intitulada “Conversa de soldados mortos (Visão após uma emboscada contra uma patrulha do Exército Vermelho perto de Moqor, no Afeganistão, no inverno de 1986)” parece-me exemplar por sua seriedade e força. Antítese de um documento, a imagem, uma transparência em Cibachrome com 2,3 metros de altura e mais de quatro metros de largura, montada sobre uma caixa de luz, mostra figuras dispostas em uma paisagem, uma encosta devastada por explosões, construída no estúdio do artista. Wall, que é canadense, jamais esteve no Afeganistão. A emboscada é um fato fictício numa guerra selvagem que esteve muito presente no noticiário. Wall atribuiu-se a tarefa de imaginar os horrores da guerra (cita Goya como sua inspiração), a exemplo do que fizeram as pinturas históricas do século XIX e outras formas de história-como espetáculo surgidas no fim do século XVIII e no início do XIX — imediatamente antes da invenção da câmera —, como os chamados tableaux vivants, ou quadros vivos, as estátuas de cera, os dioramas e os painéis móveis que faziam o passado, em especial o passado recente, parecer espantosa e perturbadoramente real.
As figuras na criação fotográfica de Wall são “realistas”, mas, é claro, a imagem não é. Soldados mortos não falam. Aqui, falam.
Treze soldados russos, em pesados uniformes de inverno e botas de cano alto, estão espalhados por uma encosta coberta de feridas e respingada de sangue, margeada por pedras soltas e pelo entulho da guerra: cápsulas de obuses, metal retorcido, uma bota que contém a parte inferior de uma perna… A cena poderia ser uma versão revista do fim do filme J’accuse, de Gance, quando os soldados mortos da Primeira Guerra Mundial se erguem de seus túmulos, mas esses recrutas russos, massacrados na insensata e derradeira guerra colonial da União Soviética, nunca foram sepultados. Alguns ainda estão de capacete. A cabeça de uma figura de joelhos, que fala animadamente, espuma com seus miolos vermelhos à mostra. A atmosfera é de simpatia, afeto, espírito fraternal. Alguns jazem relaxados, apoiados sobre um cotovelo, ou estão sentados, conversando, com os crânios abertos e as mãos destruídas bem visíveis. Um homem se curva sobre outro, que jaz deitado de lado, como que adormecido, e talvez o estimule a sentar-se. Três homens brincam uns com os outros ali perto: um, com um enorme ferimento na barriga, está escarranchado sobre outro, que jaz de bruços e ri para um terceiro que, de joelhos, com ar brincalhão, sacode para ele um pedaço de carne. Um soldado, de capacete e sem perna, virou-se para um companheiro a certa distância, com um sorriso vivaz no rosto. Abaixo dele, estão outros dois, ao que parece nada dispostos a uma ressurreição, que jazem deitados de costas, com as cabeças ensanguentadas pendentes na encosta pedregosa.
Tragados pela imagem, tão denunciadora, poderíamos até imaginar que os soldados vão virar-se e falar conosco. Mas não, nenhum deles dirige os olhos para fora da imagem. Não há nenhuma ameaça de protesto. Não estão prestes a berrar para nós, para que demos um basta a essa abominação que é a guerra. Eles não voltaram à vida com o intuito de sair cambaleando para denunciar os promotores da guerra, que os enviaram para matar e serem mortos. E não estão representados como se fossem aterrorizantes, pois entre eles (na extremidade esquerda) está sentado um saqueador afegão, vestido de branco, inteiramente concentrado em vasculhar uma mochila de campanha, do qual os soldados não tomam o menor conhecimento, e acima deles (no alto, à direita), entrando na imagem, na trilha que desce sinuosa pela encosta, estão dois afegãos, talvez soldados também, que, a julgar pelos Kalachnikov acumulados aos seus pés, já despojaram os soldados mortos de seus armamentos. Esses mortos se mostram completamente desinteressados pelos vivos: por aqueles que tiraram suas vidas; por testemunhas — e por nós. Por que deveriam procurar o nosso olhar? O que teriam a nos dizer? “Nós” — esse “nós” é qualquer um que nunca passou por nada parecido com o que eles sofreram — não compreendemos. Nós não percebemos. Não podemos, na verdade, imaginar como é isso. Não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal. Não podemos compreender, não podemos imaginar. É isso o que todo soldado, todo jornalista, todo socorrista e todo observador independente que passou algum tempo sob o fogo da guerra e teve a sorte de driblar a morte que abatia outros, à sua volta, sente de forma obstinada. E eles têm razão.
Agradecimentos
Uma parte das ideias contidas neste livro, em sua primeira versão, foi apresentada em uma Conferência de Anistia na Universidade de Oxford em fevereiro de 2001 e depois publicada numa coletânea de Conferências de Anistia intitulada Direitos humanos, injustiças humanas (Oxford University Press, 2003); agradeço a Nick Owen da New College pelo convite para fazer a conferência e pela hospitalidade. Uma amostra das ideias deste livro foi publicada como prefácio do livro Don McCullin, um compêndio de fotos de McCullin, publicado em 2002 pela Jonathan Cape. Sou grata a Mark Holborn, que edita livros de fotografia na Cape, em Londres, pelo estímulo; ao meu primeiro leitor, Paolo Dilonardo, como sempre; a Robert Walsh, mais uma vez, por seu discernimento; e, também por seu discernimento, a Minda Rae Amiran, Peter Perrone, Benedict Yeoman e Oliver SchwanerAlbright.
Senti-me estimulada e instigada por um artigo de Cornelia Brink, “Secular Icons: Looking at Photographs from Nazi Concentration Camps”, em History & Memory, vol. 12, n o 1 (primavera/verão de 2000), e pelo excelente livro de Barbie Zelizer, Remembering to Forget: Holocaust Memory Through the Camera’s Eye (University of Chicago Press, 1998), onde encontrei a citação de Lippmann. Com respeito a informações sobre o bombardeio punitivo executado pela Real Força Aérea Britânica contra aldeias iraquianas entre 1920 e 1924, um artigo em Aerospace Power Journal (inverno de 2000), de James S. Corum, que leciona na Escola de Estudos Avançados de Poderio Aéreo na Base Aérea de Maxwell, Alabama, fornece dados e análises valiosas. Relatos sobre as restrições impostas a fotojornalistas durante a Guerra das Falklands e a Guerra do Golfo são fornecidos em dois livros importantes: Body Horror: Photojournalism, Catastrophe, and War, de John Taylor (Manchester University Press, 1998) e War and Photography, de Caroline Brothers (Routledge, 1997). Brothers apresenta nas pp. 178- 84 de seu livro os argumentos contrários à autenticidade da foto de Capa. Para uma opinião oposta: o artigo de Richard Whelan, “Robert Capa’s Falling Soldier”, em Aperture, n o 166 (primavera de 2002), menciona uma série de circunstâncias moralmente ambíguas no front, durante as quais, alega ele, Capa inadvertidamente fotografou, de fato, um soldado republicano no instante em que foi morto.
Por informações sobre Roger Fenton, sou grata ao artigo de Natalie M. Houston, “Reading the Victorian Souvenir: Sonnets and Photographs of the Crimean War”, em The Yale Journal of Criticism, vol. 14, n o 2 (outono de 2001). Devo a informação de que existiam duas versões de “O vale da sombra da morte”, de Fenton, a Mark Haworth Booth, do Victoria and Albert Museum; as duas fotos são reproduzidas em The Ultimate Spectacle: A Visual History of the Crimean War, de Ulrich Keller (Routledge, 2001). O relato da reação britânica à foto de mortos britânicos insepultos na Batalha de Spion Kop provém de Early War Photographs, compilado por Pat Hodgson (New York Graphic Society, 1974). Foi William Frassanito quem estabeleceu, em seu Gettysburg: A Journey in Time (Scribner’s, 1975), que Alexander Gardner deve ter mudado de lugar o cadáver de um soldado confederado para tirar uma fotografia. A citação de Gustave Moynier provém de A Bed for the Night: Humanitarianism in Crisis (Simon & Schuster, 2002), de David Rieff.
Continuo a aprender, como acontece há muitos anos, em minhas conversas com Ivan Nagel.
Copyright © 2003 by Susan Sontag
Título original
Regarding the pain of others
_________________________
Leia também:
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 6. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 6. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 7. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 7. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 8.
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 9.
_________________________
________________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário