quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (8.1) - Anos depois

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(8.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío





ANOS DEPOIS, em seu leito de agonia, Aureliano Segundo haveria de se lembrar da chuvosa tarde de junho em que entrou no quarto para conhecer o seu primeiro filho. Embora fosse lânguido e chorão, sem nenhum traço dos Buendía, não precisou pensar duas vezes para lhe dar o nome. 

— Vai se chamar José Arcadio — disse. 

Fernanda del Carpio, a formosa mulher com quem se casara no ano anterior, concordou. Úrsula, pelo contrário, não pôde esconder um vago sentimento de derrota. Na longa história da família, a tenaz repetição dos nomes permitira que ela tirasse conclusões que lhe pareciam definitivas. Enquanto os Aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida, os Josés Arcadios eram impulsivos e empreendedores, mas estavam marcados por um signo trágico. Os únicos casos de classificação impossível eram os de José Arcadio Segundo e Aureliano Segundo. Foram tão parecidos e travessos durante a infância que nem a própria Santa Sofía de la Piedad os podia distinguir. No dia do batizado, Amaranta colocou neles as pulseiras com os respectivos nomes e vestiu-os com roupas de cores diferentes, marcadas com as iniciais de cada um, mas quando começaram a ir à escola optaram por trocar a roupa e as pulseiras e a se chamarem eles mesmos com os nomes ao contrário. O mestre Melchor Escalona, acostumado a conhecer José Arcadio Segundo pela camisa verde, perdeu as estribeiras quando descobriu que este trazia a pulseira de Aureliano Segundo, e que o outro dizia que se chamava, entretanto, Aureliano Segundo, apesar de vestir a camisa branca e trazer a pulseira marcada com o nome de José Arcadio Segundo. A partir daí não se sabia mais com certeza quem era quem. Mesmo quando cresceram e a vida os tornou diferentes, Úrsula continuava a se perguntar se eles mesmos não teriam cometido um erro em algum momento do seu intrincado jogo de equívocos e não teriam ficado trocados para sempre. Até o princípio da adolescência, foram dois mecanismos sincrônicos. Acordavam ao mesmo tempo, tinham vontade de ir ao banheiro na mesma hora, sofriam as mesmas alterações de saúde e até sonhavam as mesmas coisas. Em casa, onde se acreditava que coordenavam os seus atos pelo mero desejo de confundir, ninguém percebeu a realidade até que um dia Santa Sofía de la Piedad deu a um deles um copo de limonada e este demorou mais para prová-lo do que o outro para dizer que estava faltando açúcar. Santa Sofía de la Piedad, que realmente se esquecera de pôr açúcar na limonada, contou o fato a Úrsula. 

“Todos são assim”, disse ela sem surpresa. “Loucos de nascença.” O tempo acabou de desarrumar as coisas. O que nos jogos de equívoco ficou com o nome de Aureliano Segundo tornou-se monumental como o avô, e o que ficou com o nome de José Arcadio Segundo tornou-se ósseo como o coronel, e a única coisa que conservavam de comum foi o ar solitário da família. Talvez tenha sido esse entrecruzamento de estaturas, nomes e temperamentos o que fez Úrsula pensar que estavam embaralhados desde a infância. A diferença decisiva se relevou em plena guerra, quando José Arcadio Segundo pediu ao Coronel Gerineldo Márquez que o levasse para ver os fuzilamentos. Contra o parecer de Úrsula, os seus desejos foram satisfeitos. Aureliano Segundo, pelo contrário, estremeceu diante da pura idéia de presenciar uma execução. Preferia ficar em casa. Aos doze anos perguntou a Úrsula o que havia no quarto trancado. “Papéis”, ela respondeu. “São os livros de Melquíades e as coisas esquisitas que ele escrevia nos seus últimos anos.” A resposta, em vez de o tranqüilizar, aumentou a sua curiosidade. Insistiu tanto, prometeu com tanto empenho não estragar as coisas, que Úrsula lhe deu as chaves. Ninguém tornara a entrar no quarto desde que levaram o cadáver de Melquíades e puseram na porta o cadeado cujas peças se soldaram com a ferrugem. Mas quando Aureliano Segundo abriu as janelas, entrou uma luz familiar que parecia acostumada a iluminar o quarto todos os dias, e não havia nele a menor sombra de poeira ou teia de aranha, e sim estava tudo varrido e limpo, mais bem varrido e mais limpo do que no dia do enterro, e a tinta não secara no tinte iro nem o óxido alterara o brilho dos metais, nem se extinguira a brasa do alambique onde José Arcadio Buendía vaporizara o mercúrio. Nas prateleiras estavam os livros encadernados de uma matéria acartonada e pálida como pele humana curtida, e estavam os manuscritos intactos. Apesar de fechado por muitos anos, o ar parecia mais puro do que no resto da casa. Tudo era tão recente que várias semanas depois, quando Úrsula entrou no quarto com um balde de água e uma vassoura para lavar o chão, não teve nada para fazer. Aureliano Segundo estava absorto na leitura de um livro. Embora estivesse sem capa e o título não aparecesse em lugar nenhum, o menino se divertia com a história de uma mulher que se sentava na mesa e só comia grãos de arroz que apanhava com alfinetes, e com a história do pescador que pediu emprestado ao vizinho um peso para a sua rede e o peixe com que o recompensou mais tarde tinha um diamante no estômago, e com a lâmpada que satisfazia os desejos e os tapetes que voavam. Assombrado, perguntou a Úrsula se aquilo tudo era verdade, e ela respondeu que sim, que muitos anos antes os ciganos traziam a Macondo as lâmpadas maravilhosas e os tapetes voadores. 

— O que acontece — suspirou — é que o mundo vai se acabando pouco a pouco e essas coisas já não vêm. 

Quando acabou o livro, muitos de cujos contos estavam inconclusos porque faltavam páginas, Aureliano Segundo se deu o trabalho de decifrar os manuscritos. Foi impossível. As letras pareciam roupas postas para secar num arame e se assemelhavam mais à escrita musical que à literária. Um meio-dia ardente, enquanto perscrutava os manuscritos, sentiu que não estava sozinho no quarto. Contra a reverberação da janela, sentado com as mãos nos joelhos, estava Melquíades. Não tinha mais de quarenta anos. Usava o mesmo casaco anacrônico e o chapéu de asas de corvo e pelas suas têmporas pá-lidas gotejava a gordura do cabelo derretida pelo calor, como fora visto por Aureliano e José Arcadio quando eram crianças. Aureliano Segundo reconheceu-o imediatamente, porque aq uela lembrança hereditária se havia transmitido de geração em geração e tinha chegado a ele partindo da memória do seu avô. 

— Salve — disse Aureliano Segundo. 

— Salve, jovem — disse Melquíades. 

A partir de então, durante vários anos, viram-se quase todas as tardes. Melquíades lhe falava do mundo, tentava infundir-lhe a sua velha sabedoria, mas se negou a traduzir os manuscritos. “Ninguém deve conhecer a sua mensagem enquanto não se passarem cem anos”, explicou. Aureliano Segundo guardou para sempre o segredo daquelas entrevistas. Certa ocasião sentiu que o seu mundo privado se desmoronava, porque Úrsula entrou no momento em que Melquíades estava no quarto. Mas ela não o viu. 

— Com quem você está falando? — perguntou a ele. 

— Com ninguém — disse Aureliano Segundo. 

— O seu bisavô era assim — disse Úrsula. — Ele também falava sozinho. José Arcadio Segundo, enquanto isso, satisfizera o desejo de ver um fuzilamento. Recordaria pelo resto da vida o fogaréu lívido dos seis disparos simultâneos e o eco do estampido que se estilhaçou pelos montes, e o sorriso triste e os olhos perplexos do fuzilado, que permaneceu ereto enquanto a camisa se ensopava de sangue, e que continuava sorrindo mesmo quando o desamarraram do poste e o jogaram num caixote cheio de cal. “Está vivo”, pensou ele. “Vão enterrá-lo vivo. 

“Impressionou-se tanto que desde então detestou as práticas militares e a guerra, não pelas execuções em si, mas pelo horrível costume de enterrar os fuzilados vivos. Ninguém soube então quando começou a tocar os sinos na torre e a ajudar missa para o Padre Antonio Isabel, sucessor de O Cachorrinho, e a cuidar dos galos de briga no quintal da casa sacerdotal. Quando o Coronel Gerineldo Márquez foi informado, repreendeu-o duramente por estar aprendendo ofícios repudiados pelos liberais. “O problema”, respondeu, “é que eu acho que saí conservador.” Acreditava como se fosse uma determinação da fatalidade. O Coronel Gerineldo Márquez, escandalizado, contou a Úrsula. 

— Melhor — aprovou ela. — Tomara que fosse padre, para que finalmente Deus entre nesta casa. 

Muito em breve se soube que o Padre Antonio Isabel o estava preparando para a primeira comunhão. Ensinava-lhe o catecismo enquanto raspava o pescoço dos galos. Explicava com exemplos simples, enquanto colocavam nos ninhos as galinhas chocas, como ocorrera a Deus, no segundo dia da criação, que os pintos se formassem dentro do ovo. Já então o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que provavelmente o diabo tinha ganho a rebelião contra Deus e que era aquele quem estava sentado no trono celeste sem revelar a sua verdadeira identidade para enganar os incautos. Insuflado pela intrepidez do seu preceptor, José Arcadio Segundo chegou em poucos meses a ser tão sábio em artimanhas teológicas para confundir o demônio como experimentado nas trapaças da rinha. Amaranta fez para ele um terno de linho com colarinho e gravata, comprou-lhe um par de sapatos brancos e gravou o seu nome com letras douradas no laço do círio. Duas noites antes da primeira comunhão, o Padre Antonio Isabel se fechou com ele na sacristia para confessá-lo, com a ajuda de um dicionário de pecados. Era uma lista tão comprida que o velho pároco, acostumado a se deitar às seis horas, adormeceu na poltrona antes de terminar. O interrogatório foi para José Arcadio Segundo uma revelação. Não o surpreendeu que o padre lhe perguntasse se havia feito coisa feia com mulher, e respondeu honradamente que não, mas se desconcertou quando lhe perguntou se tinha feito com animais. Na primeira sexta-feira de maio comungou torturado pela curiosidade. Mais tarde fez a pergunta a Petronio, o sacristão doente que vivia na torre e que conforme diziam se alimentava de morcegos, e Petronio respondeu: “É que há cristãos corrompidos que fazem das suas com as burras.” José Arcadio Segundo continuou demonstrando tanta curiosidade, pediu tantas explicações, que Petronio perdeu a paciência. 

— Eu vou às terças-feiras à noite — confessou. — Se você promete que não conta a ninguém, na próxima terça-feira vai comigo. 

Na terça-feira seguinte, realmente, Petronio desceu da torre com um banquinho de madeira que ninguém soubera até então para que servia, e levou José Arcadio Segundo a uma chácara próxima. Ó rapaz gostou tanto daquelas incursões noturnas que passou muito tempo sem aparecer na taberna de Catarino. Fez-se criador de galos. 

“Leve estes animais para outro lugar”, ordenou-lhe Úrsula na primeira vez em que o viu entrar com os seus finos animais de briga. “Os galos já trouxeram amarguras demais a esta casa para que você agora venha nos trazer outras.” José Arcadio Segundo levou-os sem discussão, mas continuou a criá-los na casa de Pilar Ternera, sua avó, que pôs à sua disposição quanto precisava, em troca de tê-lo em casa. Demonstrou logo na rinha a sabedoria que lhe infundira o Padre Antonio Isabel, e dispôs de dinheiro suficiente não só para ampliar a sua criação, mas também para procurar prazeres de homem. Úrsula comparava-o naquele tempo com o irmão e não podia entender como os dois gêmeos que pareciam uma pessoa só na infância acabaram sendo tão diferentes. A perplexidade não durou muito tempo, porque muito brevemente Aureliano Segundo começou a dar mostras de malandragem e dissipação. Enquanto esteve fechado no quarto de Melquíades foi um homem ensimesmado, como o fora o Coronel Aureliano Buendía na juventude. Pouco antes, porém, do Tratado de Neerlândia, uma casualidade o arrancou do seu ensimesmamento e o colocou diante da realidade do mundo. Uma mulher jovem, que andava vendendo números para a rifa de um acordeão, cumprimentou-o com muita familiaridade. Aureliano Segundo não se surpreendeu porque acontecia com freqüência confundirem-no com o ir-mão. Mas não esclareceu o equívoco, nem sequer quando a moça tratou de lhe amolecer o coração com choramingos, e acabou por levá-lo para o seu quarto. Despertou-lhe tanto carinho desde aquele primeiro encontro que ela fez trapaça na rifa para que ele ganhasse o acordeão. Ao fim de duas semanas, Aureliano Segundo percebeu que a mulher estava dormindo alternadamente com ele e com o irmão, acreditando que eram o mesmo homem, e em vez de esclarecer a situação deu um jeito de prolongá-la. Não voltou ao quarto de Melquíades. Passava as tardes no quintal, aprendendo a tocar de ouvido o acordeão, apesar dos protestos de Úrsula, que naquele tempo havia proibido a música em casa por causa dos lutos e que além disso menosprezava o acordeão como um instrumento próprio dos vagabundos herdeiros de Francisco, o Homem. Entretanto, Aureliano Segundo chegou a ser um virtuose do acordeão e continuou sendo depois que se casou e teve filhos e passou a ser um dos homens mais respeitados de Macondo. Durante quase dois meses partilhou a mulher com o irmão. Vigiava-o, desmanchava os seus planos, e quando estava certo de que José Arcadio Segundo não visitaria essa noite a amante comum, ia dormir com ela. Certa manhã descobriu que estava doente. Dois dias depois encontrou o irmão apoiado numa viga do banheiro, alagado de suor e chorando de cair lágrimas, e então compreendeu. Seu irmão confessou que a amante o repudiara por lhe haver trazido o que ela chamava de uma doença de mulher da vida. Contou-lhe também como Pilar Ternera tentava curá-lo. Aureliano Segundo submeteu-se às escondidas às ardentes lavagens de permanganato e às águas diuréticas, e ambos se curaram separadamente após três meses de sofrimentos secretos. José Arcadio Segundo não voltou a ver a mulher. Aureliano Segundo obteve o seu perdão e ficou com ela até a morte. 

Chamava-se Petra Cotes. Chegada a Macondo em plena guerra, com um marido ocasional que vivia de rifas, e, quando o homem morreu, ela continuou com o negócio. Era uma mulata limpa e jovem, com uns olhos amarelos e amendoados que lhe davam ao rosto a ferocidade de uma pantera, mas tinha um coração generoso e uma magnífica vocação para o amor. Quando Úrsula soube que José Arcadio Segundo era criador de galos e Aureliano Segundo tocava acordeão nas festas ruidosas da sua concubina, pensou que ia enlouquecer de confusão. Era como se ambos tivessem concentrado os defeitos da família e nenhuma das suas virtudes. Decidiu então que ninguém mais tornaria a se chamar Aureliano e José Arcadio. Entretanto, quando Aureliano Segundo teve o seu primeiro filho, não se atreveu a contrariá-lo. 

— Concordo — disse Úrsula — mas com uma condição: eu me encarrego de criá-lo. 

Embora fosse centenária e estivesse quase cega por causa da catarata, conservava intactos o dinamismo físico, a integridade do caráter e o equilíbrio mental. Ninguém melhor do que ela para formar o homem virtuoso que haveria de restaurar o prestígio da família, um homem que nunca tivesse ouvido falar da guerra, dos galos de briga, das mulheres da vida e das empresas delirantes, quatro calamidades que, conforme pensava Úrsula, tinham determinado a decadência de sua estirpe. “Este será padre”, prometeu solenemente. “E se Deus me der vida bastante há de chegar a ser Papa.” Todos riram ao ouvi-la, não apenas no quarto, mas em toda a casa, onde estavam reunidos os barulhentos companheiros de Aureliano Segundo. A guerra, relegada ao desvão das más recordações, foi momentaneamente evocada com os estouros da champanha. 

— A saúde do Papa — brindou Aureliano Segundo. 

Os convidados brindaram em coro. Em seguida o dono da casa tocou acordeão, soltaram-se foguetes e se ordenaram batucadas de júbilo para o povo. De madrugada, os convidados encharcados de champanha sacrificaram seis vacas e as puseram na rua à disposição da multidão. Ninguém se escandalizou. Desde que Aureliano Segundo passou a ser o chefe da casa, aquelas festivid ades eram coisa corrente, mesmo que não existisse um motivo tão justo como o nascimento de um Papa. Em poucos anos, sem esforço, por puros golpes de sorte, acumulara uma das maiores fortunas do pantanal, graças à proliferação sobrenatural dos seus animais. As suas éguas pariam trigêmeos, as galinhas botavam duas vezes por dia, e os porcos engordavam de forma tão desenfreada que ninguém podia explicar uma fecundidade tão desordenada a não ser por artes de magia. “Economize agora”, dizia Úrsula ao seu bisneto aturdido. “Esta sorte não vai durar toda a vida.” Mas Aureliano Segundo não lhe prestava atenção. Quanto mais abria champanha para encharcar os amigos, mais loucamente pariam os seus animais, e mais se convencia ele de que a sua boa estrela não era ligada ao seu comportamento e sim à influência de Petra Cotes, sua concubina, cujo amor tinha a virtude de exasperar a natureza. Tão convencido estava de que era essa a origem da sua fortuna que nunca possuiu Petra Cotes longe da sua criação, e, mesmo quando se casou e teve filhos, continuou vivendo com ela com o consentimento de Fernanda. Sólido, monumental como os seus avós, mas com um gosto pela vida e uma simpatia irresistível que eles não tiveram. Aureliano Segundo mal tinha tempo de vigiar o seu gado. Bastava levar Petra Cotes aos estábulos, e passeá-la a cavalo pelas suas terras, para que todo animal marcado com o seu ferro sucumbisse à peste irremediável da proliferação.


continua página 121...

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