Elias Canetti
O SENTIMENTO DE PERSEGUIÇÃO
Dentre os traços mais notáveis na vida da massa encontra-se algo que se poderia denominar um sentimento de perseguição, uma particular e irada suscetibilidade e irritabilidade em relação àqueles que ela caracteriza definitivamente como inimigos. Façam estes o que quer que façam — comportem-se eles com rispidez ou simpatia, sejam solidários ou frios, duros ou brandos —, tudo é interpretado como proveniente de uma inabalável malevolência, de uma disposição hostil à massa: um propósito já firmado de, aberta ou dissimuladamente, destruí-la.
A fim de se explicar esse sentimento de hostilidade e perseguição, tem-se mais uma vez de partir do fato básico de que a massa, uma vez surgida, deseja crescer velozmente. Dificilmente se pode fazer uma ideia exagerada da força e da determinação com a qual a massa se propaga. Enquanto sente que está crescendo — em situações revolucionárias, por exemplo, que principiam com massas pequenas, mas extremamente tensas —, tudo quanto se contraponha a esse seu crescimento é por ela percebido como um cerceamento. A massa pode ser dispersada e fracionada pela polícia, mas isso produzirá um efeito apenas temporário, feito um espantar com a mão uma nuvem de mosquitos. Pode também, no entanto, ser atacada a partir do seu interior, na medida em que se vá ao encontro das demandas que conduziram a sua formação. Nesse caso, os mais fracos separam-se dela, e outros, em vias de juntar-se a ela, recuam na metade do caminho.
O ataque exterior à massa só faz fortalecê-la. Os corpos apartados são atraídos tanto mais vigorosamente para junto uns dos outros. Já o ataque proveniente do interior, pelo contrário, é realmente perigoso. Uma greve que tenha obtido algumas conquistas espedaça-se a olhos vistos. O ataque proveniente do interior apela a desejos individuais. A massa o sente como um suborno, como “imoral”, visto ir ele de encontro a sua clara e límpida disposição básica. Cada um dos membros de uma tal massa abriga em si um pequeno traidor, que deseja comer, beber, amar e ter o seu sossego. Na medida em que ele realiza tais atos secundariamente, deles não fazendo grande alarde, deixam-no estar. Tão logo, porém, ele lhes dá voz, começam a odiá-lo e temê-lo. Sabe-se, então, que ele deu ouvidos às tentações do inimigo.
A massa assemelha-se sempre a uma cidade sitiada — mas duplamente sitiada: o inimigo encontra-se tanto diante de seus muros quanto nos porões. Ao longo da luta, ela atrai cada vez mais adeptos. Seus novos amigos reúnem-se diante de todos os portões e batem impetuosamente, pedindo para entrar. Nos momentos favoráveis, seu pedido é atendido; contudo, eles escalam os muros também. A cidade se enche mais e mais de combatentes, mas cada um deles traz consigo seu pequeno e invisível traidor, que depressa se mete em algum porão. O sítio consiste no fato de se procurar interceptar os recém-chegados. Para os inimigos, do lado de fora, os muros são mais importantes do que os sitiados em seu interior. São os sitiadores que os constroem e elevam continuamente. Buscam subornar os recém-chegados e, quando já não podem mais detê-los, cuidam para que o pequeno traidor que os acompanha seja munido de suficiente hostilidade em seu caminho rumo à cidade.
O sentimento de perseguição da massa nada mais é do que esse sentimento de uma dupla ameaça. Os muros exteriores são estreitados progressivamente, e os porões interiores cada vez mais minados. As ações do inimigo a trabalhar nos muros são abertas e visíveis, mas ocultas e dissimuladas nos porões.
Imagens como essa, porém, sempre capturam apenas uma parte da verdade. Os que acorrem provindos do exterior, os que desejam entrar na cidade, não são somente novos adeptos, reforços, apoios: são também o alimento da massa. Uma massa que não aumenta encontra-se em jejum. Existem meios para suportar esse jejum, e as religiões desenvolveram grande maestria nesse aspecto. Demonstrar-se-á a seguir de que forma as religiões universais conseguem manter suas massas, mesmo sem que elas aumentem aguda e violentamente.
continua página 31...
____________________
____________________
Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (O sentimento de perseguição)
____________________
ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
Nenhum comentário:
Postar um comentário