terça-feira, 13 de setembro de 2022

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (a) ... Orlando entrou

Capítulo 6




Orlando entrou. Tudo estava completamente tranquilo. Tudo era silêncio. Ali estava o tinteiro; ali estava a pena; ali estava o manuscrito do seu poema, interrompido em meio a um tributo à eternidade. Estava prestes a dizer — quando Basket e Bartholomew interromperam-na com as coisas do chá — nada muda. E então, no intervalo de três segundos e meio, tudo mudara — ela quebrara o tornozelo, se apaixonara e casara com Shelmerdine.
Havia o anel de casamento em seu dedo, para provar isso. É verdade que ela própria o pusera ali antes de encontrar Shelmerdine, mas isso se mostrara mais do que inútil. Agora dava voltas e voltas ao anel, com supersticiosa reverência, tomando cuidado para que não escorregasse da junta do dedo.
“O anel de casamento deve ser colocado no terceiro dedo da mão esquerda”, dizia como uma criança repetindo cuidadosamente a sua lição, “pois senão não serve para nada.”
Assim falou em voz alta e mais pomposamente do que de costume, como se desejasse ser entreouvida por alguém cuja opinião lhe parecesse adequada. De fato, agora que finalmente estava em condições de ordenar os pensamentos, preocupava-se com o efeito que seu comportamento pudesse ter tido sobre o espírito da época. Estava extremamente ansiosa em ser informada se os passos que dera, comprometendo-se com Shelmerdine e casando-se com ele, mereceram aprovação. Certamente sentia-se mais segura de si. Seu dedo não voltara a vibrar, ou apenas muito pouco, depois daquela noite no pântano. Contudo, não podia negar que tinha suas dúvidas. Estava casada, é certo; mas se o seu marido estava sempre velejando em torno do cabo Horn, seria isso um casamento? Se alguém gostasse dele, seria casamento? Se alguém gostasse de outras pessoas, seria casamento? E, finalmente, se alguém ainda desejasse, mais do que qualquer coisa no mundo, escrever poesia, seria casamento? Ela tinha suas dúvidas.
Mas queria pôr isso à prova. Olhou para o anel. Olhou para o tinteiro. Ousaria? Não, não ousaria. Mas devia. Não, não podia. Que faria então? Desmaiar, se possível. Mas nunca em sua vida se sentira tão bem.

— Com os diabos! — gritou, com um toque de seu antigo ânimo. — Lá vai!

E mergulhou a pena profundamente na tinta. Para sua enorme surpresa, não houve explosão. Retirou a ponta. Estava molhada, mas não pingava. Escreveu. As palavras custavam um pouco a vir, mas vinham. Ah! mas fariam sentido?, ela se perguntava, com um certo pânico de que a pena voltasse às suas involuntárias travessuras. Leu:

E então cheguei a um campo onde a grama nascente
Era sombreada pelas taças de lilases pendentes,
Silenciosa e estrangeira, a flor serpentina,
Velada em púrpura sombria, como egípcias meninas
— [1]

Enquanto escrevia sentiu como que uma força (lembrem-se de que estamos lidando com as mais obscuras manifestações do espírito humano) lendo por cima do seu ombro, e, quando escreveu egípcias meninas, a força lhe disse que parasse. A grama — a força parecia dizer, recuando para o início, com uma régua, como usam as governantas — está bem; as taças de lilases pendentes — admirável; a flor serpentina — um pensamento forte para a pena de uma dama, talvez, mas Wordsworth, sem dúvida, autorizaria; mas — meninas? as meninas são necessárias? Tu tens um marido no cabo Horn, não é? Ah! então está bem.
E assim o espírito passou adiante.
Orlando agora prestou em espírito (porque tudo isso aconteceu em espírito) uma profunda homenagem ao espírito da época, tal como a que faz — para comparar grandes coisas com pequenas — um viajante (consciente de levar um maço de charutos no canto da mala) ao guarda da alfândega que amavelmente libera a mala, pondo-lhe um traço de giz na tampa. Pois ela tinha sérias dúvidas de que, se o espírito examinasse cuidadosamente o conteúdo de sua mente, teria encontrado ali algum contrabando, pelo qual ela pagaria a mais alta das multas. Escapara por um triz. Conseguira — por uma hábil deferência ao espírito da época, pondo um anel e encontrando um homem no pântano, amando a natureza e não sendo satírica, cínica nem psicológica (o que teria sido descoberto de imediato) — ser bem-sucedida em seu exame. E deu um profundo suspiro de alívio, como de fato merecia, pois a transação entre um escritor e o espírito da época é de uma infinita delicadeza e de um bom acordo entre os dois depende todo o êxito de suas obras. Orlando se organizara tão bem que estava numa posição extremamente feliz; não necessitava combater sua época nem submeter-se a ela; era parte da época, mas permanecia ela mesma. Assim agora podia escrever, e escreveu. Escreveu. Escreveu. Escreveu.


Era novembro. Depois de novembro vem dezembro. Depois, janeiro, fevereiro, março e abril. Depois de abril vem maio. Seguem-se junho, julho e agosto. O próximo é setembro. Depois, outubro, e eis que se chega outra vez a novembro, tendo-se completado um ano.
Este método de escrever biografia, embora tenha seus méritos, é um pouco cansativo, talvez, e o leitor, se continuarmos assim, pode alegar que é capaz de recitar sozinho o calendário e poupar ao seu bolso qualquer que seja a soma que a Hogarth Press [2] cobre por este livro. Mas o que pode o biógrafo fazer quando seu biografado o coloca na situação em que Orlando nos colocou agora? A vida — e nisso concordam todos aqueles cuja opinião tem valor — é o único tema adequado para um novelista ou um biógrafo; a vida — as mesmas autoridades decidiram — nada tem a ver com sentar numa cadeira e pensar. Pensamento e vida são como polos opostos. Por isso — já que sentar em uma cadeira e pensar são exatamente o que Orlando está fazendo agora —, não há nada a fazer senão recitar o calendário, rezar o rosário, assoar o nariz, atiçar o fogo, olhar pela janela, até que ela acabe. Orlando estava sentada tão quieta que se podia ouvir um alfinete caindo. Oxalá tivesse caído um alfinete! Já seria uma certa vida. Ou se uma borboleta entrasse pela janela e pousasse em sua cadeira, podia se escrever sobre isso. Ou supor que ela se levantasse e matasse uma vespa. Então imediatamente poderíamos pegar a pena e escrever. Pois haveria sangue derramado, mesmo que de uma vespa. Onde há sangue há vida. E embora a morte de uma vespa seja uma bagatela se comparada com a morte de um homem, ainda assim é um tema mais adequado para o novelista ou o biógrafo do que este simples passatempo; este pensar; este sentar numa cadeira dias e dias com um cigarro, uma folha de papel, uma pena e um tinteiro. Ah, se os personagens — poderíamos reclamar, porque a nossa paciência está diminuindo — tivessem mais consideração por seus biógrafos! Pode haver coisa mais irritante do que ver um personagem, com o qual esbanjamos tanto tempo e trabalho, escapar completamente ao nosso controle — como o testemunham seus suspiros e lamentos, seu rubor, sua palidez, seus olhos ora brilhantes como lâmpadas, ora pálidos como auroras — pode haver coisa mais humilhante do que toda essa pantomima de emoção e excitação que ocorre diante de nossos olhos, quando se sabe que sua causa — pensamento e imaginação — não tem nenhuma importância?
Mas Orlando era uma mulher — Lorde Palmerston acabara de provar isso. E, quando se está escrevendo a vida de uma mulher, pode-se — todos concordam — dispensar a exigência de ação e substituí-la pelo amor. O amor, disse o poeta, é toda a existência da mulher. E, se olharmos por um momento para Orlando escrevendo em sua mesa, devemos admitir que nunca houve uma mulher tão apta para essa tarefa. Certamente, uma vez que ela é uma mulher, uma bela mulher, uma mulher na flor da idade, logo abandonará esse fingimento de escrever e meditar e começará, pelo menos, a pensar num guarda-caça (e, contanto que pense num homem, ninguém se opõe a que uma mulher pense). E então ela lhe escreverá um pequeno bilhete (contanto que escreva bilhetes, ninguém se opõe a que uma mulher escreva) e marcará um encontro para domingo ao entardecer, e o domingo ao entardecer chegará; e o guarda-caça assobiará sob a janela — o que, naturalmente, constitui o verdadeiro tema da vida e o único assunto possível para a ficção. Certamente Orlando deve ter feito uma dessas coisas! Meu Deus — mil vezes, meu Deus, Orlando não fez nada disso. Teremos que admitir que Orlando era um desses monstros de iniquidade que não amam? Era bondosa com os cachorros, fiel aos amigos, generosa com uma dúzia de poetas famintos, tinha paixão pela poesia. Mas amor — como os novelistas homens o definem — e quem realmente fala com maior autoridade? — nada tem a ver com bondade, fidelidade, generosidade ou poesia. Amor é despir as saias e — mas todos sabemos o que é o amor. E Orlando fez isso? A verdade nos obriga a dizer não, não fez. Se então o personagem da nossa biografia não ama nem mata, mas só pensa e imagina, podemos concluir que ele ou ela não é melhor do que um cadáver, e abandoná-lo.
O único recurso que nos resta é olhar pela janela. Havia pardais; havia estorninhos; havia uma porção de pombos, uma ou duas gralhas, todos ocupados a seu modo. Um acha uma minhoca, outro, um caracol. Um voa para um ramo, outro dá uma pequena corrida no gramado. Depois, um criado atravessa o pátio usando um avental de baeta verde. É provável que esteja metido em alguma encrenca com uma das copeiras, mas nenhuma prova visível nos é oferecida no pátio, podemos apenas esperar que seja isso e abandonar o assunto. As nuvens passam, finas ou densas, perturbando um pouco o tom da grama embaixo. O relógio de sol registra a hora em sua maneira enigmática, como de costume. A mente começa a levantar uma ou duas perguntas preguiçosamente, inutilmente, a respeito desta mesma vida. A vida canta, ou melhor, sibila como uma chaleira no fogo. Vida, vida, o que és tu? Luz ou escuridão, o avental de baeta do mensageiro ou a sombra do estorninho na grama?
Vamos então continuar explorando esta manhã de verão, quando todos estão adorando a flor da ameixa e a abelha. E cantarolando vamos perguntar ao estorninho (que é um pássaro mais sociável do que a cotovia) em que pensa, na borda da lata de lixo, enquanto apanha, entre os gravetos, restos de cabelo do ajudante de cozinha. O que é a vida, perguntamos, debruçados no portão do pátio da fazenda; Vida, Vida, Vida!, grita o pássaro — como se tivesse ouvido e soubesse exatamente o que queríamos dizer com esse hábito cansativo de fazer perguntas dentro e fora da casa —, e vai piando e apanhando margaridas como fazem os escritores quando não sabem o que dizer em seguida. Então eles vêm aqui, diz o pássaro, e me perguntam o que é a vida; Vida, Vida, Vida!
Arrastamo-nos pelo caminho do pântano até o topo da colina, violáceo e púrpura escuro, e lá nos atiramos ao chão e sonhamos ver ali um gafanhoto, carregando uma palha para sua casa no buraco. E ele diz (se a cicios como o dele pode ser dado um nome tão sagrado e terno) a vida é trabalho, ou assim interpretamos o zumbido do seu gasganete sufocado de poeira. E a formiga e a abelha concordam, mas se ficarmos aqui tempo suficiente para perguntar às mariposas, quando chegam à noite, insinuando-se entre as campânulas mais pálidas, elas sussurrarão aos nossos ouvidos coisas sem sentido, como as que se ouvem nos fios telegráficos em tempestades de neve: hi, hi, ha, ha. É riso, riso!, dizem as mariposas.
Tendo então perguntado ao homem, ao pássaro e aos insetos, porque os peixes — dizem os homens que têm vivido em grutas verdes, solitários, durante anos, para ouvi-los falar — nunca, nunca dizem, nem talvez saibam, o que é a vida; tendo então perguntado a todos e não tendo conseguido ficar mais sábios, mas apenas mais velhos e mais frios (pois não tínhamos implorado o dom de aprisionar num livro algo tão difícil, tão raro que só pudesse jurar ser o sentido da vida?), devemos voltar atrás e dizer diretamente ao leitor que espera ansioso ouvir o que é a vida — meu Deus! não sabemos.



continua pag 107...
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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


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Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...
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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (a) ... Com alguns guinéus
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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (c) ... Para fazer justiça a ela
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (d) ... Orlando atirou a segunda meia
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (a) ... Orlando entrou
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[1] And then I come to a field where the springing grass Was dulled by the hanging cups of fritillaries, Sullen and foreign-looking, the snaky flower, Scarfed in dull purple, like Egyptian girls —

[2] Editora pertencente a Leonard e Virginia Woolf. (N.T.)



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