quarta-feira, 13 de abril de 2022

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (f) ... Nisto, Nell explodiu em tamanha gargalhada

Capítulo 4


continuando...


Nisto, Nell explodiu em tamanha gargalhada que podia ser ouvida na rua.

“Bem, querida”, disse quando conseguiu se recuperar, “não me aborrece nada saber disso. Pois a mais pura verdade é” (e era notável como logo ao descobrir que eram do mesmo sexo seus modos mudaram e ela deixou de ser suplicante e queixosa), “a mas pura verdade é que não estou disposta a lidar com o outro sexo esta noite. Na verdade, estou numa complicação danada.” E assim, atiçando o fogo e mexendo uma taça de ponche contou a Orlando toda a história de sua vida. Uma vez que é a vida de Orlando que nos interessa no momento, não precisamos relatar as aventuras da outra mulher, mas é certo que Orlando nunca vira as horas correrem tão rápida e alegremente, embora a dama Nell não tivesse uma partícula de talento e, quando o nome do sr. Pope surgiu na conversa, perguntasse inocentemente se tinha algo a ver com o cabeleireiro de Jeremyn Street, de mesmo nome. No entanto, para Orlando, tal é a graça da naturalidade e a sedução da beleza que a conversa dessa pobre moça, embora entremeada de expressões vulgares das esquinas, tinha sabor de vinho depois das finas frases a que estava acostumada, e foi forçada a concluir que o escárnio do sr. Pope, a condescendência do sr. Addison e o segredo de Lorde Chesterfield contribuíram para desgostá-la profundamente da companhia dos sábios, embora continuasse a respeitar suas obras.

Essas pobres criaturas — ela verificou, pois Nell trouxe Prue, e Prue trouxe Kitty, e Kitty trouxe Rose — tinham uma sociedade própria, da qual, agora, a elegiam membro. Cada uma contava a história das aventuras que a tinham levado ao seu atual gênero de vida. Várias eram filhas naturais de condes, e uma tinha mais intimidade do que devia com a pessoa do rei. Nenhuma era tão miserável nem tão pobre que não possuísse um anel ou um lenço no bolso que lhe servisse de sinal de linhagem. Assim, faziam circular o ponche que Orlando se encarregava de fornecer generosamente, e eram muitas as belas histórias que contavam e muitas as observações divertidas que faziam, pois não se pode negar que quando as mulheres se reúnem — mas silêncio! — têm sempre o cuidado de ver se as portas estão fechadas e que nenhuma palavra seja impressa. Tudo quanto desejam é — mas silêncio! — não é um passo de homem na escada? Tudo quanto desejam é, íamos dizendo, quando um cavalheiro nos tirou as palavras da boca. As mulheres não têm desejos, diz esse cavalheiro entrando na sala de Nell; apenas fingimento. Sem desejos (ela o serviu e ele foi embora) a sua conversa não pode ter o menor interesse para ninguém. “É bem sabido”, diz o sr. S.W., “que, quando lhes falta estímulo do outro sexo, as mulheres não acham nada para dizer uma a outra. Quando estão sozinhas não conversam, arranham-se.” E, uma vez que não podem conversar quando estão juntas e que o arranhar não pode continuar indefinidamente, e como é bem sabido (como provou o sr. T.R.) “que as mulheres são incapazes de qualquer sentimento de afeição pelo seu próprio sexo e que se detestam mutuamente”, o que podemos supor que façam as mulheres quando se reúnem em sociedade?

Como esta não é pergunta que possa interessar a qualquer homem sensato, vamos nós aproveitar a imunidade de todos os biógrafos e historiadores de não pertencer a nenhum sexo para passar ao largo e meramente constatar que Orlando gostava imensamente da companhia das pessoas de seu próprio sexo, e deixemos para os cavalheiros o encargo de provarem, como adoram fazer, que isto é impossível.

Mas fazer um relato exato e minucioso da vida de Orlando nessa época se torna cada vez mais difícil. Quando espreitamos e tateamos pelos pátios mal-iluminados, malpavimentados, malventilados que existiam naquela época nos arredores de Gerrard Street e de Drury Lane, às vezes pensamos vislumbrá-la, mas em seguida a perdemos de vista. A tarefa se torna ainda mais difícil pelo fato de que ela achava conveniente, naquele tempo, mudar frequentemente de vestimentas. Assim, muitas vezes figura nas memórias de seus contemporâneos como “Lorde” Fulano de Tal, que na verdade era seu primo, a quem atribuem a generosidade e os poemas que na realidade foram escritos por ela. Parece que ela não tinha dificuldade em sustentar o duplo papel, pois mudava de sexo mais frequentemente do que podem imaginar aqueles que usaram apenas uma espécie de roupa; e não pode haver dúvida de que com este artifício colhia uma dupla colheita, os prazeres da vida eram aumentados, suas experiências multiplicadas. Trocava a probidade dos calções pela sedução das saias, e usufruía igualmente o amor de ambos os sexos.

Assim, poderíamos representar Orlando, pela manhã, em um traje chinês de gênero ambíguo, entre seus livros; depois, recebendo um ou dois clientes (pois tinha muitas solicitações) com o mesmo traje; depois, daria uma volta pelo jardim e podaria as nogueiras — para isso as calças eram convenientes; depois, mudava para um vestido de tafetá florido, que mais bem se adequava a um passeio a Richmond e à proposta de casamento de algum nobre cavalheiro; de novo voltaria à cidade, onde vestiria uma roupa cor de rapé, como a de um advogado, e visitaria os tribunais para saber como andavam seus pleitos — pois sua fortuna se consumia a cada hora, e seus processos não pareciam mais perto de uma solução do que tinham estado cem anos antes; e, por fim, quando anoitecia, muito frequentemente tornava-se um nobre dos pés à cabeça e passeava pelas ruas em busca de aventura.

Ao retornar de uma dessas incursões secretas — das quais há muitas histórias, tais como que lutou um duelo, serviu como capitão num dos navios do rei, foi vista dançando nua numa varanda e fugira com uma certa dama para os Países Baixos, aonde o marido da dama os seguira — mas não daremos opinião sobre a verdade ou falsidade dessas histórias —, voltando ao que quer que fosse a sua ocupação, fazia questão de passar sob as janelas de um café onde podia ver os intelectuais sem ser vista e assim imaginar pelos gestos as coisas sábias, espirituosas ou malévolas que diziam, sem ouvir uma única palavra; o que, talvez, fosse uma vantagem, e uma vez ficou meia hora observando às escondidas três sombras que tomavam chá, numa casa em Bolt Court.

Nunca um espetáculo foi tão atraente. Ela queria gritar Bravo! Bravo! Pois, na verdade, que belo drama era aquele — que página arrancada do mais espesso volume da vida humana! Havia uma pequena sombra com lábios pontudos agitando-se de um lado para outro na cadeira, inquieta, petulante, intrometida; havia uma sombra feminina curvada, mergulhando um dedo numa xícara para ver a profundidade do chá, porque era cega; e havia uma sombra corpulenta, de ar romano, numa grande cadeira de braços — que torcia os dedos de modo esquisito e movia a cabeça de um lado para outro e engolia o chá em grandes goles. Dr. Johnson, sr. Boswell e sra. Williams — estes eram os nomes das sombras. Ela estava tão absorta na contemplação que se esqueceu de pensar na inveja que causaria nas épocas futuras, embora pareça provável que, nessa ocasião, isso aconteceria. Estava feliz mirando e remirando. Finalmente, o sr. Boswell se levantou. Cumprimentou a velha senhora ríspida e asperamente. Mas com que humildade não se inclinou diante da grande sombra romana que agora se pusera de pé e balançando-se um pouco desfiava as mais grandiosas frases jamais saídas dos lábios humanos; assim pensava Orlando, embora não tivesse ouvido uma única palavra do que as três sombras diziam enquanto tomavam chá.

Finalmente voltou para casa uma noite depois de um desses passeios e subiu para o seu quarto. Tirou o casaco enfeitado de rendas e ficou de camisa e calção, olhando pela janela. Havia no ar algo excitante que a impedia de ir para a cama. Uma neblina branca pairava sobre a cidade, porque era uma noite gelada de meados do inverno e uma vista maravilhosa a rodeava. Podia ver a catedral de São Paulo, a Torre, a Abadia de Westminster, todas as agulhas e as cúpulas das igrejas da cidade, o suave contorno das margens do rio, as opulentas e amplas curvas dos edifícios e templos. Ao norte erguiam-se as suaves e desnudas colinas de Hampstead, e, para oeste, as ruas e praças de Mayfair brilhavam num claro esplendor. Sobre esta serena e harmoniosa paisagem; estrelas pairavam brilhantes, nítidas, firmes, em um céu sem nuvens. Na extrema claridade da atmosfera, a linha de cada telhado, o capuz de cada chaminé era perceptível. Até as pedras das ruas se distinguiam umas das outras; e Orlando não pôde evitar comparar a ordem desta cena com os terrenos irregulares e confusos que formavam a cidade de Londres no reinado da rainha Elizabeth. Naquele tempo, lembrava-se, a cidade, se é que se pode chamar assim, se amontoava numa simples aglomeração confusa de casas, sob suas janelas em Blackfriars. As estrelas se refletiam em fundas poças de água estagnada que havia no meio das ruas. Uma sombra negra na esquina onde antes era a taverna podia ser o cadáver de um homem assassinado. Podia se lembrar dos gritos de mais um ferido nessas brigas noturnas, quando era menino e a ama o levantava até a altura das vidraças em losango. Bandos de rufiões, homens e mulheres, indescritivelmente entrelaçados, vagavam pelas ruas, vociferando canções rudes, com joias brilhando nas orelhas e facas cintilando nos punhos. Em noites como esta, a trama impermeável das florestas de Highgate e Hampstead se delineava contra o céu, retorcida, num intrincado emaranhamento. Aqui e ali, em uma das colinas que dominam Londres, havia uma forca com um cadáver pregado apodrecendo, ou fincado numa cruz; pois o perigo e a insegurança, a luxúria e a violência, a poesia e a imundície fervilhavam nas tortuosas estradas elisabetanas, que zumbiam e fediam — Orlando podia se lembrar ainda agora daquele cheiro em uma noite quente — nos quartos apertados e nos caminhos estreitos da cidade. Agora — debruçava-se à janela — tu era luz, ordem e serenidade. Ouvia-se o débil ruído uma carruagem nas pedras. Ela ouviu o apito distante de um guarda-noturno — “Doze em ponto, uma madrugada gelada.” Mal acabava de dizer estas palavras quando a primeira badalada da meia-noite soou. Orlando então pela primeira vez observou uma pequena nuvem crespa, atrás da cúpula de São Paulo. À medida que as badaladas soavam, a nuvem aumentava, e ela viu-a escurecer e estender-se com extraordinária rapidez. Ao mesmo tempo, uma leve brisa se elevou, quando soou a sexta badalada, e todo o céu, no leste, ficou encoberto por uma escuridão móvel e irregular, embora o céu no oeste e no norte continuasse claro como sempre. Depois a nuvem se espalhou para o norte. Cume após cume da cidade foram engolfados por ela. Só Mayfair, com todas as luzes acesas, ardia, por contraste, mais brilhante do que nunca. Com a oitava badalada, alguns velozes farrapos de nuvem espalharam-se sobre Piccadilly. Pareciam amontoar-se e avançar com extraordinária velocidade para o extremo oeste. Com a nona, a décima e a décima primeira badaladas, uma enorme escuridão se espraiava por Londres inteira. Com a décima segunda badalada da meia-noite, a escuridão era completa. Um turbulento redemoinho de nuvens cobriu a cidade. Tudo era treva; tudo era dúvida; tudo era confusão. O século XVIII terminava; começava o século XIX.




continua pag 91...


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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (f) ... Nisto, Nell explodiu em tamanha gargalhada

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[1] Em francês no original: mot, palavra, dito de espírito. (N.E.)

[2] Estes ditos são conhecidos demais para requererem repetição, e, além disso, são todos
encontrados nas suas obras completas. (N.A.)


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