Capítulo 6
continuando...
Podia se lembrar, pensou, transpondo a soleira da casa, do que Lorde Chesterfield dissera — mas sua memória se deteve. Seu discreto vestíbulo do século XVIII — onde podia ver Lorde Chesterfield pousando o chapéu aqui, o casaco ali, com uma elegância de atitudes que era um prazer observar — estava agora completamente entulhado de pacotes. Enquanto estivera sentada em Hyde Park, o livreiro havia mandado sua encomenda e a casa estava abarrotada — havia pacotes escorregando pela escada — com toda a literatura vitoriana embrulhada em papel cinzento e cuidadosamente amarrada com barbante. Levou tantos desses pacotes quanto pôde para o seu quarto e mandou os criados trazerem o resto e, cortando rapidamente inúmeros barbantes, ficou logo cercada por inúmeros volumes.
Acostumada à reduzida literatura dos séculos XVI e XVII e XVIII, Orlando ficou apavorada com as consequências de sua encomenda. Pois, naturalmente, mesmo para os vitorianos, a literatura vitoriana significava não apenas quatro grandes nomes separados e distintos, mas quatro grandes nomes afundados e misturados numa massa de Alexander Smiths, Dicksons, Blacks, Milmans, Buckles, Taines, Paynes, Tuppers, Jamesons — todos eloquentes, ruidosos, proeminentes, e requerendo tanta atenção quanto qualquer outro. O respeito de Orlando pela palavra impressa impunha-lhe uma difícil tarefa, mas, puxando a cadeira para a janela a fim de aproveitar a luz que se pudesse filtrar entre as altas casas de Mayfair, procurou chegar a uma conclusão.
E agora é claro que só existem dois caminhos para se chegar a uma conclusão sobre a literatura vitoriana — um é escrevê-la em sessenta volumes in-oitavo, a outra é espremê-la em seis linhas do tamanho desta. Dos dois caminhos, a economia — já que o tempo é curto — nos leva a escolher o segundo, e assim procedemos. Orlando então chegou à conclusão (tendo aberto meia dúzia de livros) de que era muito estranho que nenhum deles contivesse uma dedicatória a um nobre; depois (examinando uma vasta pilha de memórias), que vários desses escritores tivessem árvores genealógicas quase tão altas quanto a sua própria; depois, que seria uma extrema falta de polidez enrolar uma nota de dez libras nas pinças de açúcar quando a srta. Christina Rossetti viesse tomar chá; depois (aqui havia meia dúzia de convites para celebrar centenários com jantares) que a literatura, após comer todos esses jantares, ficaria muito corpulenta; depois (tinha sido convidada para uma série de conferências sobre a influência disto sobre aquilo; o renascimento clássico; a sobrevivência romântica e outros títulos do mesmo gênero) que a literatura, ouvindo todas essas conferências, ficaria muito seca; depois (aqui ela iria a uma recepção dada pela esposa de um Par do reino) que a literatura, usando todas aquela estolas de pele, ficaria muito respeitável; depois (aqui visitou em Chelsea o quarto à prova de som de Carlyle) que, se o gênio necessita de todos esses mimos, ficaria muito delicado; então, afinal, chegou à conclusão definitiva, que era da mais alta importância, mas que, como já ultrapassamos o nosso limite de seis linhas, devemos omitir.
Tendo chegado a essa conclusão, Orlando ficou na janela olhando por um considerável intervalo de tempo, pois quando alguém chega a uma conclusão é como se tivesse atirado uma bola por cima da rede e precisasse esperar que o antagonista invisível a devolvesse. O que lhe seria enviado depois, daquele céu sem cor que cobria Chesterfield House?, ela se perguntava. E, com as mãos cruzadas, permaneceu por um tempo considerável pensando. De repente assustou-se — e aqui podemos apenas desejar que, como numa ocasião anterior, a Pureza, a Castidade e a Modéstia entreabram a porta e nos permitam pelo menos um espaço para respirar, durante o qual possamos pensar em como apresentar aquilo que tem que ser contado delicadamente, como é dever de um biógrafo. Mas não! Tendo atirado suas roupas brancas para Orlando despido, e vendo-as caírem a pequena distância, essas senhoras abandonaram qualquer relação com ela, por todo esse tempo, e estavam agora ocupadas com outras coisas. Não vai acontecer nada nesta pálida manhã de março para mitigar, velar, cobrir, ocultar, amortalhar este incontestável acontecimento, qualquer que ele seja? Porque, depois daquele repentino e violento susto, Orlando — mas o céu seja louvado, no mesmo instante soou lá fora um desses frágeis, agudos, aflautados, trêmulos, antiquados realejos que ainda às vezes são manejados por tocadores italianos, em ruas afastadas. Vamos aceitar essa intervenção, por humilde que seja, como se fosse a música das esferas, e permitir-lhe que, com todos os seus suspiros e gemidos, preencha esta página com som, até que chegue o momento cuja chegada é impossível negar; que o criado e a empregada veem chegar; e o leitor verá também; pois a própria Orlando já é claramente incapaz de ignorá-lo por mais tempo. Deixemos o som do realejo e transportemo-nos em pensamento — que nada mais é do que um pequeno barco sacudindo nas ondas, quando há música; em pensamento, que é de todos os transportes o mais rude, o mais irregular — por cima dos sótãos e dos quintais com roupas penduradas na corda para... qual é este lugar? Reconheces o parque, e no meio o campanário, e o portão com um leão deitado de cada lado? Oh, sim, é Kew! Bem, que seja Kew. Assim, pois, estamos em Kew, e hoje (2 de março) lhes mostraremos, sob uma ameixeira, um cacho de jacintos e um açafrão e também um botão na amendoeira; de forma que passear por aqui é estar pensando em bulbos peludos e vermelhos, plantados na terra em outubro e agora florescendo; estar sonhando com mais do que se pode dizer e tirando de sua caixa um cigarro, ou mesmo um charuto, e ir estendendo um agasalho (como requer a rima) sob um carvalho e lá sentar à espera do martim-pescador que, diz-se, foi visto certa vez, à tarde, atravessando de uma margem para a outra.
Esperem! Esperem! Aí vem o martim-pescador; o martim-pescador não vem. Contemplemos, enquanto isso, as chaminés das fábricas e sua fumaça; contemplemos os que trabalham na cidade, passando rapidamente em seu barco; contemplemos a velha senhora levando o cachorro para um passeio e a criada usando pela primeira vez o seu chapéu novo, mal colocado; contemplemos todos. Embora os céus misericordiosamente tenham decretado que os segredos de todos os corações sejam ocultos de modo a estarmos sempre iludidos suspeitando de algo que talvez não exista; ainda através da fumaça do nosso cigarro vemos flamejar e saudamos a esplêndida concretização dos desejos naturais de um chapéu, de um barco, de um rato numa vala; como uma vez vimos flamejar — em que pulos tolos e falhas a mente incorre quando extravasa e o realejo toca — como vimos flamejar um fogo num campo diante de minaretes perto de Constantinopla.
Salve, desejo natural! Salve, felicidade, divina felicidade! E prazeres de todos os tipos, flores e vinho, embora aquelas murchem e o outro embriague; e viagens de lazer para fora de Londres, aos domingos, e cantar numa capela escura cânticos sobre a morte e qualquer coisa, qualquer coisa que interrompa e confunda o martelar das máquinas de escrever e o envio de cartas e o forjar de elos e correntes que unam todo o Império. Salve até mesmo os grosseiros arcos vermelhos dos lábios das vendedoras das lojas (como se Cupido tivesse muito desajeitadamente mergulhado o polegar em tinta vermelha e rabiscado um sinal ao passar). Salve, felicidade! Martim-pescador atravessando como um raio, de uma margem para outra. E toda a concretização do desejo natural, quer seja o que os novelistas homens dizem ser, quer seja prece ou recusa, salve! em qualquer forma em que venha, e que tenha mais formas e mais estranhas. Pois o rio corre escuro e tristonho — se pudesse dizer, como pede a rima, “como um sonho” — porém mais sombrio e pior do que o dele é o nosso destino comum; sem sonhos, mas vivo, complacente, fluente, habitual, sob as árvores cuja sombra verde-oliva afoga o azul da asa de um pássaro evanescente que se lança de súbito de uma margem para a outra.
Salve, felicidade, então — e depois da felicidade não saudemos aqueles sonhos que deformam a imagem nítida, como espelhos manchados fazem com o rosto, na sala de uma estalagem campestre; sonhos que se estilhaçam e nos rasgam ao meio, nos ferem e nos despedaçam à noite, quando queremos dormir; mas dormir, dormir tão profundamente que todas as formas sejam reduzidas a um pó de infinita finura, água de inescrutável obscuridade, e lá, dobrados, amortalhados como uma múmia, como uma mariposa, reclinados deitemos na areia do fundo do sono.
Mas esperem! mas esperem! desta vez não vamos visitar a terra cega. Azul, como um fósforo aceso diretamente no globo ocular, ei-lo que voa, queima, rompe o selo do sono; o martim-pescador; de forma que agora reflui novamente, como um refluxo de maré, o vermelho, espesso rio da vida; borbulhando, gotejando; e ao acordar, nosso olhar (pois uma rima nos ajuda a passar a salvo da difícil transição da morte para a vida) cai sobre... (aqui o realejo para de tocar abruptamente).
— É um lindo menino, minha senhora — disse a sra. Banting, a parteira, colocando nos braços de Orlando o seu primogênito. Em outras palavras, na quinta-feira, 20 de março, às três da madrugada, Orlando dera à luz um filho.
continua na página 116...
[1] Em francês no original: entradas servidas antes dos pratos principais de uma refeição.
(N.E.)
[2] Em francês no original: gratinado. (N.E.)
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Leia também:
Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (a) ... O biógrafo agora se depara
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (b) ... Como esta pausa era...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (c) ... No mesmo momento
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (d) ... Nunca a casa
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (a) ... É realmente uma grande infelicidade
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (b) ... Felizmente, a srta. Penelope Hartopp, filha do general
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (c) ... O som das trombetas diminuiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (a) ... Com alguns guinéus
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (b) ... Ninguém manifestou a menor suspeita
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (c) ... Para fazer justiça a ela
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (d) ... Orlando atirou a segunda meia
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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (c) ... Podia se lembrar
____________________[1] Em francês no original: entradas servidas antes dos pratos principais de uma refeição.
(N.E.)
[2] Em francês no original: gratinado. (N.E.)
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