segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (b) ... Neste momento

Capítulo 6




Neste momento, mas justamente a tempo de salvar este livro da ruína, Orlando empurrou sua cadeira, esticou os braços, deixou a pena, foi para a janela e exclamou: “Pronto!”
Quase caiu ao chão diante da extraordinária visão com que seus olhos se depararam. Ali estavam o jardim e alguns pássaros. O mundo continuava como de costume. Todo o tempo em que estivera escrevendo, o mundo continuara.
E se eu tivesse morrido seria exatamente o mesmo! — exclamou.
Tal era a intensidade dos seus sentimentos que podia mesmo imaginar-se decomposta, e talvez algum desmaio, na verdade, a tenha afetado. Por um momento ficou olhando com olhos fixos o belo e indiferente espetáculo. Por fim foi reanimada de maneira singular. O manuscrito que repousava sobre o seu coração começou a palpitar e a mover-se como se fosse uma coisa viva, e, o que era ainda mais estranho, mostrava a simpatia que havia entre eles; Orlando, inclinando a cabeça, podia saber o que ele estava dizendo. Queria ser lido. Devia ser lido. Morreria em seu peito se não fosse lido. Pela primeira vez na vida ela voltouse com violência contra a natureza. Havia em redor galgos e roseiras em profusão. Mas nem galgos nem roseiras podem ler. Esse é um lamentável descuido da Providência, que nunca a impressionara antes. Apenas os seres humanos recebem esse dom. Os seres humanos se tornaram imprescindíveis. Tocou a campainha. Ordenou que a carruagem a levasse imediatamente a Londres.

— Está na hora de alcançar o trem das 11h45, senhora — disse Basket. Orlando ainda não se apercebera da invenção da locomotiva, mas estava tão absorta no sofrimento de um ser que embora não sendo ela mesma dependia inteiramente dela que viu um trem pela primeira vez, tomou lugar num vagão, enrolou uma manta nos joelhos sem pensar naquela “fantástica invenção que tinha (dizem os historiadores) mudado completamente a face da Europa nos últimos vinte anos” (o que na verdade ocorre muito mais frequentemente do que os historiadores supõem). Observou apenas que era extremamente sujo, rangia horrivelmente e as janelas batiam. Perdida em pensamentos, foi atirada em Londres em menos de uma hora, e ficou na plataforma de Charing Cross, sem saber aonde ir.

A velha casa em Blackfriars, onde passara tantos dias agradáveis no século XVIII, tinha sido vendida, parte para o Exército da Salvação, parte para uma fábrica de guarda-chuvas. Ela comprara uma outra, em Mayfair, que era higiênica, conveniente, no coração do mundo da moda, mas seria em Mayfair que o poema realizaria o seu desejo? Peçamos a Deus — pensou, recordando os olhos brilhantes das damas e a simetria das pernas dos cavalheiros — que eles não tenham se dedicado à leitura. Pois isso seria lamentável. Havia também o salão de Lady R. Ainda estariam conversando as mesmas coisas, ela não duvidava. Talvez a gota pudesse ter mudado da perna esquerda do general para a direita. O sr. L. podia ter passado dez dias com R., e não com T. Depois entraria o sr. Pope. Oh! mas o sr. Pope estava morto. Quais seriam os homens de talento?, perguntava-se mas esta não era pergunta que se fizesse a um carregador, e assim seguiu adiante. Agora seus ouvidos foram distraídos pelo tilintar de inúmeros sinos nas cabeças de inúmeros cavalos. Frotas das mais estranhas caixinhas com rodas eram arrastadas pelo calçamento. Caminhou até o Strand. Lá o tumulto era ainda pior. Veículos de todos os tamanhos, puxados por cavalos de raça ou de carga, transportando uma dama solitária ou apinhados de homens de suíças e cartola, viam-se inevitavelmente misturados. Carruagens, carros e ônibus pareciam aos seus olhos — por tanto tempo acostumados à visão de uma folha de papel — assustadoramente em disputa; e aos seus ouvidos — afinados ao ranger de uma pena — o clamor da rua parecia violento e pavorosamente dissonante. Cada polegada do calçamento estava tomada. Rios de gente, abrindo caminho com incrível agilidade entre seus próprios corpos e o balanço e a desordem do trânsito, escorriam incessantemente para leste e para oeste. Ao longo da calçada, homens de pé carregavam tabuleiros de brinquedos, e berravam. Nas esquinas, mulheres sentavam-se ao lado de grandes cestas de flores frescas, e berravam. Meninos, correndo por entre os focinhos dos cavalos e segurando contra o corpo folhas impressas, berravam também: desastre! desastre! A princípio, Orlando pensou que tivesse chegado num momento de crise nacional; mas se isso era feliz ou trágico, ela não podia dizer. Olhou ansiosamente para o rosto das pessoas. Mas isso a confundiu ainda mais. Aqui passava um homem afogado em desespero, resmungando sozinho, como se tivesse sabido de alguma terrível tristeza. Passando por ele ia um indivíduo gordo, de cara alegre, abrindo seu caminho como se aquilo fosse uma festa para todo mundo. Na verdade, ela chegou à conclusão de que não havia nem ordem nem sentido em nada. Cada homem cada mulher se dirigia para os seus próprios afazeres. E ela, aonde devia ir?
Caminhava sem pensar, subindo uma rua, descendo outra, passando por grandes vitrines repletas de bolsas, espelhos, roupões, flores, caniços de pesca, cestas para lanche; tecidos de todas as cores e padrões, finos ou grossos, estavam estendidos, repuxados como guirlandas e inflados de ponta a ponta. Às vezes passava por avenidas de sossegadas mansões, sobriamente numeradas “um”, “dois”, “três”, e assim por diante, até duzentos ou trezentos, uma a cópia da outra, com duas colunas e seis degraus e um par de cortinas cuidadosamente puxadas, e almoços familiares postos à mesa, um papagaio por uma janela, um criado por uma outra — até que sua mente ficou tonta com a monotonia. Então chegou a grandes praças abertas, tendo o centro lustrosas estátuas negras de homens gordos apertadamente abotoados, e cavalos de batalha empinados, colunas subindo, fontes caindo e pombos revoando. Assim caminhou e caminhou pelas calçadas por entre as casas até sentir muita fome, e alguma coisa agitando-se sobre seu coração repreendeu-a por ter esquecido tudo a seu respeito. Era o seu manuscrito — “O Carvalho”.
Ficou perplexa com sua própria negligência. Parou de repente onde se encontrava. Não havia nenhuma carrua-gem à vista. A rua larga e bonita estava singularmente deserta. Só um senhor idoso se aproximava. Havia algo em seu andar que lhe era vagamente familiar. Quando ele chegou mais perto, ela teve certeza de que o encontrara em alguma outra ocasião. Mas onde? Este cavalheiro tão elegante, tão imponente, tão próspero, com uma bengala na mão e uma flor na lapela, de face gorda e rosada e bigodes brancos penteados, podia ser — sim, por Júpiter, era! — seu velho, seu velho amigo Nick Greene!
Ao mesmo tempo ele olhou para ela; lembrou-se, reconheceu-a.

— Lady Orlando! — gritou, quase varrendo o chão com a cartola.

— Sir Nicholas! — exclamou ela. Pois alguma coisa em seu porte intuitivamente a advertiu de que o escritor vil e subliterato que a satirizara, a ela e a muitos outros, na época da rainha Elizabeth, tinha ascendido no mundo e certamente se tornara um Cavaleiro e sem dúvida, ainda por cima, uma dúzia de outras belas coisas.

Com uma outra reverência, ele confirmou que sua conclusão estava correta; ele era um Cavaleiro; era um doutor em letras; era professor. Era autor de vinte volumes. Em resumo, era o crítico mais influente da era vitoriana.
Um violento tumulto de emoção dominou-a ao encontrar o homem que, havia anos, lhe causara tanto desgosto. Podia este ser o indivíduo importuno, inquieto, que queimara seus tapetes e assara queijo na lareira italiana, e contara histórias divertidas sobre Marlowe e os outros, de que tinham visto o sol nascer nove noites em dez? Estava agora elegantemente vestido, com um terno matinal cinza, tinha uma flor cor-de-rosa na lapela e luvas de camurça cinza para combinar. Mas enquanto ela se assombrava, ele fez outra reverência e perguntou se ela lhe dava a honra de almoçar em sua companhia. A reverência era talvez um pouco excessiva, mas o arremedo de fina educação era aceitável. Ela o acompanhou admirada a um excelente restaurante, tudo de pelúcia vermelha, com toalhas brancas, galheteiros de prata, imaginando como era diferente da velha taverna ou do café, com o seu chão de areia, bancos de madeira, tigelas de ponche e chocolate, seus impressos e suas escarradeiras. Ele pousou as luvas cuidadosamente ao seu lado na mesa. Ela ainda não podia acreditar que fosse o mesmo homem. Suas unhas estavam limpas, quando costumavam medir uma polegada. Seu queixo estava barbeado, onde uma barba negra costumava brotar. Usava abotoaduras de ouro; quando antes seus punhos rasgados mergulhavam na sopa. Na verdade, ela só se convenceu de que era o mesmo homem quando ele pediu o vinho, o que fez com um cuidado que lhe lembrou seu antigo gosto pela malvasia.

— Ah! — disse ele, dando um pequeno suspiro, que era bastante confortador —, ah!, minha querida senhora, os grandes dias da literatura acabaram. Marlowe, Shakespeare, Ben Jonson — aqueles eram gigantes. Dryden, Pope, Addison — aqueles eram heróis. Todos, todos agora estão mortos. E quem eles nos deixaram? Tennyson, Browning, Carlyle! — arrastava um imenso desprezo na voz. — A verdade é que — disse, enchendo um copo de vinho —, é que todos os jovens escritores estão a soldo dos livreiros. Produzem qualquer lixo que lhes sirva para pagar as contas do alfaiate. É uma época — disse, servindo-se do horsd’oeuvre [1] — marcada por conceitos preciosos e experiências extravagantes — nenhum dos quais os elisabetanos teriam tolerado por um instante sequer.
“Não, minha querida senhora”, continuou, aprovando o linguado au gratin [2] que o garçom submetia à sua apreciação, “os grandes dias terminaram. Vivemos tempos degenerados. Devemos cultuar o passado; honrar aqueles escritores — há ainda alguns deles — que tomam a antiguidade por modelo e escrevem não por pagamento mas por...” aqui Orlando quase gritou “Glour!” Na verdade, podia jurar que o ouvira dizer as mesmas coisas trezentos anos antes. Os nomes eram diferentes, é claro, mas o espírito era o mesmo. Nick Greene não mudara nada, apesar de sua nobreza. E, contudo, havia alguma mudança. Pois enquanto discorria sobre as vantagens de se tomar Addison como modelo (antes tinha sido Cícero, pensava ela) e passar as manhãs na cama (o que — ela se orgulhava de pensar — a sua pensão, paga trimestralmente, permitira que ele fizesse), saboreando as melhores obras dos melhores autores uma hora inteira, pelo menos, antes de encostar a pena ao papel, de modo que a vulgaridade do tempo presente e a deplorável condição de nossa língua nativa (devia ter vivido muito tempo na América, acreditava ela) pudessem ser purificadas — enquanto discorria da mesma forma que Greene discorrera trezentos anos antes, ela tinha tempo para se perguntar em que pontos ele mudara. Tinha engordado; mas era um homem beirando os setenta. Ficara polido: a literatura tinha sido uma carreira evidentemente próspera; mas de certo modo a velha agitação, a incômoda vivacidade tinham desaparecido. Suas histórias, embora brilhantes, não possuíam mais o mesmo desembaraço. É certo que ele mencionava “meu caro amigo Pope” ou “o meu ilustre amigo Addison” a cada segundo, mas tinha um ar de respeitabilidade deprimente, e via-se que ele preferia informá-la sobre ditos e feitos de pessoas do mesmo sangue dela a contar-lhe, como fazia antes, escândalos a respeito de poetas.
Orlando ficou indescritivelmente desapontada. Pensara na literatura todos esses anos (a reclusão, a categoria social e o sexo podem ser a sua desculpa) como alguma coisa selvagem como o vento, quente como o fogo, rápida como o raio; algo errante, incalculável, abrupto, e eis que a literatura era um cavalheiro idoso, de terno cinza, falando sobre duquesas. A violência de sua desilusão foi tal que um dos broches ou botões que lhe fechavam a parte superior do vestido rebentou e sobre a mesa caiu o poema “O Carvalho”.

— Um manuscrito! — disse Sir Nicholas, pondo o seu pincenê de ouro. — Como é interessante, como é extraordinariamente interessante! Permita-me vê-lo. — E uma vez mais, depois de um intervalo de trezentos anos, Nicholas Greene tomou o poema de Orlando e, estendendo-o entre as xícaras de café e os cálices de licor, começou a lê-lo. Mas agora o seu veredicto era muito diferente do que fora antes. Lembrava-lhe — enquanto virava as páginas — o Catão, de Addison. Podia ser comparado favoravelmente às Estações, de Thomson Não havia nele qualquer traço do espírito moderno, tinha satisfação em dizer. Fora composto com respeito pela verdade, pela natureza, pelos ditames do coração, o que era raro, na verdade, nestes dias de excentricidade inescrupulosa. Devia, é claro, ser publicado imediatamente.

Na verdade, Orlando não entendeu o que ele queria dizer. Ela sempre carregara o manuscrito consigo, por dentro do vestido. A ideia divertiu Sir Nicholas consideravelmente. “Mas e os direitos autorais?”, perguntou ele.
A mente de Orlando voou para o Palácio de Buckingham e para alguns obscuros potentados que estavam hospedados lá.
Sir Nicholas divertia-se muito. Explicou que estava aludindo ao fato de que os senhores... (aqui mencionou uma famosa firma de editores) teriam muito prazer, se ele lhes escrevesse uma linha, de incluir a obra em seu catálogo. Ele provavelmente poderia conseguir uma percentagem de dez por cento em todas as cópias, até dois mil exemplares; depois disso, será 15. Quanto aos críticos, ele escreveria uma linha ao sr. ... que era o mais influente; depois, um cumprimento — dizer um pequeno elogio de seus próprios poemas — dirigido à esposa do editor de... não faria nenhum mal. Faria uma visita... Assim continuou. Orlando não compreendeu nada disso tudo e, por sua experiência anterior, não confiou naquela boa-fé, mas não havia nada a fazer senão submeter-se ao que era evidentemente o seu desejo e o desejo fervoroso do próprio poema. De modo que Sir Nicholas embrulhou cuidadosamente o manuscrito manchado de sangue; achatou-o no bolso do peito para que não perturbasse a linha de seu casaco; e, com muitos cumprimentos de um lado e de outro, se separaram.
Orlando subiu a rua. Agora que o poema tinha partido — e sentia um vazio no peito, no lugar onde costumava levá-lo —, não tinha nada a fazer senão refletir sobre o que quisesse — talvez sobre os extraordinários acasos da vida humana. Aqui estava ela, na St. James Street; uma mulher casada, com uma aliança no dedo; onde tinha sido antes um café era agora um restaurante; era cerca de três e meia da tarde; o sol brilhava; havia três pombos; um cachorro mestiço; dois tróleis de aluguel e um landó. O que era então a vida? O pensamento penetrou-lhe a cabeça violentamente e de forma inoportuna (a não ser que o velho Greene tivesse sido a causa disso). E pode ser tomado como um comentário adverso ou favorável, conforme o leitor escolha sobre as suas relações com o marido (que estava no cabo Horn) que quando alguma coisa penetrava violentamente em sua cabeça ela ia diretamente para o posto telegráfico mais próximo e lhe telegrafava. Havia um, por acaso, bem à mão. “Meu Deus Shel” telegrafou, “vida literatura Greene bajulador” — e aqui passou para uma linguagem cifrada que eles tinham inventado entre si, de modo que um estado de espírito demasiadamente complexo pudesse ser transmitido em uma ou duas palavras, sem que o telegrafista percebesse, e acrescentou as palavras “Rattigan Glumphoboo”, que o resumia com precisão. Pois não apenas os acontecimentos da manhã tinham lhe causado uma profunda impressão mas também não deve ter escapado à atenção do leitor que Orlando estava crescendo — o que não necessariamente significa ficar melhor — e o “Rattigan Glumphoboo” descrevia um estado de espírito muito complicado — o que o leitor pode descobrir por si, desde que coloque toda a sua inteligência a nosso serviço.
Não podia haver resposta ao seu telegrama por algumas horas; de fato, era provável, pensou, olhando para o céu, onde as altas nuvens corriam apressadas, que houvesse uma ventania no cabo Horn, de modo que seu marido poderia estar no mastro principal ou cortando algum mastro despedaçado ou mesmo sozinho em um bote com um biscoito. E assim, deixando o correio, foi se divertir numa loja próxima, que era uma loja tão comum em nossos dias que não precisa de descrição, contudo, aos seus olhos, extremamente estranha; uma loja onde se vendiam livros. Toda a sua vida, Orlando conhecera manuscritos; tivera nas mãos as folhas pardas e ásperas em que Spencer escrevera seus pequenos garranchos; vira a escrita de Shakespeare e de Milton. Possuía na verdade um bom número de inquartos e de in-folios, tendo alguns deles um soneto em sua homenagem e outros uma mecha de cabelos. Mas estes inúmeros pequenos volumes brilhantes, idênticos, efêmeros, pois pareciam encadernados em papelão e impressos em papel de seda, surpreenderam-na infinitamente. As obras completas de Shakespeare custavam meia coroa e podiam ser levadas no bolso. É verdade que dificilmente se podia ler, pois o tipo era tão minúsculo, mas ainda não deixava de ser uma maravilha. “Obras”
— as obras de cada escritor que ela conhecera ou de quem ouvira falar espalhavam-se de uma ponta a outra nas longas prateleiras. Nas mesas e cadeiras, mais “obras” estavam empilhadas e misturadas, e estas, ela viu, virando uma ou duas páginas, que eram frequentemente obras sobre outras obras, por Sir Nicholas e um naipe de outros, que ela, em sua ignorância, supôs, desde que estavam impressos e encadernados, serem também grandes escritores. Assim, fez ao livreiro um pedido espantoso: que lhe mandasse tudo o que fosse importante em sua loja, e saiu.
Dobrou no Hyde Park, que já conhecia de antigamente (debaixo daquela árvore bifurcada, lembrava-se, o duque de Hamilton caíra trespassado por Lorde Mohun), e seus lábios, que muitas vezes são culpados, começaram a moldar as palavras de seu telegrama num estribilho sem sentido: vida literatura Greene bajulador Rattigan Glumphoboo, de modo que vários guardas do parque olharam para ela desconfiados e só se inclinaram a uma opinião favorável sobre a sua sanidade mental observando o colar de pérolas que usava. Trouxera da livraria um maço de jornais e revistas e finalmente, apoiada no cotovelo, debaixo de uma árvore, espalhou essas páginas em redor de si e fez o possível para compreender a nobre arte da composição em prosa, tal como a praticavam esses mestres. Porque a sua antiga credulidade ainda estava viva, e até mesmo os caracteres manchados de um jornal semanal assumiam alguma santidade aos seus olhos. Assim, leu, apoiada no cotovelo, um artigo de Sir Nicholas sobre as obras completas de um homem que ela conhecera — John Donne. Mas sentara-se, sem saber, não longe da Serpentina. O latido de mil cachorros soava em seus ouvidos. Rodas de carruagens rolavam incessantemente em um círculo. As folhas suspiravam no alto. De vez em quando uma saia bordada e um par de calças vermelhas justas atravessavam o gramado a poucos passos dela. Uma gigantesca bola de borracha bateu violentamente em seu jornal, certa vez. Violeta, alaranjadas, vermelhas e azuis, rompiam os interstícios das folhas e cintilavam na esmeralda em seu dedo. Lia uma frase e olhava para o céu; levantava os olhos para o céu e depois abaixava-os sobre o jornal. Vida? Literatura? Converter uma na outra? Mas que dificuldade monstruosa! Pois — agora vinha um par de calças vermelhas justas — como Addison teria escrito isso? Ali vinham dois cachorros dançando nas patas traseiras. Como Lamb os teria descrito? Pois, lendo Sir Nicholas e seus amigos (como fazia nos intervalos em que deixava de olhar em torno de si), ela teve a impressão — aqui levantou-se e andou — de que eles provocavam uma sensação extremamente desconfortável — de que nunca nunca se deveria dizer o que se pensava. (Estava às margens da Serpentina. Era cor de bronze: botes leves como aranhas deslizavam de um lado para outro.) Eles provocavam a sensação, continuava ela, de que se deve sempre sempre escrever como outra pessoa. (Lágrimas se formaram em seus olhos.) Pois, na verdade, pensava empurrando um barquinho com a ponta do pé, eu não creio que pudesse (aqui o artigo completo de Sir Nicholas apareceu à sua frente como fazem os artigos, dez minutos depois de serem lidos, com uma visão de seu quarto, sua cabeça, seu gato, sua mesa de trabalho e a hora do dia também), eu não creio que pudesse, continuou, considerando o artigo desse ponto de vista, me sentar num gabinete — não, não é um gabinete, é uma espécie de sala de visitas mofada — o dia inteiro, e conversar com jovens e contar-lhes pequenas anedotas, que eles não devem repetir, a respeito do que Dupper disse de Smiles; e então, continuou, chorando amargamente, eles são todos tão viris; e além disso eu detesto duquesas; e não gosto de bolo; e, embora seja bastante maliciosa, não conseguirei nunca aprender a ser tão maliciosa quanto eles — assim, como poderei ser crítica e escrever a melhor prosa inglesa da minha época? Que se danem!, exclamou, empurrando um vaporzinho tão vigorosamente que o pobre barquinho quase naufragou nas ondas cor de bronze.
Mas a verdade é que quando se está num certo estado de espírito (como dizem as amas) — e as lágrimas ainda permaneciam nos olhos de Orlando —, aquilo que se está olhando se torna não aquilo mesmo, mas outra coisa, maior e muito mais importante, sem deixar de ser a mesma coisa. Se se olha para a Serpentina nesse estado de espírito, as ondas se tornam tão grandes quanto as ondas do Atlântico; os barcos de brinquedo não se distinguem dos transatlânticos. Assim, Orlando confundiu o barco de brinquedo com o brigue de seu marido; e a onda que fez com o pé, com uma montanha de água do cabo Horn; e, ao observar o barco de brinquedo galgar a ondulação, pensou ver o navio de Bonthrop galgando mais e mais alto uma parede de vidro; mais e mais alto subia, e uma crista branca, com mil mortos dentro, se arqueou sobre ele, e entre os mil mortos se foi e desapareceu — “Afundou!”, ela gritou em agonia — e então eis que de novo estava ele navegando são e salvo entre os patos, do outro lado do Atlântico.
“Êxtase!”, gritou. “Êxtase! Onde é o correio?”, se perguntou, “pois preciso telegrafar a Shel imediatamente e contar-lhe...” E, repetindo alternadamente “um barco de brinquedo na Serpentina” e “êxtase” — pois os pensamentos eram permutáveis e significavam exatamente a mesma coisa —, apressou o passo em direção a Park Lane.
“Um barco de brinquedo, um barco de brinquedo, um barco de brinquedo”, repetia, reforçando em si mesma a ideia de que não são os artigos de Nick Greene sobre John Donne, nem as leis das oito horas, nem convenções, nem as leis sobre a segurança dos operários que importam; é uma coisa inútil, repentina, violenta; algo que custa uma vida; vermelho, azul, púrpura; um espírito; um esguicho; como aqueles jacintos (ela estava passando por um belo canteiro deles); livres de mácula, de dependência, da sujeira da humanidade ou de preocupação com os seus semelhantes; algo impetuoso, ridículo, como o meu jacinto, quer dizer, marido, Bonthrop: isso é que importa — um barco de brinquedo na Serpentina, êxtase — é o êxtase que importa. Assim falava, esperando a passagem das carruagens em Stanhope Gate, pois a consequência de não viver com o marido senão quando o vento declina é falar absurdos em voz alta em Park Lane. Sem dúvida seria diferente se vivesse o ano inteiro com ele, como recomendava a rainha Vitória. Mas, assim, o pensar nele caía sobre ela como um raio. Achava absolutamente necessário falar com ele de imediato. Não se importava o mínimo que isso fosse um absurdo nem que pudesse causar deslocamento na narrativa. O artigo de Nick Greene mergulhara-a nas profundezas do desespero; o barco de brinquedo elevara-a aos píncaros da alegria. Assim repetia: “êxtase, êxtase”, enquanto esperava para atravessar.
Mas o tráfego era intenso naquela tarde de primavera e deixou-a ali parada, repetindo, êxtase, êxtase, ou um barco de brinquedo na Serpentina, enquanto a riqueza e o poder da Inglaterra sentavam-se como que esculpidos, de chapéu e capa, em carruagens de quatro cavalos, vitórias e landós. Era como se um rio de ouro tivesse coagulado e se amontoado em blocos de ouro ao longo de Park Lane. As senhoras seguravam entre os dedos estojos de cartões de visitas; os cavalheiros balançavam entre os joelhos bengalas de castão de ouro. Ali ficou, mirando, admirando, chocada. Um único pensamento a perturbava, pensamento familiar àqueles que contemplam grandes elefantes ou baleias de incrível magnitude: como será que esses leviatãs — aos quais obviamente repugnam esforço, mudança e atividade — propagam sua espécie? Talvez — Orlando pensava, olhando para as faces tranquilas e majestosas — seu tempo de propagação tenha terminado; isto é o fruto; isto é a consumação. O que ela contemplava agora era o triunfo de uma época. Ali sentavam-se, imponentes e esplêndidos. Mas, agora, o guarda abaixara a mão; o rio tornou-se líquido; o conglomerado maciço de esplêndidos objetos se moveu, se dispersou e desapareceu por Piccadilly.
Assim, ela atravessou Park Lane e foi para a sua casa em Curzon Street, onde, quando a olmeira floria, podia se lembrar da voz de um maçarico e de um homem muito velho com uma espingarda.


continua pag 113...
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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (b) ... Neste momento
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[1] Em francês no original: entradas servidas antes dos pratos principais de uma refeição.
(N.E.)
[2] Em francês no original: gratinado. (N.E.)

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