Cem Anos de Solidão
Gabriel Garcia Márquez
(11.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
— Vamos ver — dizia a ele — me conte de que cor está vestido São
Rafael Arcanjo.
Dessa forma, o menino lhe dava a informação que lhe negavam os
olhos e muito antes que ele partisse para o seminário Úrsula já podia
distinguir pela textura as diferentes cores da roupa dos santos. As vezes
aconteciam acidentes imprevistos. Uma tarde, estava Amaranta bordando
na varanda das begônias e Úrsula tropeçou nela.
— Pelo amor de Deus — protestou Amaranta — veja por onde anda.
— É você — disse Úrsula — quem está sentada onde não deve.
Para ela, estava certo. Mas naquele dia começou a se dar conta de
alguma coisa que ninguém havia descoberto e era que no transcurso do ano
o sol ia mudando imperceptivelmente de posição e quem se sentava na
varanda tinha que ir mudando de lugar pouco a pouco e sem o perceber. A
partir de então, Úrsula tinha apenas que se lembrar da data para saber o
lugar exato em que Amaranta estava sentada. Embora o tremor das mãos
fosse cada vez mais perceptível e já não pudesse com o peso dos pés, nunca
se vira a sua figura miudinha em tantos lugares ao mesmo tempo. Era quase
tão diligente como quando arcava com toda a responsabilidade da casa.
Entretanto, na impenetrável solidão da velhice, dispunha de tal
clarividência para examinar mesmo os mais insignificantes acontecimentos
da família que pela primeira vez viu com clareza as verdades que as suas
ocupações de outros tempos lhe haviam impedido de ver. Na época em que
preparavam José Arcadio para o seminário, já tinha feito uma recapitulação
infinitesimal da vida da casa desde a fundação de Macondo e havia mudado
completamente a opinião que tivera dos seus descendentes. Percebeu que o
Coronel Aureliano Buendía não tinha perdido o afeto à família por causa do
endurecimento da guerra, como ela acreditava antes, mas que nunca tinha
amado ninguém, nem sequer a sua esposa Remedios ou as incontáveis
mulheres de uma noite que haviam passado pela sua vida e muito menos
ainda os seus filhos. Vislumbrou que não tinha feito tantas guerras por
idealismo, como todo mundo pensava, nem tinha renunciado à vitória
iminente por cansaço, como todo mundo pensava, mas que tinha ganho e
perdido pelo mesmo motivo, por pura e pecaminosa soberba. Chegou à
conclusão de que aquele filho por quem ela teria dado a vida era
simplesmente um homem incapacitado para o amor. Uma noite, quando o
tinha no ventre, ouviu-o chorar. Era um lamento tão definido que José
Arcadio Buendía acordou do seu lado e se alegrou com a ideia de que a
criança ia ser ventríloqua. Outras pessoas prognosticaram que seria adivinho.
Ela, pelo contrário, estremeceu com a certeza de que aquele bramido
profundo era um primeiro indício do temível rabo de porco e rogou a Deus
que lhe deixasse morrer a criatura no ventre. Mas a lucidez da velhice lhe
permitiu ver, e assim o repetiu muitas vezes, que o choro das crianças no
ventre da mãe não é um anúncio de ventriloquia nem de faculdade
adivinhatória, mas um sinal inequívoco de incapacidade para o amor. Aquela
desvalorização da imagem do filho despertou-lhe de uma vez toda a
compaixão que estava devendo a ele. Amaranta, pelo contrário, cuja dureza
de coração a espantava, cuja concentrada amargura a amargava, foi
revelada no último exame como a mulher mais terna que jamais pudesse
haver existido e compreendeu com uma penosa clarividência que as injustas
torturas a que submetera Pietro Crespi não eram ditadas por uma vontade
de vingança, como todo mundo pensava, nem o lento martírio com que
frustrara a vida do Coronel Gerineldo Márquez tinha sido determinado pelo
fel ruim da sua amargura, como todo mundo pensava, mas sim que ambas as
ações tinham sido uma luta de morte entre um amor sem medidas e uma
covardia invencível, e triunfara finalmente o medo irracional que Amaranta
sempre tivera do seu próprio e atormentado coração. Foi por essa época que
Úrsula começou a se referir a Rebeca, a evocá-la com um velho carinho
exaltado pelo arrependimento tardio e pela admiração repentina, tendo
compreendido que somente ela, Rebeca, a que nunca se alimentara do seu
leite e sim da terra e da cal das paredes, a que não levara nas veias o sangue
do seu sangue e sim o sangue desconhecido de desconhecidos cujos ossos
continuavam chocalhando na tumba, Rebeca, a do coração impaciente, a do
ventre arrebatado, era a única que tinha tido a valentia sem freios que
Úrsula desejara para a sua estirpe.
— Rebeca — dizia, tateando as paredes — que injustos nós fomos com
você!
Em casa, simplesmente acreditavam que tresvariava, sobretudo desde
que dera para andar com o braço direito levantado, como o Arcanjo Gabriel.
Fernanda se deu conta, entretanto, de que havia um sol de clarividência nas
sombras desse desvario, pois Úrsula podia dizer sem titubear quanto dinheiro
se havia gasto em casa durante o último ano. Amaranta teve uma ideia
semelhante certo dia em que a mãe mexia na cozinha uma panela de sopa e
disse de repente, sem saber que estava sendo ouvida, que o moinho de fubá
que haviam comprado dos primeiros ciganos, e que havia desaparecido
desde antes que José Arcadio desse sessenta e cinco vezes a volta ao mundo,
ainda estava na casa de Pilar Ternera. Também quase centenária, mas sã e
ágil apesar da inconcebível gordura que espantava as crianças como em
outros tempos a sua risada espantava os pombos, Pilar Ternera não se
surpreendeu com o acerto de Úrsula, porque a sua própria experiência
começava a indicar que uma velhice alerta pode ser mais sagaz que as
averiguações das cartas.
Entretanto, quando Úrsula percebeu que o tempo não lhe havia
chegado para consolidar a vocação de José Arcadio deixou-se aturdir pela
consternação. Começou a cometer erros tentando ver com os olhos as coisas
que a intuição lhe permitia ver com maior claridade. Certa manhã jogou na
cabeça do menino o conteúdo de um tinteiro, pensando que era água-de-colônia. Ocasionou tantas dificuldades com a teimosia de intervir em tudo,
que se sentiu transtornada por crises de mau humor, e tentava vencer as
trevas que finalmente a estavam tolhendo como uma camisa de teias de
aranha. Foi então que lhe ocorreu que a sua inabilidade não era a primeira
vitória da decrepitude e da escuridão, mas uma falha do tempo. Pensava
que antigamente, quando Deus não fazia com os meses e os anos as mesmas
trapaças que faziam os turcos ao medir uma jarda de percal, as coisas eram
diferentes. Agora não apenas as crianças cresciam mais depressa, mas até os
sentimentos evoluíam de outro modo. Nem bem Remedios, a bela, subira ao
céu de corpo e alma, já Fernanda, sem consideração, andava resmungando
pelos cantos que ela levara os lençóis. Nem bem haviam esfriado os corpos
dos Aurelianos nas tumbas e já Aureliano Segundo tinha outra vez a casa
tomada, cheia de bêbados que tocavam acordeão e se encharcavam de
champanha, como se não tivessem morrido cristãos e sim cachorros, e como
se aquela casa de loucos, que tantas dores de cabeça e tantos animaizinhos
de caramelo tinha custado, estivesse predestinada a se converter numa
lixeira de perdição. Lembrando-se destas coisas enquanto aprontavam o baú
de José Arcadio, Úrsula se perguntava se não era preferível se deitar logo de
uma vez na sepultura e lhe jogarem a terra por cima, e perguntava a Deus,
sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para
suportar tantas penas e mortificações; e perguntando e perguntando ia
atiçando a sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar
e não ter papas na língua como um forasteiro e de se permitir afinal um
instante de rebeldia, o instante tantas vezes desejado e tantas vezes adiado,
para cortar a resignação pela raiz e cagar de uma vez para tudo e tirar do
coração os infinitos montes de palavrões que tivera que engolir durante um
século inteiro de conformismo.
— Porra! — gritou.
— Porra! — gritou.
Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela
tinha sido picada por um escorpião.
— Onde está? — perguntou alarmada.
— O quê?
— O animal! — esclareceu Amaranta.
Úrsula pôs o dedo no coração.
— Aqui — disse.
Leia também:
Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Cem Anos de Solidão (2.1) - A nova casa...
Cem Anos de Solidão (3.1) - ... puberdade antes de superar os hábitos infantis
Cem Anos de Solidão (4.1) - ... O CORONEL AURELIANO BUENDÍA
Cem Anos de Solidão (5.1) - ... Em maio terminou a guerra
continua página 157...
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Cem Anos de Solidão (11.1) - No aturdimento dos últimos anos
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