sábado, 25 de março de 2023

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (9.1) - O casamento

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(9.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío




O CASAMENTO ESTEVE prestes a naufragar aos dois meses de idade, porque Aureliano Segundo, tentando aplacar Petra Cotes, fê-la tirar um retrato vestida de rainha de Madagáscar. Quando Fernanda soube, tornou a arrumar as arcas do enxoval de recém-casada e partiu de Macondo sem se despedir. Aureliano Segundo alcançou-a na estrada do pantanal. Ao fim de muitas súplicas e promessas de emenda, conseguiu levá-la de volta para casa e abandonou a concubina.

Petra Cotes, consciente da sua força, não demonstrou preocupação. Ela o fizera homem. Ainda menino o tirara do quarto de Melquíades, com a cabeça cheia de ideias fantásticas e sem nenhum contato com a realidade, e lhe dera um lugar no mundo. A natureza o tinha feito reservado e esquivo, com tendência para a meditação solitária, e ela lhe havia moldado o temperamento oposto, vital, expansivo, aberto, e lhe havia infundido a alegria de viver e o prazer da farra e da dissipação, até convertê-lo, por dentro e por fora, no homem com quem havia sonhado para si desde a adolescência. Casara-se, pois, como mais cedo ou mais tarde os filhos se casam. Ele não ousou lhe antecipar a notícia. Assumiu uma atitude tão infantil diante da situação que fingia falsos rancores e ressentimentos imaginários, procurando um modo de ser Petra Cotes quem provocasse o rompimento. Um dia em que Aureliano lhe fez uma censura injusta, ela descobriu o jogo e pôs as coisas no seu devido lugar.

— O que acontece — disse — é que você quer se casar com a rainha.

Aureliano Segundo, envergonhado, fingiu um ataque de raiva, declarou-se incompreendido e ultrajado, e não voltou a visitá-la. Petra Cotes, sem perder por um só instante o seu magnífico domínio de fera em repouso, ouviu a música e os foguetes do casamento, a barulhada enlouquecedora da festança pública, como se tudo isso não fosse nada além de uma nova travessura de Aureliano Segundo. Aos que se compadeceram da sua sorte, tranquilizou-os com um sorriso. “Não se preocupem”, disse’. “As rainhas sempre cumprem as minhas ordens.” A uma vizinha que lhe trouxe umas velas para que iluminasse com elas o retrato do amante perdido, disse com segurança enigmática:

— A única vela que o fará vir está sempre acesa.

Tal como ela havia previsto, Aureliano Segundo voltou à sua casa imediatamente após a lua-de-mel. Trouxe os seus companheiros de sempre, um fotógrafo ambulante, e a roupa e a capa de arminho suja de sangue que Fernanda usara no carnaval. No calor da farra que se armou essa tarde, vestiu Petra Cotes de rainha, coroou-a soberana absoluta e vitalícia de Madagascar e distribuiu cópias do retrato entre os seus amigos. Ela não só se prestou à brincadeira como também se compadeceu intimamente dele, pensando que devia estar muito assustado quando imaginou aquele extravagante recurso de reconciliação. Às sete da noite, ainda vestida de rainha, recebeu-o na cama. Tinha apenas dois meses de casado, mas ela percebeu imediatamente que as coisas não andavam bem no leito nupcial e experimentou o delicioso prazer da vingança consumada. Dois dias depois, entretanto, quando ele não se atreveu a voltar e mandou um intermediário para que resolvesse os termos da separação, ela compreendeu que ia precisar de mais paciência do que a prevista, porque ele parecia disposto a se sacrificar pelas aparências. Mesmo assim não se alterou. Tornou a facilitar as coisas com uma submissão que confirmou a crença generalizada de que ela era uma pobre mulher, e a única lembrança de Aureliano Segundo que conservou foi um par de botinas de verniz que, conforme o que ele mesmo dissera, eram as que queria ter calçadas no ataúde. Guardou-as embrulhadas em trapos no fundo do baú e preparou-se para apascentar uma espera sem desespero. 

— Mais cedo ou mais tarde terá que vir — disse para si mesma — mesmo que seja só para calçar estas botinas.

Não teve que esperar tanto quanto supunha. Realmente, Aureliano Segundo compreendera desde a noite de núpcias que voltaria à casa de Petra Cotes muito antes de que tivesse necessidade de calçar as botinas de verniz: Fernanda era uma mulher perdida para o mundo. Nascera e crescera a mil quilômetros do mar, numa cidade lúgubre por cujas ruelas de pedra chacoalhavam ainda, em noites mal-assombradas, as carruagens dos vice-reis. Trinta e dois campanários davam toques de defunto às seis da tarde. Na casa senhorial ladrilhada de lousas sepulcrais jamais se conhecera o sol. O ar morrera nos ciprestes do pátio, nas pálidas cortinas das alcovas, nas arcadas úmidas do jardim dos nardos. Fernanda não tivera até a puberdade outra notícia do mundo a não ser os melancólicos exercícios de piano executados em alguma casa vizinha por alguém que durante anos e anos se permitiu a liberdade de não fazer a sesta. No quarto da mãe doente, verde e amarela debaixo da empoeirada luz dos vitrais, escutava as escalas metódicas, tenazes, desanimadas, e pensava que essa música estava no mundo, enquanto ela se consumia tecendo coroas de defunto. Sua mãe, suando a febre das cinco, falava do esplendor do passado. Ainda muito menina, numa noite de lua, Fernanda vira uma linda mulher vestida de branco que atravessava o jardim para o oratório. O que mais a angustiou naquela visão fugitiva foi que a sentiu exatamente igual a ela, como se se tivesse visto a si mesma com vinte anos de antecipação “É a tua bisavó, a rainha”, disse-lhe a mãe numa trégua da tosse. “Morreu de um golpe de ar que apanhou ao quebrar um talo de nardo.” Muitos anos depois, quando começou se sentir igual à bisavó, Fernanda pôs em dúvida a visão infância, mas a mãe reprovou a sua incredulidade.

— Somos imensamente ricos e poderosos — disse. — Um dia você será rainha.

Ela acreditou, embora só ocupassem a longa mesa com toalhas de linho e baixela de prata para tomar uma xícara de chocolate com água e um pão doce. Até o dia do casamento sonhou com um reinado de lenda, embora seu pai, D. Fernando, tivesse que hipotecar a casa para lhe comprar o enxoval. Não era ingenuidade nem delírio de grandeza. Fora educada assim. Desde que pôde fazer uso da razão que se lembrava de ter feito as suas necessidades num peniquinho de ouro com o escudo de armas da família. Saiu de casa pela primeira vez aos doze anos, num tílburi que teve apenas que percorrer dois quarteirões para levá-la ao convento. As suas companheiras de estudo se surpreenderam de que a pusessem separada, numa cadeira de espaldar muito alto, e de que não se misturasse com elas nem durante o recreio. “Ela é diferente”, explicavam as freiras. “Vai ser rainha.” As colegas acreditaram, porque já era na época a donzela mais bela, distinta e discreta que tinham visto na vida. Ao fim de oito anos, tendo aprendido a versejar em latim, a tocar o clavicórdio, a conversar sobre falcoaria com os cavalheiros e sobre apologética com os arcebispos, a expor assuntos de estado com os governantes estrangeiros e assuntos de Deus com o Papa, voltou para a casa de seus pais, para tecer coroas de defunto. Encontrou-a desfalcada. Restavam apenas os móveis indispensáveis, os candelabros e a baixela de prata, porque os utensílios domésticos tinham sido vendidos, um a um, para pagar os gastos da sua educação. Sua mãe sucumbira à febre das cinco. Seu pai, D. Fernando, vestido de negro, com um colarinho de babados e uma corrente de ouro atravessada no peito, dava-lhe às segundas-feiras uma moeda de prata para os gastos domésticos e levava as coroas de defunto terminadas na semana anterior. Passava a maior parte do dia trancado no escritório e, nas poucas ocasiões em que saía à rua, voltava antes das seis para acompanhá-la ao rezar o rosário. Nunca manteve amizade íntima com ninguém. Nunca ouviu falar das guerras que sangraram o país. Nunca deixou de ouvir os exercícios de piano às três da tarde. Começava inclusive a perder a esperança de ser rainha quando soaram duas pancadas firmes no portão e ela o abriu para um militar ereto, de gestos cerimoniosos, que tinha uma cicatriz na face e uma medalha de ouro no peito. Fechou-se com o seu pai no escritório. Duas horas depois, o pai foi buscá-la no quarto de costura. “Preparai-vos”, disse. “Tendes que fazer uma longa viagem.” Foi assim que a levaram para Macondo. Num só dia, numa bofetada brutal, a vida jogou-lhe por cima dos ombros todo o peso de uma realidade que durante anos seus pais lhe haviam escondido. De volta a casa, fechou-se no quarto para chorar, indiferente às súplicas e explicações de D. Fernando, tentando apagar a cicatriz daquele embuste inaudito. Prometera a si mesma não abandonar o quarto até a morte, quando Aureliano Segundo chegou para buscá-la. Foi uma sorte incrível, porque no aturdimento da indignação, na fúria da vergonha, ela lhe havia mentido, para que nunca conhecesse a sua verdadeira identidade. As únicas pistas reais de que dispunha Aurelíano Segundo quando saiu para procurá-la eram o seu inconfundível sotaque do páramo e o seu ofício de tecelã de coroas fúnebres. Procurou-a sem descanso. Com a temeridade atroz com que José Arcadio Buendía atravessara a serra para fundar Macondo, com o orgulho cego com que o Coronel Aureliano Buendía promovera as suas guerras inúteis, com a tenacidade insensata com que Úrsula assegurara a sobrevivência da estirpe, assim Aureliano Segundo procurou Fernanda, sem um só instante de desalento. Quando perguntou onde se vendiam coroas de defunto, levaram- no de casa em casa para que escolhesse as melhores. Quando perguntou onde estava a mulher mais bela que já surgira sobre a terra, todas as mães lhe levaram as suas filhas. Perdeu-se nos desfiladeiros da névoa, por tempos reservados ao esquecimento, nos labirintos da desilusão. Atravessou um ermo amarelo onde o eco repetia os pensamentos e a ansiedade provocava miragens premonitórias. Ao fim de semanas estéreis, chegou a uma cidade desconhecida onde todos os sinos tocavam a finados. Embora nunca os tivesse visto, nem ninguém os tivesse descrito, reconheceu imediatamente os muros carcomidos pelo sal dos ossos, as decrépitas varandas de madeiras destripadas pelos fungos, e pregado no portão e quase apagado pela chuva o cartãozinho mais triste do mundo:

VENDEM-SE COROAS FÚNEBRES

Desse momento até a manhã gelada em que Fernanda abandonou a casa aos cuidados da Madre Superiora, mal houve tempo para que as freiras cosessem o enxoval e colocassem em seis baús os candelabros, a baixela de prata e o peniquinho de ouro e os incontáveis e inúteis destroços de uma catástrofe familiar que tardara dois séculos para se consumar. D. Fernando recusou o convite para acompanhá-los. Prometeu ir mais tarde, quando acabasse de liquidar os seus compromissos, e a partir do momento em que deu a bênção à filha voltou a se trancar no escritório, a escrever os bilhetes com as vinhetas de luto e o escudo de armas da família que haveriam de ser o primeiro contato humano que Fernanda e seu pai tiveram em toda a vida. Para ela, esta foi a data real do seu nascimento. Para Aureliano Segundo foi quase ao mesmo tempo o princípio e o fim da felicidade.

Fernanda trazia um lindo calendário com chavinhas douradas em que o seu diretor espiritual marcara com tinta roxa as datas de abstinência venérea. Descontando a Semana Santa, os domingos, as festas de guarda, as primeiras sextas-feiras, os retiros, os sacrifícios e os impedimentos cíclicos, o seu anuário útil ficava reduzido a 42 dias esparzidos num emaranhado de cruzes roxas. Aureliano Segundo, convencido de que o tempo jogaria por terra aquela muralha hostil, prolongou a festa do casamento além do prazo previsto. Cansada de tanto mandar para o lixeiro as garrafas vazias de brandy e de champanha, para que não congestionassem a casa, e ao mesmo tempo intrigada pelo fato de os recém-casados dormirem em horas diferentes e em quartos separados, enquanto continuavam os foguetes e a música e os sacrifícios de reses, Úrsula se lembrou da sua própria experiência e se perguntou se Fernanda não teria também um cinto de castidade que mais cedo ou mais tarde provocaria as zombarias do povo e daria origem a uma tragédia. Mas Fernanda lhe confessou que simplesmente estava deixando passar duas semanas antes de permitir o primeiro contato com o seu esposo. Transcorrido o prazo, com efeito, abriu a porta do seu quarto com a resignação ao sacrifício com que o teria feito uma vítima expiatória, e Aureliano Segundo viu a mulher mais bela da terra, com os seus gloriosos olhos de animal assustado e os longos cabelos cor de cobre estendidos no travesseiro. Tão fascinado estava com a visão que demorou um momento para perceber que Fernanda pusera uma camisola branca, comprida até os tornozelos e com mangas até os punhos, e com um buraco grande e redondo primorosamente caseado na altura do ventre. Aureliano Segundo não pôde reprimir um ataque de riso. 

— Isto é a coisa mais obscena que eu já vi na minha vida — gritou, com uma gargalhada que ressoou pela casa inteira. — Casei-me com uma irmãzinha de caridade.

Um mês depois, não tendo conseguido que a esposa tirasse a camisola, foi fazer o retrato de Petra Cotes vestida de rainha. Mais tarde, quando obteve que Fernanda voltasse para casa, ela cedeu às suas exigências na febre da reconciliação, mas não soube lhe proporcionar o descanso com que ele sonhava quando foi buscá-la na cidade dos trinta e dois campanários. Aureliano Segundo só encontrou nela um profundo sentimento de desolação. Uma noite, pouco antes de nascer o primeiro filho, Fernanda notou que o marido voltara em segredo ao leito de Petra Cotes. 

— É verdade — admitiu ele. E explicou num tom de prostrada resignação: — Tive que fazer isso para que os animais continuassem parindo.

Foi preciso um pouco de tempo para convencê-la de recurso tão esquisito, mas quando por fim o conseguiu, mediante provas que pareceram irrefutáveis, a única promessa que Fernanda lhe impôs foi a de que não se deixasse surpreender pela morte na cama da concubina. Assim continuaram vivendo os três, sem se atrapalhar, Aureliano Segundo pontual e carinhoso com ambas, Petra Cotes se pavoneando com a reconciliação e Fernanda fingindo que ignorava a verdade.

continua página 133...

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