Cem Anos de Solidão
Gabriel Garcia Márquez
(11.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
Numa quinta-feira às duas da tarde, José Arcadio foi para o seminário. Úrsula havia de evocá-lo sempre como o imaginou ao se despedir dele, lânguido e sério e sem derramar uma lágrima, como ela lhe havia ensinado, sufocando de calor dentro do traje de pelúcia verde com botões de cobre e um laço engomado no colarinho. Deixou a sala de jantar impregnada da penetrante fragrância de água-de-colônia que ela lhe jogava na cabeça para poder seguir o seu rastro pela casa. Enquanto durou o almoço de despedida, a família dissimulou o nervosismo com expressões de júbilo e celebrou com exagerado entusiasmo os casos do Padre Antonio Isabel. Mas quando levaram o baú forrado de veludo com cantoneiras de prata foi como se tivessem tirado de casa um ataúde. O único que se negou a participar da despedida foi o Coronel Aureliano Buendía.
— Esta era a última amolação que estava nos faltando — resmungou
— um Papa!
Três meses depois, Aureliano Segundo e Fernanda levaram Meme
para o colégio e voltaram com um cravo que ocupou o lugar da pianola. Foi
por essa época que Amaranta começou a tecer a sua própria mortalha. A
febre da bananeira tinha apaziguado. Os antigos habitantes de Macondo se
achavam segregados pelos estrangeiros, trabalhosamente reduzidos aos seus
precários recursos de antigamente, mas reconfortados em todo caso pela
impressão de terem sobrevivido a um naufrágio. Em casa, continuaram
recebendo convidados para almoçar e, realmente, não se restabeleceu a
antiga rotina enquanto não foi embora, anos depois, a companhia bananeira.
Entretanto, houve mudanças radicais no tradicional sentido de
hospitalidade, porque agora era Fernanda quem impunha as suas leis. Com
Úrsula relegada às trevas e com Amaranta abstraída no trabalho do sudário, a
antiga aprendiz de rainha teve liberdade para selecionar os comensais e lhes
impor as rígidas normas que os pais lhe haviam inculcado. Sua severidade
fez da casa um reduto de costumes restaurados, numa aldeia convulsionada
pela vulgaridade com que os forasteiros desbaratavam as suas fáceis
fortunas. Para ela, sem mais sutilezas, gente de bem era a que não tinha
nada que ver com a companhia bananeira. Até José Arcadio Segundo, seu
cunhado, foi vítima do seu zelo discriminatório, porque no arrebatamento da
primeira hora tornou a leiloar os seus estupendos galos de briga e se
empregou de capataz na companhia bananeira.
— Que não volte a pisar nesta casa — disse Fernanda -enquanto tiver
a sarna dos forasteiros.
Foi tal o recolhimento imposto na casa que Aureliano Segundo se
sentiu definitivamente mais cômodo com Petra Cotes. Primeiro, com o
pretexto de aliviar o trabalho da esposa, transferiu as festas. Em seguida,
com o pretexto de que os animais estavam perdendo a fecundidade,
transferiu os estábulos e as cavalariças. Por último, com o pretexto de que na
casa da concubina fazia menos calor, transferiu o pequeno escritório onde
cuidava dos negócios. Quando Fernanda percebeu que era uma viúva de
marido vivo, já era tarde demais para que as coisas voltassem ao seu estado
anterior. Aureliano Segundo mal comia em casa e as únicas aparências que
continuava guardando, como a de dormir com a esposa, não bastavam para
convencer ninguém. Certa noite, por descuido, a manhã o surpreendeu na
cama de Petra Cotes. Fernanda, ao contrário do que ele esperava, não lhe
fez a menor censura nem soltou o mais leve suspiro de ressentimento, mas
nesse mesmo dia mandou para a casa da concubina os seus dois baús de
roupa. Mandou-os em pleno sol e com ordens para que fossem levados pelo
meio da rua, para que todo mundo os visse, acreditando que o marido
extraviado não pudesse suportar a vergonha e voltasse ao redil com a cabeça
humilhada. Mas aquele gesto heroico foi apenas uma prova a mais de quão
mal Fernanda conhecia não só o gênio de seu marido como também a índole
de uma comunidade que nada tinha que ver com a de seus pais, porque
todos os que viram os baús passarem disseram a si mesmos que afinal essa era
a culminância natural de uma história cujas intimidades ninguém ignorava,
e Aureliano Segundo celebrou a liberdade presenteada com uma farra de
três dias. Para maior desvantagem da esposa, enquanto ela começava a
entrar numa maturidade pesada com as suas sombrias roupas até os
tornozelos, os seus camafeus anacrônicos e o seu orgulho fora do lugar, a
concubina parecia estalar numa segunda juventude, metida em vistosos
trajes de seda natural e com os olhos pintados pela candeia da reivindicação.
Aureliano Segundo voltou a se entregar a ela com a fogosidade da
adolescência, como antes, quando Petra Cotes não o amava por ele mesmo,
mas porque o confundia com o seu irmão gêmeo e se deitava com ambos ao
mesmo tempo, pensando que Deus lhe dera a fortuna de ter um homem
que fazia o amor como se fossem dois. Era tão premente a paixão restaurada
que em mais de uma ocasião eles se olharam nos olhos quando se dispunham
a comer e, sem se dizerem nada, tamparam os pratos e foram morrer de
fome e de amor no quarto. Inspirado nas coisas que tinha visto nas suas
furtivas visitas às matronas francesas, Aureliano Segundo comprou para
Petra Cotes uma cama com dossel de arcebispo e pôs cortinas de veludo nas
janelas e cobriu o teto e as paredes do quarto com grandes espelhos de cristal
de rocha. Era visto então como mais farrista e desmiolado do que nunca.
Pelo trem, que chegava todos os dias às onze, recebia caixas e mais caixas de
champanha e de conhaque. Na volta da estação arrastava para a cumbia [1] improvisada quanto ser humano encontrava pelo caminho, nativo ou
forasteiro, conhecido ou por conhecer, sem distinções de nenhuma espécie.
Até o fugidio Sr. Brown, que só conversava em língua estranha, deixou-se
seduzir pelos tentadores gestos que lhe fazia Aureliano Segundo e várias
vezes se embebedou para morrer na casa de Petra Cotes e fez até com que os
ferozes cães policiais que o acompanhavam a todas as partes dançassem
canções texanas que ele mesmo mastigava de qualquer maneira ao compasso
do acordeão.
— Afastem-se vacas — gritava Aureliano Segundo no paroxismo da
festa. — Afastem-se que a vida é curta.
Nunca teve melhor semblante, nem foi mais querido, nem esteve mais
arrebatada a parição dos seus animais. Sacrificaram-se tantas reses, tantos
porcos e galinhas nas intermináveis festas que a terra se tornou negra e
lodosa de tanto sangue. Aquilo era um eterno depósito de ossos e tripas, um
monturo de sobras, e tinha que se estar queimando cartuchos de dinamite a
toda hora para que os urubus não bicassem os olhos dos convidados.
Aureliano Segundo tornou-se gordo, violáceo, atartarugado, em
consequência de um apetite somente comparável ao de José Arcadio
quando regressara da volta ao mundo. O prestígio da sua desenfreada
voracidade, da sua imensa capacidade de esbanjamento, da sua
hospitalidade sem precedentes ultrapassou os limites do pantanal e atraiu os
glutões melhor qualificados do litoral. De todas as partes chegavam comilões
fabulosos para tomar parte nos irracionais torneios de capacidade e
resistência que se organizavam na casa de Petra Cotes. Aureliano Segundo
foi o garfo invicto até o sábado de infortúnio em que apareceu Camila
Sagastume, uma fêmea totêmica conhecida no país inteiro pelo bom nome
de A Elefanta. O duelo se prolongou até o amanhecer de terça-feira. Nas
primeiras vinte e quatro horas, tendo despachado uma vitela com aipim,
inhame e banana assada e além disso uma caixa e meia de champanha,
Aureliano Segundo estava certo da vitória. Via-se mais entusiasta, mais vital
que a imperturbável adversária, possuidora de um estilo evidentemente mais
profissional, mas por isso mesmo menos emocionante para o amontoado
público que entupiu a casa. Enquanto Aureliano Segundo comia às
dentadas, desbocado pela ansiedade do triunfo, A Elefanta seccionava a
carne com a arte de um cirurgião e a comia sem pressa e até com um certo
prazer. Era gigantesca e maciça, mas contra a corpulência colossal prevalecia
a ternura da feminilidade e tinha um rosto tão formoso, umas mãos tão finas
e bem cuidadas, e um encanto pessoal tão irresistível que quando Aureliano
Segundo a viu entrar em casa comentou em voz baixa que teria preferido
não fazer o torneio na mesa e sim na cama. Mais tarde, quando a viu
consumir o lombo da vitela sem violar uma só regra da melhor urbanidade,
comentou seriamente que aquele delicado, fascinante e insaciável
proboscídeo era de certa maneira a mulher ideal. Não estava enganado. A
fama de chata que precedeu A Elefanta carecia de fundamento. Não era
trituradora de bois, nem mulher barbada num circo grego, como se dizia,
mas diretora de uma academia de canto. Tinha aprendido a comer sendo já
uma respeitável mãe de família, procurando um método para que os seus
filhos se alimentassem melhor e não por meio de estimulantes artificiais do
apetite, mas por meio da absoluta tranquilidade do espírito. A sua teoria,
demonstrada na prática, se fundamentava no princípio de que uma pessoa
que tivesse perfeitamente arrumados os assuntos da sua consciência podia
comer sem trégua até que o cansaço a vencesse. De modo que foi devido a
razões morais, e não por interesse esportivo, que deixou a academia e o lar
para competir com um homem cuja fama de grande comilão sem princípios
tinha dado a volta ao país. Desde a primeira vez que o viu, percebeu que
Aureliano Segundo não seria traído pelo estômago, mas pelo temperamento.
Ao fim da primeira noite, enquanto A Elefanta continuava impávida,
Aureliano Segundo estava se esgotando de tanto falar e rir. Dormiram quatro
horas. Ao acordar, cada um bebeu o suco de cinquenta laranjas, oito litros de
café e trinta ovos crus. Na segunda madrugada, depois de muitas horas sem
dormir e tendo despachado dois porcos, um cacho de bananas e quatro
caixas de champanha, A Elefanta suspeitou que Aureliano Segundo, sem o
saber, tinha descoberto o mesmo método que ela, mas pelo caminho absurdo
da irresponsabilidade total. Era, pois, mais perigoso do que ela pensara.
Entretanto, quando Petra Cotes trouxe para a mesa dois perus assados,
Aureliano Segundo estava a um passo da congestão.
— Se não aguenta, não coma mais — disse A Elefanta.
— Ficamos empatados.
Disse isso de coração, compreendendo que também ela não podia
comer mais sequer um bocado, pelo remorso de estar propiciando a morte do
adversário. Mas Aureliano Segundo interpretou aquilo como um novo desafio
e engoliu o peru até muito além da sua incrível capacidade. Perdeu a
consciência. Caiu de bruços sobre o prato de ossos, espumando pela boca
como um cão raivoso e sufocando em grunhidos de agonia. Sentiu, em meio
às trevas, que o atiravam do alto de uma torre para um precipício sem fundo
e, num último clarão de lucidez, percebeu que no fim daquela interminável
queda a morte o estava esperando.
— Levem-me para junto de Fernanda — conseguiu dizer.
Os amigos que o deixaram em casa acreditaram que ele havia
cumprido a promessa à esposa de não morrer na cama da concubin a. Petra
Cotes havia engraxado as botinas de verniz que ele queria calçar no ataúde e
já estava procurando alguém que as levasse quando vieram lhe dizer que
Aureliano Segundo estava fora de perigo. Restabeleceu-se, efetivamente, em
menos de uma semana, e quinze dias depois estava celebrando com uma
festança sem precedentes o acontecimento da sobrevivência. Continuou
vivendo na casa de Petra Cotes, mas visitava Fernanda todos os dias e às
vezes ficava para almoçar com a família, como se o destino tivesse invertido a
situação e o tivesse deixado como esposo da concubina e amante da esposa.
Foi um descanso para Fernanda. No tédio do abandono, as suas únicas
distrações eram os exercícios de clavicórdio na hora da sesta e as cartas dos
seus filhos. Nas detalhadas missivas que lhes mandava de quinze em quinze
dias, não havia uma só linha de verdade. Ocultava-lhes os sofrimentos.
Escamoteava-lhes a tristeza de uma casa que apesar da luz sobre as begônias,
apesar da sufocação das duas da tarde, apesar das frequentes brisas de festa
que chegavam da rua, ficava cada vez mais parecida com a mansão colonial
de seus pais. Fernanda vagava sozinha entre três fantasmas vivos e o
fantasma morto de José Arcadio Buendía, que às vezes vinha se sentar com
uma atenção inquisitiva na penumbra da sala enquanto ela tocava cravo. O
Coronel Aureliano Buendía era uma sombra. Desde a última vez que saiu à
rua para propor uma guerra sem futuro ao Coronel Gerineldo Márquez, mal
abandonava a oficina para urinar debaixo do castanheiro. Não recebia outra
visita senão a do barbeiro, de três em três semanas. Alimentava-se de
qualquer coisa que Úrsula levasse para ele uma vez por dia e, embora
continuasse fabricando peixinhos de ouro com a mesma paixão de
antigamente, deixou de vendê-los quando percebeu que as pessoas não os
compravam como joias, mas como relíquias históricas. Tinha feito no quintal
uma fogueira com as bonecas de Remedios, que decoravam o seu quarto
desde o dia do casamento. A vigilante Úrsula percebeu o que o filho estava
fazendo, mas não pôde impedir.
— Você tem um coração de pedra — disse a ele.
— Isto não é caso do coração — disse ele. — O quarto está ficando
cheio de traças.
Amaranta tecia a sua mortalha. Fernanda não entendia por que ela
escrevia cartas ocasionais a Meme e até lhe mandava presentes, mas, pelo
contrário, não queria nem ouvir falar de José Arcadio. “Vão morrer sem saber
por que, respondeu Amaranta quando ela lhe fez a pergunta através de
Úrsula, e aquela resposta semeou no seu coração um enigma que nunca
pôde esclarecer. Alta, espigada, altiva, sempre vestida com abundantes
anáguas de escumilha e com um ar de distinção que resistia aos anos e às
más recordações, Amaranta parecia trazer na testa a cruz da virgindade.
Realmente a trazia na mão, na venda negra que não tirava nem para dormir
e que ela mesma lavava e passava. Sua vida se escoava a bordar o sudário.
Afirmava-se que bordava durante o dia e desbordava durante a noite, e não
com a esperança de vencer deste modo a solidão, mas, ao contrário, para
sustentá-la.
Leia também:
Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Cem Anos de Solidão (2.1) - A nova casa...
Cem Anos de Solidão (3.1) - ... puberdade antes de superar os hábitos infantis
Cem Anos de Solidão (4.1) - ... O CORONEL AURELIANO BUENDÍA
Cem Anos de Solidão (5.1) - ... Em maio terminou a guerra
continua página 161...
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