Gabriel Garcia Márquez
(11.3)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
A maior preocupação que tinha Fernanda nos seus anos de abandono era de que Meme viesse passar as primeiras férias e não encontrasse Aureliano Segundo em casa. A congestão pôs fim a esse temor. Quando Meme voltou, seus pais se tinham posto de acordo não só para que a menina acreditasse que Aureliano Segundo continuava sendo um esposo domesticado, como também para que ela não notasse a tristeza da casa. Todos os anos, durante dois meses, Aureliano Segundo representava o papel de marido exemplar e promovia festas com sorvetes e biscoitinhos, que a alegre e vivaz estudante amenizava com o cravo. Era já evidente que tinha herdado muito pouco do temperamento da mãe. Parecia mais uma segunda versão de Amaranta, quando esta ainda não conhecia a amargura e andava alvoroçando a casa com os seus passos de dança, aos doze, aos quatorze anos, antes que a paixão secreta por Pietro Crespi torcesse definitivamente o rumo do seu coração. Mas, ao contrário de Amaranta, ao contrário de todos, Meme não revelava ainda a sina solitária da família e parecia inteiramente de acordo com o mundo, mesmo quando se fechava na sala às duas da tarde para praticar o clavicórdio com uma disciplina inflexível. Era evidente que gostava de casa, que passava o ano todo sonhando com o alvoroço de adolescentes que a sua chegada provocava, e que não andava muito longe da vocação festiva e dos desregramentos hospitaleiros do pai. O primeiro signo dessa herança calamitosa se revelou nas terceiras férias, quando Meme apareceu em casa com quatro freiras e sessenta e oito colegas de classe, a quem convidara para passar uma semana com a família, por iniciativa própria e sem avisar.
— Que desgraça! — lamentou-se Fernanda. — Esta criatura é tão bárbara quanto o pai!
Foi preciso pedir camas e redes aos vizinhos, estabelecer nove turnos
na mesa, fixar horários para o banho e conseguir quarenta banquetas
emprestadas para que as meninas de uniformes azuis e botinas de homem
não andassem o dia inteiro trançando de um lado para o outro. O convite foi
um desastre, porque as ruidosas colegiais mal acabavam de tomar café já
tinham que começar os turnos para o almoço e em seguida para o jantar, e
em toda a semana só puderam fazer um passeio às plantações. Ao anoitecer,
as freiras estavam esgotadas, incapazes de se move r, de dar uma ordem a
mais, e o tropel de adolescentes incansáveis ainda estava no quintal
cantando desafinados hinos escolares. Um dia, por pouco não atropelam
Úrsula, que se empenhava em ser útil exatamente onde mais atrapalhava.
Outro dia, as freiras armaram um escândalo porque o Coronel Aureliano
Buendía urinou debaixo do castanheiro sem se preocupar com o fato de as
colegiais estarem no quintal. Amaranta esteve a ponto de semear o pânico,
porque uma das freiras entrou na cozinha quando ela estava temperando a
sopa e a única coisa que lhe ocorreu foi perguntar o que eram aqueles
punhados de pó branco.
— Arsênico — disse Amaranta.
— Arsênico — disse Amaranta.
Na noite da chegada, as estudantes se atrapalharam de tal maneira
tratando de ir ao reservado antes de se deitar que à uma da madrugada
ainda estavam entrando as últimas. Fernanda então comprou setenta e dois
penicos, mas só conseguiu transformar o problema noturno num problema
matinal, porque desde o amanhecer havia diante do reservado uma longa
fila de moças, cada uma com o seu penico na mão, esperando a vez para
lavá-lo. Embora algumas sofressem de febre e várias ficassem com as
mordidas dos mosquitos inflamadas, a maioria demonstrou uma resistência
inquebrantável diante das dificuldades mais penosas e mesmo na hora de
mais calor corriam no jardim. Quando finalmente foram embora, as flores
estavam destruídas, os móveis partidos e as paredes cobertas de desenhos e
letreiros, mas Fernanda perdoou-lhes os estragos diante do alívio da partida.
Devolveu as camas e banquetas emprestadas e guardou os setenta e dois
penicos no quarto de Melquíades. O cômodo enclausurado, em torno do qual
girara em outros tempos a vida espiritual da casa, ficou conhecido a partir
de então como o quarto dos penicos. Para o Coronel Aureliano Buendía, esse
era o nome mais apropriado, porque enquanto o resto da família continuava
se assombrando de que a peça de Melquíades fosse imune ao pó e à
destruição, ele a via transformada numa lixeira. De qualquer maneira, não
lhe parecia importar quem estava com razão, e se soube do destino do quarto
foi porque Fernanda esteve passando e perturbando o seu trabalho durante
uma tarde inteira para guardar os penicos.
Por esses dias reapareceu José Arcadio Segundo em casa. Passava de
longe pela varanda, sem cumprimentar ninguém, e se trancava na oficina
para conversar com o coronel. Apesar de não poder vê -lo, Úrsula estudava
ruído das suas botas de capataz e se surpreendia com a distância
irremediável que separava da família, inclusive do irmão gêmeo, com quem
brincava na infância os engenhosos truques de confusão e com o qual já não
tinha nenhum traço em comum. Era comprido, solene, e tinha um ar
pensativo, e uma tristeza de sarraceno, e um brilho lúgubre no rosto cor de
outono. Era o que mais se parecia com a mãe, Santa Sofía de la Piedad.
Úrsula reprovava em si a tendência a se esquecer dele ao falar da família,
mas quando o sentiu de novo em casa e percebeu que o coronel o admitia na
oficina durante as horas de trabalho, voltou a examinar as suas velhas
lembranças e confirmou a crença de que em algum momento da infância ele
se confundira com o irmão gêmeo, porque era ele e não o outro quem devia
se chamar Aureliano. Ninguém conhecia os pormenores da sua vida. Em
certa época, sabia-se que não tinha residência fixa, que criava galos na casa
de Pilar Ternera e que às vezes ficava para dormir ali, mas que quase sempre
passava a noite nos quartos das matronas francesas. Andava à deriva, sem
afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de
Úrsula.
Realmente, José Arcadio Segundo não era membro da família, nem o
seria jamais de outra, desde a madrugada distante em que o Coronel
Gerineldo Márquez o levara ao quartel, não para que visse um fuzilamento,
mas para que não se esquecesse para o resto da vida do sorriso triste e um
pouco irônico do fuzilado. Aquela não era apenas a sua lembrança mais
antiga, mas também a única da sua meninice. A outra, a de um ancião com
um casaco anacrônico e um chapéu de asas de corvo que contava
maravilhas diante de uma janela deslumbrante, não conseguia situar em
nenhuma época. Era uma lembrança incerta, inteiramente desprovida de
ensinamentos ou saudade, ao contrário da lembrança do fuzilado que, na
realidade, tinha definido o rumo da sua vida e regressava à sua memória,
cada vez mais nítida à medida que envelhecia, como se o transcurso do
tempo a viesse aproximando. Úrsula tratou de aproveitar José Arcadio
Segundo para que o Coronel Aureliano Buendía abandonasse o seu
enclausuramento. “Convença-o a ir ao cinema”, dizia a ele. “Embora não
goste dos filmes, terá pelo menos uma ocasião de respirar ar puro.” Mas não
tardou a perceber que ele era tão insensível às suas súplicas quanta teria sido
o coronel e que estavam encouraçados pela mesma impermeabilidade aos
afetos. Embora nunca soubesse, nem o soubesse ninguém, do que falavam
nas prolongadas entrevistas na oficina, entendeu que eram eles os únicos
membros da família que pareciam vinculados por afinidades. A verdade é
que nem José Arcadio Segundo poderia tirar o coronel do seu
enclausuramento. A invasão escolar fora demais para os limites da sua
paciência. Com o pretexto de que o quarto nupcial estava à mercê das traças
apesar da destruição das apetitosas bonecas de Remedios, pendurou uma
rede na oficina e agora só a abandonava para ir ao quintal fazer as suas
necessidades. Úrsula não conseguiu alinhavar com ele uma conversa trivial.
Sabia que ele não olhava os pratos de comida, mas que os punha no canto da
mesa enquanto terminava o peixinho e não se importava se a sopa criasse
crostas de gordura e se a carne esfriasse. Endureceu-se cada vez mais desde
que o Coronel Gerineldo Márquez se negou a segui-lo numa guerra senil.
Fechou-se com tranca dentro de si mesmo e a família acabou por pensar
nele como se tivesse morrido. Não se voltou a ver nele nenhuma reação
humana até um onze de outubro em que saiu à porta da rua para ver o
desfile de um circo. Aquele tinha sido para o Coronel Aureliano Buendía um
dia igual a todos os dos seus últimos anos. As cinco da madrugada foi
acordado pelo alvoroço dos sapos e dos grilos do lado de fora da parede. A
chuvinha persistia desde sábado e ele não teria tido necessidade de ouvir o
seu minucioso cochicho nas folhas do jardim, porque de todo jeito tê-la-ia
sentido no frio dos ossos. Estava, como sempre, ve stido com a manta de lã e
com as ceroulas de algodão cru que continuava usando por comodidade,
embora por causa do seu empoeirado anacronismo ele mesmo as chamasse
de “cuecas de godo”. Pôs as calças justas, mas não deu os laços nem colocou
no colarinho da camisa o botão de ouro que usava sempre, porque tinha o
propósito de tomar um banho. Em seguida pôs a manta na cabeça, como um
capuz, penteou com os dedos o bigode caído e foi urinar no quintal. Faltava
tanto para que saísse o sol que José Arcadio Buendía ainda cochilava debaixo
da coberta de sapé já podre por causa da chuva. Ele não o viu, como não o
havia visto nunca, nem ouviu a frase incompreensível que lhe dirigiu o
espectro de seu pai quando acordou sobressaltado pelo jato de urina quente
que lhe salpicava os sapatos. Deixou o banho para mais tarde, não por causa
do frio e da umidade, mas por causa da névoa opressiva de outubro. De volta
à oficina sentiu o cheiro de pavio do fogo que Santa Sofía de la Piedad estava
acendendo e esperou na cozinha que o café fervesse, para levar a sua
caneca sem açúcar. Santa Sofía de la Piedad perguntou-lhe, como todas as
manhãs, em que dia da semana estavam e ele respondeu que era terça-feira,
onze de outubro. Vendo a impávida mulher dourada pelo brilho do fogo, que
nem nesse nem em nenhum outro momento da sua vida parecia existir por
completo, lembrou-se de repente de que um onze de outubro, em plena
guerra, acordou-o a certeza brutal de que a mulher com quem tinha
dormido estava morta. Estava, realmente, e não se esquecia da data porque
ela também lhe havia perguntado uma hora antes em que dia estavam.
Apesar da evocação, desta vez também não teve consciência de até que
ponto o tinham abandonado os presságios, e enquanto o café fervia
continuou pensando por pura curiosidade, mas sem o mais insignificante
traço de nostalgia, na mulher cujo nome nunca soube e cujo rosto não viu
com vida porque tinha chegado à sua rede tropeçando no escuro.
Entretanto, no vazio de tantas mulheres como as que chegaram à sua vida
da mesma forma, não se lembrou de que foi ela a que no delírio do primeiro
encontro estava quase por naufragar nas próprias lágrimas e apenas uma
hora antes de morrer jurara amá-lo até a morte. Não voltou a pensar nela,
nem em nenhuma outra, depois que entrou na oficina com a xícara
fumegante e acendeu a luz para contar os peixinhos de ouro que guardava
num pote de lata. Havia dezessete. Desde que decidira não vendê-los,
continuava fabricando dois peixinhos por dia, e quando completava vinte e
cinco voltava a fundi-los no crisol para começar a fazê-los de novo.
Trabalhou a manhã inteira, absorto, sem pensar em nada, sem se dar conta
de que às dez aumentara a chuva e alguém passava diante da oficina
gritando que fechassem as portas para que a casa não inundasse, e sem se
dar conta sequer de si mesmo até que Úrsula entrou com o almoço e apagou
a luz.
— Que chuva! — disse Úrsula.
— Que chuva! — disse Úrsula.
— Outubro — disse ele.
Ao dizê-lo, não levantou a vista do primeiro peixinho do dia, porque
estava engastando os rubis dos olhos. Só quando o terminou e o pôs com os
outros no pote é que começou a tomar a sopa. Em seguida comeu, muito
devagar, o pedaço de carne ensopada com cebola, o arroz branco e as fatias
de banana frita, tudo junto no mesmo prato. O seu apetite não se alterava
nem nas melhores nem nas mais duras circunstâncias. Ao fim do almoço
experimentou a derrota da ociosidade. Por uma espécie de superstição
científica, nunca trabalhava, nem lia, nem tomava banho, nem fazia amor,
antes de que transcorressem duas horas de digestão, e era uma crença tão
arraigada que várias vezes atrasou operações de guerra para não submeter a
tropa aos riscos de uma congestão. De modo que se deitou na rede, tirando a
cera dos ouvidos com um canivete e, em poucos minutos, adormeceu.
Sonhou que entrava numa casa vazia, de paredes brancas, e que se
inquietava com a angústia de ser o primeiro ser humano que entrava nela.
No sonho recordou que havia sonhado o mesmo na noite anterior e em
muitas noites dos últimos anos, e soube que a imagem se apagaria de sua
memória ao acordar, porque aquele sonho teimoso tinha a virtude de não ser
recordado a não ser dentro do mesmo sonho. Um momento depois, com
efeito, quando o barbeiro bateu na porta da oficina, o Coronel Aureliano
Buendía acordou com a impressão de que involuntariamente tinha
adormecido por breves segundos e que não tinha tido tempo de sonhar
nada.
— Hoje não — disse ao barbeiro. — Volte na sexta-feira.
Tinha uma barba de três dias, salpicada de pelos brancos, mas achava
melhor não se barbear, pois na sextafeira ia cortar o cabelo e podia fazer tudo
ao mesmo tempo. O suor pegajoso da sesta indesejável reviveu nas suas axilas
as cicatrizes dos furúnculos. Havia estiado, mas ainda não saíra o sol. O
Coronel Aureliano Buendía emitiu um arroto sonoro que devolveu ao paladar
a acidez da sopa e que foi como uma ordem do organismo para que jogasse a
manta nos ombros e fosse ao reservado. Ali permaneceu mais do que o tempo
necessário, agachado sobre a densa fermentação que subia do caixote de
madeira, até que o costume lhe indicou que era hora de reiniciar o trabalho.
Durante o tempo que durou a espera voltou a se lembrar de que era terça-feira e de que José Arcadio Segundo não tinha estado na oficina porque era
dia de pagamento nas fazendas da companhia bananeira. Essa lembrança,
como todas as dos últimos anos, passou sem que viesse ao caso pensar na
guerra. Lembrou-se de que o Coronel Gerineldo Márquez lhe havia
prometido, certa vez, conseguir um cavalo com uma estrela branca na testa
e que nunca se voltara a falar disso. Em seguida, derivou para episódios
dispersos, mas os evocou sem qualificá-los, porque de tanto não poder
pensar em outra coisa tinha aprendido a pensar a frio, para que as
lembranças iniludíveis não lhe estragassem nenhum sentimento. De volta à
oficina, vendo que o ar começava a secar, decidiu que era um bom momento
para tomar um banho, mas Amaranta se havia antecipado a ele. De modo
que começou o segundo peixinho do dia. Estava engatando o rabo quando o
sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar
lavado pela chuvinha de três dias se encheu de tanajuras. Então caiu em si,
percebendo que tinha vontade de urinar e estava adiando até que acabasse
de armar o peixinho. Ia para o quintal, às quatro e dez, quando ouviu os
instrumentos longínquos, as batidas do bumbo e a alegria das crianças, e pela
primeira vez desde a juventude pisou conscientemente numa armadilha da
saudade e reviveu a prodigiosa tarde de ciganos em que o seu pai o levou
para conhecer o gelo. Santa Sofía de la Piedad abandonou o que estava
fazendo na cozinha e correu para a porta.
— É o circo — gritou.
Em vez de se dirigir ao castanheiro, o Coronel Aureliano Buendía foi
também para a porta da rua e se misturou com os curiosos que
contemplavam o desfile. Viu uma mulher vestida de ouro no cangote de um
elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que
marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola. Viu os
palhaços virando cambalhotas no final do desfile e viu outra vez a cara da
sua solidão miserável quando tudo acabou de passar e não ficou senão o
luminoso espaço na rua e o ar cheio de tanajuras e uns quantos curiosos
próximos ao precipício da incerteza. Então foi para o castanheiro, pensando
no circo, e enquanto urinava tentou continuar pensando no circo, mas já
não encontrou a lembrança. Meteu a cabeça entre os ombros, como um
frango, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco do castanheiro. A
família não soube de nada até o dia seguinte, às onze da manhã, quando
Santa Sofía de la Piedad foi jogar o lixo no quintal e lhe chamou a atenção o
fato de estarem baixando os urubus.
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Cem Anos de Solidão (11.3) - A maior preocupação
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[1] Cumbia é a dança popular colombiana por excelência. ( N. T.)
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