segunda-feira, 25 de julho de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (6.1) - Sentada na cadeira de balanço de vime

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(6.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío





SENTADA NA CADEIRA de balanço de vime, com o trabalho interrompido no colo, Amaranta contemplava Aureliano José, que tinha o queixo coberto de espuma e afiava a navalha numa correia para se barbear pela primeira vez. Sangrou as espinhas, cortou o lábio superior tentando modelar um bigode de pelos louros, e depois de tudo ficou igual a antes, mas o trabalhoso processo deixou em Amaranta a impressão de que naquele instante tinha começado a envelhecer. 

— Você está igual a Aureliano quando tinha a sua idade — disse. — Já é um homem. 

Já o era há muito tempo, desde o dia longínquo em que Amaranta acreditou que ainda era um menino e continuou se despindo no banheiro diante dele, como fizera sempre, como se acostumara a fazer desde que Pilar Ternera o entregou a ela para que acabasse de criá-lo. Na primeira vez em que ele a viu, a única coisa que lhe chamou a atenção foi a profunda depressão entre os seios. Era na época tão inocente que perguntou o que havia acontecido, e Amaranta fingiu cavar o peito com a ponta dos dedos e respondeu: “Tiraram fatias e fatias e fatias.” Tempos depois, quando ela se restabeleceu do suicídio de Pietro Crespi e voltou a se banhar com Aureliano José, este já não se fixou na depressão, e sim experimentou um estremecimento desconhecido diante da visão dos seios esplêndidos de mamilos arroxeados. Continuou a examiná-la, descobrindo palmo a palmo o milagre da sua intimidade, e sentiu que a sua pele se arrepiava na contemplação, como se arrepiava a pele dela ao contato da água. Desde bem garoto tinha o costume de abandonar a rede para amanhecer na cama de Amaranta, cujo contato tinha a virtude de dissipar o medo do escuro. Desde o dia, porém, em que tomou consciência da sua nudez, não era o medo do escuro que o impulsionava a se meter no seu mosquiteiro e sim o desejo de sentir a respiração morna de Amaranta ao amanhecer. Certa madrugada, na época em que ela recusou o Coronel Gerineldo Márquez, Aureliano José acordou com a sensação de falta de ar. Sentiu os dedos de Amaranta como uns vermezinhos quentes e ansiosos que procuravam o seu ventre. Fingindo dormir mudou de posição para eliminar toda e qualquer dificuldade, e então sentiu a mão sem a atadura negra mergulhando como um molusco cego entre as algas da sua ansiedade. Embora aparentassem ignorar o que ambos sabiam, e o que cada um sabia que o outro sabia, a partir daquela noite, ficaram mancomunados por uma cumplicidade inviolável. Aureliano José não podia conciliar o sono enquanto não escutava a valsa das doze no relógio da sala, e a madura donzela cuja pele começava a entristecer não tinha um só instante de sossego enquanto não sentia deslizar no mosquiteiro aquele sonâmbulo que ela tinha criado, sem pensar que seria um paliativo para a sua solidão. Então, não só dormiram juntos, nus, trocando carícias extenuantes, como também se perseguiam pelos cantos da casa e se fechavam nos quartos a qualquer hora, num permanente estado de exaltação sem alívio. Quase foram surpreendidos por Úrsula, uma tarde em que ela entrou na despensa quando eles começavam a se beijar. “Você gosta muito da sua tia?” perguntou ela de um modo inocente a Aureliano José. Ele respondeu que sim. “Faz bem”, concluiu Úrsula e acabou de medir a farinha para o pão e voltou à cozinha. Aquele episódio tirou Amaranta do delírio. Percebeu que tinha ido longe demais, que já não estava brincando com uma criança aos beijinhos, e sim chafurdando numa paixão outonal, perigosa e sem futuro, e cortou tudo de uma vez. Aureliano José, que na época terminava o serviço militar, acabou por admitir a realidade e foi dormir no quartel. Aos sábados ia com os soldados à taberna de Catarino. Consolava-se da sua abrupta solidão, da sua adolescência prematura, com mulheres que cheiravam a flores mortas e que ele idealizava nas trevas e transformava em Amaranta, através de ansiosos esforços de imaginação. 

Pouco depois, começaram a chegar notícias contraditórias da guerra. Enquanto o próprio governo admitia os progressos da rebelião, os oficiais de Macondo tinham informações confidenciais da iminência de uma paz negociada. No princípio de abril, um emissário especial se identificou diante do Coronel Gerineldo Márquez. Confirmou-lhe que, na verdade, os dirigentes do partido tinham estabelecido contato com chefes rebeldes do interior, e estavam às vésperas de entrar num acordo para o armistício, em troca de três ministérios para os liberais, uma representação minoritária no Parlamento e a anistia geral para os rebeldes que depusessem as armas. O emissário trazia uma ordem altamente confidencial do Coronel Aureliano Buendía, que não estava de acordo com os termos do armistício. O Coronel Gerineldo Márquez devia selecionar cinco dos seus melhores homens e se preparar para abandonar com eles o país. A ordem foi cumprida dentro do mais absoluto segredo. Uma semana antes que se anunciasse o acordo, e no meio de uma saraivada de boatos contraditórios, o Coronel Aureliano Buendía e dez oficiais de confiança, entre eles o Coronel Roque Carnicero, chegaram sigilosamente a Macondo depois da meia-noite, dispersaram a guarnição, enterraram as armas e destruíram os arquivos. Ao amanhecer, já haviam abandonado o povoado com o Coronel Gerineldo Márquez e os seus cinco oficiais. Foi uma operação tão rápida e confidencial que Úrsula não soube de nada a não ser na última hora, quando alguém deu umas pancadinhas na janela do seu quarto e murmurou: “Se a senhora quer ver o Coronel Aureliano Buendía, chegue na porta agora.” Úrsula pulou da cama e saiu na porta de camisola, e só conseguiu perceber o galope da cavalaria, que abandonava o povoado no meio de uma silenciosa poeirada. Apenas no dia seguinte veio a saber que Aureliano José havia ido embora com o pai. Dez dias depois que um comunicado conjunto do governo e da oposição anunciou o fim da guerra, veio a notícia do primeiro levante armado do Coronel Aureliano Buendía na fronteira ocidental. Suas forças escassas e mal armadas foram desbaratadas em menos de uma semana. Mas no decurso do ano, enquanto liberais e conservadores procuravam fazer o país acreditar na reconciliação, ele tentou mais sete rebeliões. Certa noite bombardeou Riohacha de uma escuna, e a guarnição, em represália, tirou da cama os quatorze liberais mais conhecidos da povoação e os fuzilou. Durante mais de quinze dias, Aureliano ocupou uma alfândega de fronteira, e dali dirigiu à nação um chamado à guerra geral. Outra das suas expedições perdeu três meses na selva, numa disparatada tentativa de atravessar mais de mil e quinhentos quilômetros de territórios virgens para proclamar a guerra nos subúrbios da capital. Certa ocasião, esteve a menos de vinte quilômetros de Macondo, e foi obrigado pelas patrulhas do governo a se internar nas montanhas, muito perto da região encantada onde o seu pai encontrara muitos anos antes o fóssil de um galeão espanhol. Nessa época, morreu Visitación. Deu-se ao luxo de morrer de morte natural, depois de haver renunciado a um trono por medo da insônia, e a sua última vontade foi que desenterrassem de debaixo da sua cama o ordenado economizado por mais de vinte anos, e o mandassem ao Coronel Aureliano Buendía, para que continuasse a guerra. Úrsula, porém, não se deu ao trabalho de tirar esse dinheiro, porque naqueles dias corria boato de que o Coronel Aureliano Buendía tinha sido morto num desembarque perto da capital da província. A notícia oficial — a quarta em menos de dois anos — foi tida como verdadeira durante quase seis meses pois nada se voltou a saber dele. De repente, quando Úrsula e Amaranta já haviam superposto um novo luto aos anteriores, chegou uma notícia extraordinária. O Coronel Aureliano Buendía estava vivo, mas tinha desistido de fustigar o governo do seu país, se havia agregado ao federalismo triunfante em outras repúblicas do Caribe. Aparecia com nomes diferentes, cada vez mais longe da sua terra. Depois se haveria de saber que a idéia que então o animava era a unificação das forças federalistas da América Central, para varrer os regimes conservadores, do Alasca à Patagônia. A primeira notícia direta que Úrsula recebeu dele, vários anos depois de ter partido, foi uma carta amassada e apagada que andou de mão em mão, enviada de Santiago de Cuba. 

— Nós o perdemos para sempre — exclamou Úrsula ao lê-la. — Nesse andar, vai passar o Natal no fim do mundo. 

A pessoa a quem o disse, que foi a primeira a quem mostrou a carta, era o general conservador José Raquel Moncada, alcaide de Macondo desde que terminou a guerra. “Esse Aureliano”, comentou o General Moncada, “pena que não seja conservador.” Admirava-o de verdade. Como muitos civis conservadores, José Raquel Moncada tinha feito a guerra em defesa do seu partido e alcançado o título de general no campo de batalha, embora carecesse de vocação militar. Pelo contrário, como acontecia a muitos dos seus correligionários, era antimilitarista. Considerava o pessoal de armas como vagabundos sem princípios, intrigantes e ambiciosos, especialistas em enfrentar os civis para cair na desordem. Inteligente, simpático, sanguíneo, bom garfo e fanático por brigas de galo, foi em certo momento o adversário mais temível do Coronel Aureliano Buendía. Conseguiu impor a sua autoridade sobre os militares de carreira num amplo setor do litoral. Certa vez em que se viu forçado, por conveniências estratégicas, a abandonar uma praça às forças do Coronel Aureliano Buendía, deixou-lhe duas cartas. Numa delas, muito extensa, convidava-o a participar de uma campanha em conjunto para humanizar a guerra. A outra carta era para a sua esposa, que vivia em território liberal, e a deixou com o pedido de fazê-la chegar ao seu destino. A partir de então, mesmo nos períodos mais encarniçados da guerra, os dois comandantes combinaram tréguas para trocar prisioneiros. Eram pausas com um certo ambiente festivo e que o General Moncada aproveitava para ensinar o Coronel Aureliano Buendía a jogar xadrez. Tornaram-se grandes amigos. Chegaram inclusive a pensar na possibilidade de coordenar os elementos populares de ambos os partidos para acabar com a influência dos militares e com os políticos profissionais, e instaurar um regime humanitário que aproveitasse o melhor de cada doutrina. Quando terminou a guerra, enquanto o Coronel Aureliano Buendía escapulia pelos desfiladeiros da subversão permanente, o General Moncada foi nomeado interventor de Macondo. Vestiu o seu traje civil, substituiu os militares por agentes da policia desarmados, fez respeitar as leis de anistia e auxiliou algumas das famílias dos liberais mortos em campanha. Conseguiu que Macondo fosse promovido a município e foi o seu primeiro alcaide, e criou um ambiente de confiança que fez com que se pensasse na guerra como num absurdo pesadelo do passado. O Padre Nicanor, consumido pelas febres hepáticas, foi substituído pelo Padre Coronel, a quem chamavam O Cachorrinho [1], veterano da primeira guerra federalista. Bruno Crespi, casado com Amparo Moscote, e cuja loja de brinquedos e instrumentos musicais não parava de prosperar, construiu um teatro, que as companhias espanholas incluíram nos seus itinerários. Era um vasto salão ao ar livre, com bancos de madeira, uma cortina de veludo com máscaras gregas, e três guichês em forma de cabeça de leão por cujas bocas abertas se vendiam os bilhetes. Foi também por esta época que se restaurou o edifício da escola. Encarregou-se dela o Sr. Melchor Escalona, um velho mestre enviado ao pantanal, que fazia os alunos vadios caminharem de joelhos no pátio de pedrinhas, e os malcriados comerem pimenta, com a total complacência dos pais. Aureliano Segundo e José Arcadio Segundo, os voluntariosos gêmeos de Santa Sofía de la Piedad, foram os primeiros a se sentar na sala de aula, com sua lousa e seu giz e os copinhos de alumínio marcados com os seus nomes. Remedios, herdeira da beleza pura da sua mãe, começava a ser conhecida como Remedios, a bela. Apesar do tempo, dos lutos superpostos e dos aborrecimentos acumulados, Úrsula se recusava a envelhecer. Ajudada por Santa Sofía de la Piedad, tinha dado um novo impulso à sua indústria de doces, e não só recuperou em poucos anos a fortuna que o filho gastou na guerra como também voltou a entupir de ouro puro as cabaças enterradas no quarto. “Enquanto Deus me der vida”, costumava dizer, “não há de faltar dinheiro nesta casa de loucos.” Assim estavam as coisas quando Aureliano José desertou das tropas federalista s da Nicarágua, engajou-se na tripulação de um navio alemão e apareceu na cozinha da casa, forte como um touro, negro e cabeludo como um índio, e com a secreta determinação de se casar com Amaranta. 

Quando Amaranta o viu entrar, sem que ele houvesse dito nada, soube imediatamente por que tinha voltado. Na mesa, não se atreviam a se encarar. Duas semanas depois do regresso, porém, estando Úrsula presente, ele fixou os olhos nos dela e disse: “Eu sempre pensava muito em você.” Amaranta fugia dele. Prevenia-se contra os encontros casuais. Procurava não se separar de Remedios, a bela. Indignou-se com o rubor que lhe dourou as faces no dia em que o sobrinho lhe perguntou até quando pensava usar a atadura negra na mão, porque interpretou a pergunta como uma alusão a sua virgindade. Quando ele chegou, ela passou a chave no quarto, mas durante tantas noites ouviu os seus roncos pacíficos no quarto contíguo que descuidou da precaução. Certa madrugada, quase dois meses depois do regresso, sentiu-o entrar no quarto. Então, em vez de fugir, em vez de gritar como havia previsto, deixou-se saturar por uma suave sensação de descanso. Sentiu-o deslizar para dentro do mosquiteiro, como o fizera quando era garoto, como o fizera sempre, e não pôde reprimir o suor gelado e o chocalhar dos dentes quando reparou que ele estava completamente nu. “Vai embora”, murmurou, sufocando de curiosidade. “Vai embora ou eu começo a gritar.” Mas Aureliano José sabia então o que tinha que fazer, porque já não era um menino assustado pela escuridão, e sim um animal de acampamento. Desde aquela noite se reiniciaram as surdas batalhas sem consequências que se prolongavam até o amanhecer. “Eu sou sua tia”, murmurava Amaranta esgotada. “É quase como se eu fosse sua mãe, não só pela idade, mas também porque a única coisa que faltou foi dar a você de mamar.” Aureliano fugia ao alvorecer e voltava na madrugada seguinte, cada vez mais excitado pela comprovação de que ela não se trancava. Não deixara de desejá-la um só instante. Encontrava-a nos escuros quartos das aldeias vencidas, sobretudo nos mais abjetos, e a materializava no bafo de sangue seco das ataduras dos feridos, no pavor instantâneo do perigo da morte, a toda hora e em toda parte. Fugira dela, tentando aniquilar a sua lembrança, não só com a distância mas também com um encarniçamento confuso que os companheiros de armas qualificavam de temeridade; quanto mais, porém, pisoteava a sua imagem na estrumeira da guerra, mais a guerra se parecia com Amaranta. Sofreu assim no exílio, procurando a maneira de matá-la com a sua própria morte, até que ouviu alguém contar a velha história do homem que se casou com uma tia que, além disso, era sua prima, e cujo filho acabou sendo avô de si mesmo. 

— Uma pessoa pode casar com a própria tia? — perguntou, assombrado. 

— Pode, e não só isso — respondeu-lhe um soldado — pois estamos fazendo esta guerra contra os padres para que a pessoa possa se casar até com a própria mãe. 

Quinze dias depois desertou. Encontrou Amaranta mais enfeitada que na lembrança, mais melancólica e pudica, e já dobrando na realidade o último cabo da maturidade, porém mais febril que nunca nas trevas do quarto e mais desafiante que nunca na agressividade da sua resistência. “Você é bobo”, dizia Amaranta, acossada pelos seus cães de caça. “Não é verdade que se possa fazer isso com uma pobre tia, a não ser com licença especial do Papa.” Aureliano José prometia ir a Roma, prometia percorrer a Europa de joelhos e beijar as sandálias do Sumo Pontífice só para que ela baixasse a ponte levadiça.
 
— Não é só isso — rebatia Amaranta. — É que os filhos nascem com rabo de porco. 

Aureliano José era surdo para todos os argumentos. 

— Mesmo que nasçam tatus — suplicava. 

Certa madrugada, vencido pela dor insuportável da virilidade reprimida, foi à taberna de Catarin o. Encontrou uma mulher de seios flácidos, carinhosa e barata, que lhe apaziguou o ventre por algum tempo. Tentou aplicar a Amaranta o tratamento do desprezo. Via-a na varanda, cosendo numa máquina de manivela que aprendera a manejar com habilidade admirável, e nem sequer lhe dirigia a palavra. Amaranta se sentiu livre de um peso, e ela mesma não compreendeu por que voltou a pensar então no Coronel Gerineldo Márquez, por que evocava com tanta nostalgia as tardes de xadrez chinês, e por que chegou inclusive a desejá-lo como homem de cama. Aureliano José não imaginava o quanto havia perdido terreno, na noite em que não pôde suportar mais a farsa da indiferença e voltou ao quarto de Amaranta. Ela o repeliu com uma determinação inflexível, inequívoca, e passou a chave para sempre no quarto. Poucos meses depois do regresso de Aureliano José, apresentou-se na casa uma mulher exuberante, perfumada de jasmim, com um menino de uns cinco anos. Afirmou que era filho do Coronel Aureliano Buendía e o trazia para que Úrsula o batizasse. Ninguém pôs em dúvida a origem daquele menino sem nome: era igual ao coronel na época em que o levaram para conhecer o gelo. A mulher contou que tinha nascido de olhos abertos espiando as pessoas com juízo de gente grande, e que a assustava a sua maneira de fixar o olhar nas coisas sem pestanejar. “E idêntico”, disse Úrsula. “A única coisa que está faltando é que faça as cadeiras rodarem só de olhar para elas.” 

Batizaram-no com o nome de Aureliano, e com o sobrenome da mãe, porque a lei não permitia usar o sobrenome do pai enquanto este não o reconhecesse. O General Moncada serviu de padrinho. Embora Amaranta insistisse para que o deixassem com ela para acabar de criar, a mãe se opôs. 

Úrsula ignorava na época o costume de mandar donzelas aos quartos dos guerreiros, do mesmo modo como se soltavam galinhas para os galos finos, mas no decurso desse ano veio a saber: mais nove filhos do Coronel Aureliano Buendía foram trazidos à casa para serem batizados. O mais velho, um estranho moreno de olhos verdes que nada tinha que ver com a família paterna, já passara dos dez anos. Trouxeram crianças de todas as idades, de todas as cores, mas todos varões, e todos com um ar de solidão que não permitia pôr em dúvida o parentesco. Apenas dois se distinguiram do resto. Um, grande demais para a sua idade, que transformou em cacos as floreiras e várias peças da louça, porque as suas mãos pareciam possuir a propriedade de espedaçar tudo o que tocavam. O outro era um lourinho com os mesmos olhos garços da mãe, cujo cabelo tinha sido deixado comprido e cheio de cachos, como de uma mulher. Entrou na casa com muita familiaridade, como se tivesse sido criado nela, e foi diretamente para uma arca do quarto de Úrsula, e exigiu: “Eu quero a bailarina de corda.” Úrsula se assustou. Abriu a arca, remexeu os antiquados e poeirentos objetos do tempo de Melquíades e encontrou embrulhada num par de meias a bailarina de corda que certa vez Pietro Crespi trouxera, e da qual ninguém tinha voltado a se lembrar. Em menos de doze anos batizaram com o nome de Aureliano, e com o sobrenome da mãe, a todos os filhos que disseminou o coronel ao longo e ao largo dos seus territórios de guerra: dezessete. No princípio, Úrsula lhes enchia os bolsos de dinheiro e Amaranta tentava ficar com eles. Mas terminaram por se limitar a fazer-lhes um presente e servirem de madrinhas. “Batizando-os, cumprimos com a obrigação”, dizia Úrsula, anotando numa caderneta o nome e o endereço das mães e o lugar e a data de nascimento das crianças. “Aureliano deve cuidar bem da sua vida, de modo que será ele quem tomará as decisões quando voltar.” Durante um almoço, comentando com o General Moncada aquela desconcertante proliferação, expressou o desejo de que o Coronel Aureliano Buendía voltasse alguma vez para reunir todos os seus filhos em casa.
 
— Não se preocupe, comadre — disse enigmaticamente o General Moncada. — Ele virá mais cedo do que a senhora imagina. 

O que o General Moncada sabia, e que não quis revelar no almoço, era que o Coronel Aureliano Buendía já estava a caminho, para se pôr à frente da rebelião mais prolongada, radical e sangrenta de quantas tinham sido tentadas até então. A situação voltou a ser tão tensa como nos meses que precederam a primeira guerra. As brigas de galo, animadas pelo próprio alcaide, foram suspensas. O Capitão Aquiles Ricardo, comandante da guarnição, assumiu na prática o poder municipal. Os liberais o apontaram como um provocador. “Alguma coisa terrível vai acontecer”, dizia Úrsula a Aureliano José. “Não saia na rua depois das seis da tarde.” Eram súplicas inúteis. Aureliano José, igual a Arcadio em outra época, deixara de lhe pertencer. Era como se o regresso a casa, a possibilidade de existir sem se incomodar com as urgências cotidianas tivessem despertado nele a vocação concupiscente e preguiçosa do seu tio José Arcadio. A sua paixão por Amaranta se extinguiu sem deixar cicatrizes. Andava um pouco à deriva, jogando bilhar, entretendo a solidão com mulheres ocasionais, saqueando os buracos onde Úrsula esquecia o dinheiro escondido. Acabou por não voltar em casa a não ser para mudar de roupa. “São todos iguais”, Úrsula se lamentava. “No começo são fáceis de criar, obedientes e sinceros, e parecem incapazes de matar uma mosca; mal aponta a barba se atiram à perdição.” Ao contrário de Arcadio, que nunca soube da sua verdadeira origem, ele veio a saber que era filho de Pilar Ternera, que tinha pendurado uma rede para que ele fizesse a sesta na sua casa. Eram, mais que mãe e filho, cúmplices na solidão. Pilar Ternera havia perdido a sombra de qualquer esperança. O seu riso tinha adquirido tonalidades de órgãos, os seus seios tinham sucumbido ao tédio das carícias eventuais, o seu ventre e as suas coxas tinham sido vitimas do seu irrevogável destino de mulher partilhada, mas o seu coração envelhecia sem amargura. Gorda, desbocada, com vaidades de matrona em decadência, renunciou à ilusão estéril das cartas e encontrou um refrigério de consolo nos amores alheios. Na casa onde Aureliano José dormia a sesta, as moças da vizinhança recebiam os seus amantes casuais. “Você me empresta o quarto, Pilar”, diziam simplesmente, quando já estavam dentro dele. “Claro”, dizia Pilar. E se alguém estivesse presente, explicava: 

— Fico feliz sabendo que as pessoas estão felizes na cama.



continua página 97...

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