sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (12.3) - Meme fugiu da conversa

Cem Anos de SOLIDÃO

Gabriel Garcia Márquez


(12.3)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío

continuando...

    Meme fugiu da conversa com um riso entrecortado. Úrsula não insistiu, mas acabou de confirmar as suas suspeitas porque Meme não voltou a visitá-la. Sabia que se arrumava mais cedo do que de costume, que não tinha um instante de sossego enquanto esperava a hora de sair à rua, que passava noites inteiras rolando na cama no quarto contíguo e que a atormentava o voejar de uma borboleta. Em certa ocasião, ouviu-a dizer que ia se encontrar com Aureliano Segundo e Úrsula se surpreendeu de que Fernanda fosse tão curta de imaginação que não suspeitasse de nada quando o marido chegou em casa perguntando pela filha. Era evidente demais que Meme andava com assuntos sigilosos, com compromissos urgentes, com ansiedades reprimidas, desde muito antes da noite em que Fernanda alvoroçou a casa porque a tinha encontrado aos beijos com um homem no cinema. A própria Meme andava na época tão ensimesmada que acusou Úrsula de havê-la denunciado. Na realidade, ela se denunciara a si mesma. Há muito tempo que deixava à sua passagem um caudal de pistas que teriam despertado o mais adormecido e, se Fernanda demorara tanto para descobri-las, foi porque também ela estava obscurecida pelas suas relações secretas com os médicos invisíveis. Mesmo assim acabou por perceber os profundos silêncios, os sobressaltos intempestivos, as alternativas de humor e as contradições da filha. Empenhou-se numa vigilância dissimulada, mas implacável. Deixou-a estar com as suas amigas de sempre, ajudou-a a se vestir para as festas de sábado e jamais lhe fez uma pergunta impertinente que pudesse alertá-la. Tinha já muitas provas de que Meme fazia coisas diferentes das que anunciava e, no entanto, não deixou vislumbrar as suas suspeitas na espera da ocasião decisiva. Certa noite, Meme avisou que ia ao cinema com o pai. Pouco depois, Fernanda ouviu os foguetes da farra e o inconfundível acordeão de Aureliano Segundo no rumo da casa de Petra Cotes. Então se vestiu, entrou no cinema e, na penumbra das cadeiras, reconheceu a filha. A perturbadora emoção do acerto lhe impediu de ver o homem que a estava beijando, mas chegou a perceber a sua voz trêmula no meio dos assovios e das gargalhadas ensurdecedoras do público. “Sinto muito, amor”, ouviu-o dizer, e tirou Meme da sala sem lhe dizer uma palavra e submeteu-a à vergonha de levá-la pela barulhenta Rua dos Turcos e trancou-a à chave no quarto. No dia seguinte, às seis da tarde, Fernanda reconheceu a voz do homem que foi visitá-la. Era jovem, citrino, com uns olhos escuros e melancólicos que não a teriam surpreendido tanto se tivesse conhecido os ciganos e um ar de sonho que a qualquer mulher de coração menos rígido teria bastado para entender os motivos da filha. Vestia um linho muito usado, sapatos branco-zinco defendidos desesperadamente por solas superpostas, e trazia na mão um chapéu de palhinha comprado no sábado anterior. Em toda a sua vida nunca estivera nem estaria mais assustado do que naquele momento, mas tinha uma dignidade e um domínio que o punham a salvo da humilhação e uma excelência legítima que só fracassava nas mãos calosas e nas unhas lascadas pelo trabalho rude. A Fernanda, entretanto, bastou vê-lo uma vez para intuir a sua condição de trabalhador braçal. Percebeu que usava a sua única roupa de domingo e que debaixo da camisa tinha a pele carcomida pela sarna da companhia bananeira. Não permitiu que falasse. Não permitiu sequer que ele passasse da porta, que um momento depois teve de fechar, porque a casa estava cheia de borboletas amarelas.

 — Vá embora — disse a ele. — Não tem nada que fazer no meio de gente decente.

      Chamava-se Mauricio Babilonia. Tinha nascido e crescido em Macondo e era aprendiz de mecânico nas oficinas da companhia bananeira. Meme o conhecera por acaso, numa tarde em que fora com Patricia Brown buscar o automóvel para dar um passeio pelas plantações.
      Como o chofer estava doente, encarregaram-no de levá-las e Meme pôde por fim satisfazer a sua vontade de se sentar junto ao volante para observar de perto o sistema de manejo. Ao contrário do chofer titular, Mauricio Babilonia lhe fez uma demonstração prática. Isso foi na época em que Meme começou a frequentar a casa do Sr. Brown e ainda se considerava indigno de damas dirigir um automóvel. De modo que se conformou com a informação teórica e não voltou a ver Mauricio Babilonia por vários meses. Mais tarde haveria de recordar que durante o passeio chamou-lhe a atenção a sua beleza varonil, salvo a brutalidade das mãos, mas depois tinha comentado com Patricia Brown o mal-estar que lhe produzira a sua segurança um pouco altiva. No primeiro sábado em que foi ao cinema com seu pai, voltou a ver Mauricio Babilonia com o seu costume de linho, sentado a pouca distância deles, e percebeu que ele se desinteressava do filme para se virar para olhá-la, não tanto para vê-la como para que ela notasse que ele a estava olhando. Meme se aborreceu com a vulgaridade daquele sistema. Finalmente, Mauricio Babilonia se aproximou para cumprimentar Aureliano Segundo e só então Meme soube que se conheciam, porque ele tinha trabalhado na primitiva instalação elétrica de Aureliano Triste e tratava seu pai com uma atitude de subalterno. Essa comprovação aliviou-a do desprazer que lhe causava a sua altivez. Não se tinham visto a sós, nem se tinham dito uma palavra diferente do cumprimento, na noite em que sonhou que ele a salvava de um naufrágio e ela não experimentava nenhum sentimento de gratidão e sim de raiva. Era como lhe ter dado uma oportunidade que ele desejava, sendo que Meme queria o contrário, não só com Mauricio Babilonia como também com qualquer outro homem que se interessasse por ela. Por isso ficou tão indignada que depois do sonho, em vez de detestá-lo, teria experimentado uma urgência irresistível de vê-lo. A ansiedade se fez mais intensa no correr da semana e no sábado já era tão premente que teve que fazer um esforço enorme para que Mauricio Babilonia não notasse, ao cumprimentá-la no cinema, que o coração lhe saía pela boca. Ofuscada por uma confusa sensação de prazer e raiva, estendeu lhe a mão pela primeira vez, e só então Mauricio Babilonia se permitiu apertá-la. Meme chegou, numa fração de segundo, a se arrepender do impulso mas o arrependimento se transfo rmou imediatamente numa satisfação cruel, ao comprovar que também a mão dele estava suada e gelada. Nessa noite, compreendeu que não teria um instante de sossego enquanto não demonstrasse a Mauricio Babilonia quão vã era a sua aspiração, e passou a semana voejando em torno dessa ansiedade. Recorreu a toda espécie de artimanhas inúteis para que Patricia Brown a levasse para buscar o automóvel. Por último, valeu-se do cabelo-de-fogo norte-americano, que por essa época estava passando as férias em Macondo e, com o pretexto de conhecer os novos modelos de automóveis, fez-se levar às oficinas. Desde o momento em que o viu, Meme deixou de enganar a si mesma, e compreendeu que o que acontecia na realidade era que não podia mais suportar o desejo de estar a sós com Mauricio Babilonia e se indignou com a certeza de que este compreendera isso ao vê-la chegar.

— Vim ver os novos modelos — disse Meme.

 — É um bom pretexto — disse ele.

     Meme percebeu que estava se queimando na luz da sua altivez e procurou desesperadamente uma maneira de humilhá-lo. Mas ele não lhe deu tempo. “Não se assuste”, disse em voz baixa. “Não é a primeira vez que uma mulher fica louca por um homem.” Sentiu-se tão desamparada que abandonou a oficina sem ver os novos modelos e passou a noite de extremo a extremo rolando na cama e chorando de indignação. O cabelo-de-fogo norte-americano, que realmente começava a lhe interessar, pareceu-lhe um bebê de fraldas. Foi então que entendeu as borboletas amarelas que precediam as aparições de Mauricio Babilonia. Vira-as antes, sobretudo na oficina mecânica, e pensara que estavam fascinadas pelo cheiro da pintura. Alguma vez tê-las-ia sentido voejar sobre a sua cabeça -na penumbra do cinema. Mas quando Mauricio Babilonia começou a persegui-la como um espectro que só ela identificava na multidão, compreendeu que as borboletas amarelas tinham alguma coisa que ver com ele. Mauricio Babilonia estava sempre na plateia dos concertos, no cinema, na missa, e ela não necessitava vê-lo para descobri-lo, porque o indicavam as borboletas. Uma vez, Aureliano Segundo se impacientou tanto com o sufocante movimento de asas que ela sentiu o impulso de confiar-lhe o seu segredo como lhe havia prometido, mas o instinto lhe indicou que desta vez ele não ia rir como de costume: “Que diria a sua mãe se soubesse.” Certa manhã, enquanto podavam as rosas, Fernanda lançou um grito de espanto e quis tirar Meme do lugar em que estava e que era o mesmo lugar do jardim de onde Remedios, a bela, subira aos céus. Tivera por um instante a impressão de que o milagre ia se repetir na sua filha, porque tinha-se perturbado com um repentino movimento de asas. Eram as borboletas. Meme as viu como se tivessem nascido de repente na luz e seu coração deu um baque. Nesse momento, entrava Mauricio Babilonia com um pacote que, segundo disse, era um presente de Patricia Brown. Meme engoliu o rubor, assimilou a perturbação, e até conseguiu um sorriso natural para pedir-lhe o favor de colocá-lo no parapeito, porque tinha os dedos sujos da terra. A única coisa que Fernanda notou no homem que poucos meses depois haveria de expulsar de casa sem se lembrar de que o tivesse visto alguma vez foi a textura biliosa da pele.

 — É um homem muito esquisito — disse Fernanda. — Está escrito na testa que vai morrer.

     Meme pensou que sua mãe tinha ficado impressionada com as borboletas. Quando acabaram de podar o roseiral, lavou as mãos e levou o pacote para o quarto para abri-lo. Era uma espécie de brinquedo chinês; composto de cinco caixas concêntricas e, na última, um cartão laboriosamente desenhado por alguém que mal sabia escrever: A gente se vê sábado no cinema. Meme sentiu o terror tardio de que a caixa tivesse estado tanto tempo no parapeito, ao alcance da curiosidade de Fernanda, e, embora a lisonjeasse a audácia e o engenho de Mauricio Babilonia, comoveu a a sua ingenuidade de esperar que ela não faltasse ao encontro. Meme já sabia que Aureliano Segundo tinha um compromisso no sábado à noite. Entretanto, o fogo da ansiedade abrasou-a de tal modo no correr da semana que no sábado convenceu o pai a deixá-la sozinha no cinema e voltar para buscá-la no final da sessão. Uma borboleta noturna voejou sobre a sua cabeça enquanto as luzes estiveram acesas. E então aconteceu. Quando as Luzes se apagaram, Mauricio Babilonia se sentou do seu lado. Meme se sentiu debater num pântano de desespero, do qual só poderia ser resgatada, como acontecera no sonho, por aquele homem cheirando a óleo de motor que mal distinguia na penumbra.

 — Se você não tivesse vindo — ele disse — não teria me visto nunca mais. Meme sentiu o peso da sua mão no joelho e soube que ambos chegavam naquele instante ao outro lado do desamparo.

 — O que me choca em você — sorriu — é que sempre diz exatamente o que não devia dizer.

      Ficou louca por ele. Perdeu o sono e o apetite e se afundou tão profundamente na solidão que até o pai se transformou num estorvo para ela. Elaborou um intrincado nó de compromissos falsos para desorientar Fernanda, perdeu de vista as amigas, pulou por cima dos convencionalismos para encontrar-se com Mauricio Babilonia a qualquer hora e em qualquer parte. No princípio, incomodava-a a sua rudeza. Na primeira vez em que se viram a sós, nos prados desertos atrás da oficina mecânica, ele a arrastou sem misericórdia a um estado animal que a deixou extenuada. Demorou algum tempo para se dar conta de que também aquela era uma forma da ternura e foi então que perdeu o sossego e não vivia senão para ele, transtornada pela ansiedade de se fundir no seu entorpecedor bafo de óleo esfregado com água sanitária. Pouco antes da morte de Amaranta, tropeçou de repente com um espaço de lucidez dentro da loucura e tremeu diante da incerteza do futuro. Então ouviu falar de uma mulher que fazia prognósticos pelas cartas e foi visitá-la em segredo. Era Pilar Ternera. Desde que esta a viu entrar, soube dos recônditos motivos de Meme. “Sente-se”, disse-lhe. “Eu não preciso do baralho para averiguar o futuro de um Buendía.” Meme ignorava, e ignorou sempre, que aquela pitonisa centenária era sua bisavó. Tampouco teria acreditado, depois do agressivo realismo com que ela lhe revelou que a ansiedade do namoro não encontrava repouso a não ser na cama. Era o mesmo ponto de vista de Mauricio Babilonia, mas Meme se recusava a lhe dar crédito, pois no fundo supunha que ele estava inspirado em algum mau critério de operário braçal. Ela pensava então que uma forma de amor derrotava a outra, porque fazia parte da índole dos homens repudiar a fome uma vez satisfeito o apetite. Pilar Ternera não só dissipou o erro como também lhe ofereceu a velha cama de lona onde ela concebera Arcadio, o avô de Meme, e onde concebera depois a Aureliano José. Ensinou-lhe, além disso, como prevenir a concepção indesejável mediante a vaporização de cataplasmas de mostarda e deu receitas de beberagens que em casos de contratempo faziam expulsar “até os remorsos de consciência”. Aquela entrevista infundiu em Meme o mesmo sentimento de valentia que experimentara na tarde da bebedeira. A morte de Amaranta, entretanto, obrigou-a a adiar a decisão. Enquanto duraram as nove noites, ela não se afastou um só instante de Mauricio Babilonia, que andava confundido com a multidão que invadira a casa. Vieram logo o luto prolongado e o enclausuramento obrigatório e se separaram por algum tempo. Foram dias de tanta agitação interior, de tanta ansiedade irreprimível e tantos desejos reprimidos, que na primeira tarde em que Meme conseguiu sair foi diretamente à casa de Pilar Ternera. Entregou-se a Mauricio Babilonia sem resistência, sem pudor, sem formalismos e com uma vocação tão fluida e uma intuição tão sábia que um homem mais desconfiado que o seu poderia confundir com uma requintada experiência. Amaram-se duas vezes por semana durante mais de três meses, protegidos pela cumplicidade inocente de Aureliano Segundo, que acreditava sem malícia as meias-liberdades da filha, só para vê -la liberada da rigidez da mãe. Na noite em que Fernanda os surpreendeu no cinema, Aureliano Segundo se sentiu angustiado pelo peso da consciência e visitou Meme no quarto onde a trancara Fernanda, confiando em que ela se desafogaria com as confidências que lhe estava devendo. Mas Meme se negou a tudo. Estava tão segura de si mesma, tão aferrada à sua solidão, que Aureliano Segundo teve a impressão de que já não existia nenhum vínculo entre eles, que a camaradagem e a cumplicidade não eram mais do que uma ilusão do passado. Pensou em falar com Mauricio Babilonia, acreditando que a sua autoridade de antigo patrão fá-lo-ia desistir dos seus propósitos, mas Petra Cotes convenceu-o de que aquilo era assunto de mulher, de modo que ficou flutuando num limbo de indecisão, e mal sustentado pela esperança de que a clausura terminasse com as angústias da filha. Meme não deu nenhuma amostra de aflição. Pelo contrário, do quarto contíguo Úrsula percebeu o ritmo sossegado do seu sono, a serenidade dos seus afazeres, a ordem das suas refeições e a boa saúde da sua digestão. A única coisa que intrigou Úrsula depois de quase dois meses de castigo foi que Meme não tomasse banho de manhã, como todos faziam, mas às sete da noite. Uma vez pensou em preveni-la contra os escorpiões, mas Meme era tão esquiva com ela, pela convicção de que a tinha denunciado, que preferiu não perturbá-la com impertinências de tataravó. As borboletas amarelas invadiam a casa desde o entardecer. Todas as noites, ao sair banheiro, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando borboletas com a bomba de inseticida. “Isto é uma desgraça”, dizia. “Toda a vida me disseram que as borboletas noturnas chamam o azar.” Certa noite, enquanto Meme estava no banheiro, Fernanda entrou no seu quarto por acaso via tantas borboletas que mal se podia respirar. Apanhou pano qualquer para espantá-las e seu coração gelou de pavor ao relacionar os banhos noturnos da filha com os cataplasmas de mostarda que rolaram pelo chão. Não esperou por momento oportuno, como fizera da primeira vez. No dia seguinte, convidou para almoçar o novo alcaide que, como tinha descido do páramo, e pediu a ele que ordenasse uma guarda noturna para o quintal, porque tinha a impressão de estavam roubando as galinhas. Nessa noite, a guarda abateu Mauricio Babilonia quando levantava as telhas para entrar banheiro onde Meme o esperava, nua e tremendo de amor entre os escorpiões e as borboletas, como havia feito quase todas as noites dos últimos meses. Um projétil incrustado coluna vertebral reduziu-o à cama pelo resto da vida. Morreu de velho na solidão, sem uma queixa, sem um protesto, uma só tentativa de deslealdade, atormentado pelas lembranças e pelas borboletas amarelas que não lhe concederam um instante de paz e publicamente repudiado como ladrão galinhas.

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Cem Anos de Solidão (12.3) - Meme fugiu da conversa

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