Gabriel Garcia Márquez
(12.3)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
Meme fugiu da conversa com um riso entrecortado. Úrsula não insistiu, mas acabou de confirmar as suas suspeitas porque Meme não voltou a visitá-la. Sabia que se arrumava mais cedo do que de costume, que não tinha um instante de sossego enquanto esperava a hora de sair à rua, que passava noites inteiras rolando na cama no quarto contíguo e que a atormentava o voejar de uma borboleta. Em certa ocasião, ouviu-a dizer que ia se encontrar com Aureliano Segundo e Úrsula se surpreendeu de que Fernanda fosse tão curta de imaginação que não suspeitasse de nada quando o marido chegou em casa perguntando pela filha. Era evidente demais que Meme andava com assuntos sigilosos, com compromissos urgentes, com ansiedades reprimidas, desde muito antes da noite em que Fernanda alvoroçou a casa porque a tinha encontrado aos beijos com um homem no cinema. A própria Meme andava na época tão ensimesmada que acusou Úrsula de havê-la denunciado. Na realidade, ela se denunciara a si mesma. Há muito tempo que deixava à sua passagem um caudal de pistas que teriam despertado o mais adormecido e, se Fernanda demorara tanto para descobri-las, foi porque também ela estava obscurecida pelas suas relações secretas com os médicos invisíveis. Mesmo assim acabou por perceber os profundos silêncios, os sobressaltos intempestivos, as alternativas de humor e as contradições da filha. Empenhou-se numa vigilância dissimulada, mas implacável. Deixou-a estar com as suas amigas de sempre, ajudou-a a se vestir para as festas de sábado e jamais lhe fez uma pergunta impertinente que pudesse alertá-la. Tinha já muitas provas de que Meme fazia coisas diferentes das que anunciava e, no entanto, não deixou vislumbrar as suas suspeitas na espera da ocasião decisiva. Certa noite, Meme avisou que ia ao cinema com o pai. Pouco depois, Fernanda ouviu os foguetes da farra e o inconfundível acordeão de Aureliano Segundo no rumo da casa de Petra Cotes. Então se vestiu, entrou no cinema e, na penumbra das cadeiras, reconheceu a filha. A perturbadora emoção do acerto lhe impediu de ver o homem que a estava beijando, mas chegou a perceber a sua voz trêmula no meio dos assovios e das gargalhadas ensurdecedoras do público. “Sinto muito, amor”, ouviu-o dizer, e tirou Meme da sala sem lhe dizer uma palavra e submeteu-a à vergonha de levá-la pela barulhenta Rua dos Turcos e trancou-a à chave no quarto. No dia seguinte, às seis da tarde, Fernanda reconheceu a voz do homem que foi visitá-la. Era jovem, citrino, com uns olhos escuros e melancólicos que não a teriam surpreendido tanto se tivesse conhecido os ciganos e um ar de sonho que a qualquer mulher de coração menos rígido teria bastado para entender os motivos da filha. Vestia um linho muito usado, sapatos branco-zinco defendidos desesperadamente por solas superpostas, e trazia na mão um chapéu de palhinha comprado no sábado anterior. Em toda a sua vida nunca estivera nem estaria mais assustado do que naquele momento, mas tinha uma dignidade e um domínio que o punham a salvo da humilhação e uma excelência legítima que só fracassava nas mãos calosas e nas unhas lascadas pelo trabalho rude. A Fernanda, entretanto, bastou vê-lo uma vez para intuir a sua condição de trabalhador braçal. Percebeu que usava a sua única roupa de domingo e que debaixo da camisa tinha a pele carcomida pela sarna da companhia bananeira. Não permitiu que falasse. Não permitiu sequer que ele passasse da porta, que um momento depois teve de fechar, porque a casa estava cheia de borboletas amarelas.
— Vá embora — disse a ele. — Não tem nada que fazer no meio de
gente decente.
Chamava-se Mauricio Babilonia. Tinha nascido e crescido em
Macondo e era aprendiz de mecânico nas oficinas da companhia bananeira.
Meme o conhecera por acaso, numa tarde em que fora com Patricia Brown
buscar o automóvel para dar um passeio pelas plantações.
Como o chofer estava doente, encarregaram-no de levá-las e Meme
pôde por fim satisfazer a sua vontade de se sentar junto ao volante para
observar de perto o sistema de manejo. Ao contrário do chofer titular,
Mauricio Babilonia lhe fez uma demonstração prática. Isso foi na época em
que Meme começou a frequentar a casa do Sr. Brown e ainda se considerava
indigno de damas dirigir um automóvel. De modo que se conformou com a
informação teórica e não voltou a ver Mauricio Babilonia por vários meses.
Mais tarde haveria de recordar que durante o passeio chamou-lhe a atenção
a sua beleza varonil, salvo a brutalidade das mãos, mas depois tinha
comentado com Patricia Brown o mal-estar que lhe produzira a sua
segurança um pouco altiva. No primeiro sábado em que foi ao cinema com
seu pai, voltou a ver Mauricio Babilonia com o seu costume de linho, sentado
a pouca distância deles, e percebeu que ele se desinteressava do filme para
se virar para olhá-la, não tanto para vê-la como para que ela notasse que ele
a estava olhando. Meme se aborreceu com a vulgaridade daquele sistema.
Finalmente, Mauricio Babilonia se aproximou para cumprimentar Aureliano
Segundo e só então Meme soube que se conheciam, porque ele tinha
trabalhado na primitiva instalação elétrica de Aureliano Triste e tratava seu
pai com uma atitude de subalterno. Essa comprovação aliviou-a do
desprazer que lhe causava a sua altivez. Não se tinham visto a sós, nem se
tinham dito uma palavra diferente do cumprimento, na noite em que
sonhou que ele a salvava de um naufrágio e ela não experimentava nenhum
sentimento de gratidão e sim de raiva. Era como lhe ter dado uma
oportunidade que ele desejava, sendo que Meme queria o contrário, não só
com Mauricio Babilonia como também com qualquer outro homem que se
interessasse por ela. Por isso ficou tão indignada que depois do sonho, em
vez de detestá-lo, teria experimentado uma urgência irresistível de vê-lo. A
ansiedade se fez mais intensa no correr da semana e no sábado já era tão
premente que teve que fazer um esforço enorme para que Mauricio
Babilonia não notasse, ao cumprimentá-la no cinema, que o coração lhe saía
pela boca. Ofuscada por uma confusa sensação de prazer e raiva, estendeu
lhe a mão pela primeira vez, e só então Mauricio Babilonia se permitiu
apertá-la. Meme chegou, numa fração de segundo, a se arrepender do
impulso mas o arrependimento se transfo rmou imediatamente numa
satisfação cruel, ao comprovar que também a mão dele estava suada e
gelada. Nessa noite, compreendeu que não teria um instante de sossego
enquanto não demonstrasse a Mauricio Babilonia quão vã era a sua
aspiração, e passou a semana voejando em torno dessa ansiedade. Recorreu
a toda espécie de artimanhas inúteis para que Patricia Brown a levasse para
buscar o automóvel. Por último, valeu-se do cabelo-de-fogo norte-americano,
que por essa época estava passando as férias em Macondo e, com o pretexto
de conhecer os novos modelos de automóveis, fez-se levar às oficinas. Desde
o momento em que o viu, Meme deixou de enganar a si mesma, e
compreendeu que o que acontecia na realidade era que não podia mais
suportar o desejo de estar a sós com Mauricio Babilonia e se indignou com a
certeza de que este compreendera isso ao vê-la chegar.
— Vim ver os novos modelos — disse Meme.
— É um bom pretexto — disse ele.
Meme percebeu que estava se queimando na luz da sua altivez e
procurou desesperadamente uma maneira de humilhá-lo. Mas ele não lhe
deu tempo. “Não se assuste”, disse em voz baixa. “Não é a primeira vez que
uma mulher fica louca por um homem.” Sentiu-se tão desamparada que
abandonou a oficina sem ver os novos modelos e passou a noite de extremo a
extremo rolando na cama e chorando de indignação. O cabelo-de-fogo
norte-americano, que realmente começava a lhe interessar, pareceu-lhe um
bebê de fraldas. Foi então que entendeu as borboletas amarelas que
precediam as aparições de Mauricio Babilonia. Vira-as antes, sobretudo na
oficina mecânica, e pensara que estavam fascinadas pelo cheiro da pintura.
Alguma vez tê-las-ia sentido voejar sobre a sua cabeça -na penumbra do
cinema. Mas quando Mauricio Babilonia começou a persegui-la como um
espectro que só ela identificava na multidão, compreendeu que as borboletas
amarelas tinham alguma coisa que ver com ele. Mauricio Babilonia estava
sempre na plateia dos concertos, no cinema, na missa, e ela não necessitava
vê-lo para descobri-lo, porque o indicavam as borboletas. Uma vez, Aureliano
Segundo se impacientou tanto com o sufocante movimento de asas que ela
sentiu o impulso de confiar-lhe o seu segredo como lhe havia prometido,
mas o instinto lhe indicou que desta vez ele não ia rir como de costume:
“Que diria a sua mãe se soubesse.” Certa manhã, enquanto podavam as rosas,
Fernanda lançou um grito de espanto e quis tirar Meme do lugar em que
estava e que era o mesmo lugar do jardim de onde Remedios, a bela, subira
aos céus. Tivera por um instante a impressão de que o milagre ia se repetir
na sua filha, porque tinha-se perturbado com um repentino movimento de
asas. Eram as borboletas. Meme as viu como se tivessem nascido de repente
na luz e seu coração deu um baque. Nesse momento, entrava Mauricio
Babilonia com um pacote que, segundo disse, era um presente de Patricia
Brown. Meme engoliu o rubor, assimilou a perturbação, e até conseguiu um
sorriso natural para pedir-lhe o favor de colocá-lo no parapeito, porque tinha
os dedos sujos da terra. A única coisa que Fernanda notou no homem que
poucos meses depois haveria de expulsar de casa sem se lembrar de que o
tivesse visto alguma vez foi a textura biliosa da pele.
— É um homem muito esquisito — disse Fernanda. — Está escrito na
testa que vai morrer.
Meme pensou que sua mãe tinha ficado impressionada com as
borboletas. Quando acabaram de podar o roseiral, lavou as mãos e levou o
pacote para o quarto para abri-lo. Era uma espécie de brinquedo chinês;
composto de cinco caixas concêntricas e, na última, um cartão
laboriosamente desenhado por alguém que mal sabia escrever: A gente se vê
sábado no cinema. Meme sentiu o terror tardio de que a caixa tivesse estado
tanto tempo no parapeito, ao alcance da curiosidade de Fernanda, e,
embora a lisonjeasse a audácia e o engenho de Mauricio Babilonia, comoveu
a a sua ingenuidade de esperar que ela não faltasse ao encontro. Meme já
sabia que Aureliano Segundo tinha um compromisso no sábado à noite.
Entretanto, o fogo da ansiedade abrasou-a de tal modo no correr da semana
que no sábado convenceu o pai a deixá-la sozinha no cinema e voltar para
buscá-la no final da sessão. Uma borboleta noturna voejou sobre a sua cabeça
enquanto as luzes estiveram acesas. E então aconteceu. Quando as Luzes se
apagaram, Mauricio Babilonia se sentou do seu lado. Meme se sentiu debater
num pântano de desespero, do qual só poderia ser resgatada, como
acontecera no sonho, por aquele homem cheirando a óleo de motor que mal
distinguia na penumbra.
— Se você não tivesse vindo — ele disse — não teria me visto nunca
mais. Meme sentiu o peso da sua mão no joelho e soube que ambos
chegavam naquele instante ao outro lado do desamparo.
— O que me choca em você — sorriu — é que sempre diz exatamente
o que não devia dizer.
Ficou louca por ele. Perdeu o sono e o apetite e se afundou tão
profundamente na solidão que até o pai se transformou num estorvo para
ela. Elaborou um intrincado nó de compromissos falsos para desorientar
Fernanda, perdeu de vista as amigas, pulou por cima dos convencionalismos
para encontrar-se com Mauricio Babilonia a qualquer hora e em qualquer
parte. No princípio, incomodava-a a sua rudeza. Na primeira vez em que se
viram a sós, nos prados desertos atrás da oficina mecânica, ele a arrastou sem
misericórdia a um estado animal que a deixou extenuada. Demorou algum
tempo para se dar conta de que também aquela era uma forma da ternura e
foi então que perdeu o sossego e não vivia senão para ele, transtornada pela
ansiedade de se fundir no seu entorpecedor bafo de óleo esfregado com
água sanitária. Pouco antes da morte de Amaranta, tropeçou de repente
com um espaço de lucidez dentro da loucura e tremeu diante da incerteza
do futuro. Então ouviu falar de uma mulher que fazia prognósticos pelas
cartas e foi visitá-la em segredo. Era Pilar Ternera. Desde que esta a viu
entrar, soube dos recônditos motivos de Meme. “Sente-se”, disse-lhe. “Eu não
preciso do baralho para averiguar o futuro de um Buendía.” Meme ignorava,
e ignorou sempre, que aquela pitonisa centenária era sua bisavó. Tampouco
teria acreditado, depois do agressivo realismo com que ela lhe revelou que a
ansiedade do namoro não encontrava repouso a não ser na cama. Era o
mesmo ponto de vista de Mauricio Babilonia, mas Meme se recusava a lhe
dar crédito, pois no fundo supunha que ele estava inspirado em algum mau
critério de operário braçal. Ela pensava então que uma forma de amor
derrotava a outra, porque fazia parte da índole dos homens repudiar a fome
uma vez satisfeito o apetite. Pilar Ternera não só dissipou o erro como
também lhe ofereceu a velha cama de lona onde ela concebera Arcadio, o
avô de Meme, e onde concebera depois a Aureliano José. Ensinou-lhe,
além disso, como prevenir a concepção indesejável mediante a vaporização
de cataplasmas de mostarda e deu receitas de beberagens que em casos de
contratempo faziam expulsar “até os remorsos de consciência”. Aquela
entrevista infundiu em Meme o mesmo sentimento de valentia que
experimentara na tarde da bebedeira. A morte de Amaranta, entretanto,
obrigou-a a adiar a decisão. Enquanto duraram as nove noites, ela não se
afastou um só instante de Mauricio Babilonia, que andava confundido com a
multidão que invadira a casa. Vieram logo o luto prolongado e o
enclausuramento obrigatório e se separaram por algum tempo. Foram dias
de tanta agitação interior, de tanta ansiedade irreprimível e tantos desejos
reprimidos, que na primeira tarde em que Meme conseguiu sair foi
diretamente à casa de Pilar Ternera. Entregou-se a Mauricio Babilonia sem
resistência, sem pudor, sem formalismos e com uma vocação tão fluida e
uma intuição tão sábia que um homem mais desconfiado que o seu poderia
confundir com uma requintada experiência. Amaram-se duas vezes por
semana durante mais de três meses, protegidos pela cumplicidade inocente
de Aureliano Segundo, que acreditava sem malícia as meias-liberdades da
filha, só para vê -la liberada da rigidez da mãe. Na noite em que Fernanda os
surpreendeu no cinema, Aureliano Segundo se sentiu angustiado pelo peso
da consciência e visitou Meme no quarto onde a trancara Fernanda,
confiando em que ela se desafogaria com as confidências que lhe estava
devendo. Mas Meme se negou a tudo. Estava tão segura de si mesma, tão
aferrada à sua solidão, que Aureliano Segundo teve a impressão de que já
não existia nenhum vínculo entre eles, que a camaradagem e a
cumplicidade não eram mais do que uma ilusão do passado. Pensou em falar
com Mauricio Babilonia, acreditando que a sua autoridade de antigo patrão
fá-lo-ia desistir dos seus propósitos, mas Petra Cotes convenceu-o de que
aquilo era assunto de mulher, de modo que ficou flutuando num limbo de
indecisão, e mal sustentado pela esperança de que a clausura terminasse
com as angústias da filha. Meme não deu nenhuma amostra de aflição. Pelo
contrário, do quarto contíguo Úrsula percebeu o ritmo sossegado do seu
sono, a serenidade dos seus afazeres, a ordem das suas refeições e a boa
saúde da sua digestão. A única coisa que intrigou Úrsula depois de quase
dois meses de castigo foi que Meme não tomasse banho de manhã, como
todos faziam, mas às sete da noite. Uma vez pensou em preveni-la contra os
escorpiões, mas Meme era tão esquiva com ela, pela convicção de que a tinha
denunciado, que preferiu não perturbá-la com impertinências de tataravó.
As borboletas amarelas invadiam a casa desde o entardecer. Todas as noites,
ao sair banheiro, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando
borboletas com a bomba de inseticida. “Isto é uma desgraça”, dizia. “Toda a
vida me disseram que as borboletas noturnas chamam o azar.” Certa noite,
enquanto Meme estava no banheiro, Fernanda entrou no seu quarto por
acaso via tantas borboletas que mal se podia respirar. Apanhou pano
qualquer para espantá-las e seu coração gelou de pavor ao relacionar os
banhos noturnos da filha com os cataplasmas de mostarda que rolaram pelo
chão. Não esperou por momento oportuno, como fizera da primeira vez. No
dia seguinte, convidou para almoçar o novo alcaide que, como tinha descido
do páramo, e pediu a ele que ordenasse uma guarda noturna para o quintal,
porque tinha a impressão de estavam roubando as galinhas. Nessa noite, a
guarda abateu Mauricio Babilonia quando levantava as telhas para entrar
banheiro onde Meme o esperava, nua e tremendo de amor entre os
escorpiões e as borboletas, como havia feito quase todas as noites dos últimos
meses. Um projétil incrustado coluna vertebral reduziu-o à cama pelo resto
da vida. Morreu de velho na solidão, sem uma queixa, sem um protesto, uma
só tentativa de deslealdade, atormentado pelas lembranças e pelas
borboletas amarelas que não lhe concederam um instante de paz e
publicamente repudiado como ladrão galinhas.
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Cem Anos de Solidão (12.3) - Meme fugiu da conversa
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