sábado, 29 de junho de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(3)

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837




2 — O Esconderijo (3)




continuando...


Mesmo que, para salvar mil vezes a vida, apenas tivesse que mexer um membro ou pronunciar uma sílaba, não o teria feito. O animal, fosse ele qual fosse, continuava na mesma posição, sem tentar nenhum ataque imediato e eu continuava deitado debaixo dele num estado de completa impotência, que julgava próximo da morte. Sentia que as minhas faculdades físicas e espirituais me abandonavam rapidamente, em resumo, sentia-me morrer e morria de terror. O meu cérebro flutuava, a náusea mortal da vertigem invadia-me, os olhos traíam-me e os globos brilhantes fixos em mim pareciam também escurecer. Fazendo um supremo e violento esforço, lancei a Deus uma débil prece e resignei-me a morrer. O som da minha voz parecia acordar toda a fúria latente do animal, que se atirou para cima de mim. Mas qual não foi a minha surpresa quando, soltando um longo e surdo gemido, começou a lamber-me o rosto e as mãos com a maior petulância e as mais extravagantes demonstrações de afeto e de alegria! Estava como que aturdido, confuso de espanto, mas não podia esquecer os gemidos característicos do Tigre, o meu terra-nova, e conhecia bem a forma bizarra das suas carícias. Era ele. Senti como que uma torrente de sangue afluir-me às têmporas, como que uma sensação vertiginosa, esmagadora de libertação e ressurreição. Ergui-me precipitadamente do colchão da minha agonia e, lançando-me ao pescoço do meu fiel amigo e companheiro, aliviei a opressão do meu coração chorando. 

Como já acontecera antes, quando me levantei do colchão, o meu cérebro estava mergulhado na mais perfeita confusão e desordem. Durante bastante tempo, foi-me impossível ligar dois pensamentos, mas lenta e gradualmente voltou-me a faculdade de pensar e, por fim, lembrei-me das circunstâncias da minha situação. Quanto à presença do Tigre, em vão, me esforcei por explicá-la e, depois de me ter perdido em mil conjeturas, alegrei-me pura e simplesmente por ele ter vindo partilhar a minha lúgubre solidão e confortar-me com as carícias. Há muita gente que gosta de cães, mas eu tinha por Tigre um afeto muito mais ardente do que o comum e nunca uma criatura o mereceu mais do que ele. Durante sete anos lora o meu companheiro inseparável e, em numerosas ocasiões, tinha-me dado a prova de todas as nobres qualidades que nos fazem estimar um animal. Quando era um pequeno cachorro, tinha-o arrancado das manápulas de um malandrim de Nantucket que o arrastava para a água com uma corda ao pescoço, e o cão, quando cresceu, pagou-me a sua dívida, três anos mais tarde, salvando-me da moca de um ladrão. 

Peguei então no relógio e, encostando-o ao ouvido apercebi-me que tinha parado outra vez; mas não fiquei nada surpreendido, pois atendendo ao estado dos meus sentidos, estava convencido de que tinha dormido, como já me havia acontecido, durante um período de tempo muito longo. Quanto tempo? Não sabia. Estava consumido pela febre e a sede era quase insuportável. Procurei, às apalpadelas, na caixa, a pouca água que ainda devia existir da minha provisão, porque não tinha luz, pois a vela tinha ardido até ao fim e naquele momento não conseguia encontrar os fósforos. Encontrando, por fim, o cântaro, verifiquei que estava vazio; certamente tinha sido o Tigre que, não resistindo à sede, bebera a água e devorara o que restava da perna de carneiro, cujo osso, impecavelmente limpo, estava à entrada da caixa. Podia passar sem a carne, mas sentia faltarem-me as forças ao pensar na água. Estava tão fraco que ao menor movimento, ao mais ligeiro esforço, tremia todo, como num violento acesso de febre. Para aumentar a minha desgraça, o brigue dançava e balançava com grande violência e os barris de óleo, colocados por cima da caixa ameaçavam cair a qualquer momento e tapar a única saída do meu esconderijo. Além disso, sofria horrivelmente com o enjoo. Todas estas considerações convenceram-me a dirigir-me ao acaso em direção ao alçapão e a tentar obter socorro imediato, antes de ser incapaz de o fazer. Tomada esta resolução, procurei de novo, às apalpadelas, os fósforos e as velas. Descobri os fósforos com muito esforço, mas, não encontrando as velas tão depressa quanto esperava, pois nem sequer me lembrava onde as tinha deixado, abandonei as pesquisas e, recomendando a Tigre que se mantivesse sossegado, comecei a minha viagem em direção ao alçapão. 

Nesta tentativa, a minha extrema fraqueza ainda se tornou mais manifesta. Só com um enorme esforço conseguia arrastar-me e muitas vezes as minhas pernas dobravam sob o meu peso. Depois, caindo para a frente, ficava durante alguns minutos num estado vizinho da insensibilidade. Contudo, lutava sempre e avançava lentamente, receando a todo o momento desmaiar naquele estreito e complicado labirinto do porão, o que teria como consequência a morte. Depois, fazendo um tremendo esforço com toda a energia de que dispunha, bati violentamente com a testa na esquina pontiaguda de uma caixa reforçada de ferro. O acidente apenas me causou um aturdimento durante alguns instantes, mas descobri, com indescritível mágoa, que o movimento seco e violento do navio tinha lançado a caixa no meu caminho, cortando completamente a passagem. Mesmo usando toda a minha força, não a consegui deslocar nem sequer uma polegada, pois estava solidamente entalada entre as caixas vizinhas e os apetrechos de bordo. Devia, portanto, fraco como estava, saltar por cima do obstáculo e retomar o caminho do outro lado. A primeira hipótese apresentava demasiados perigos e dificuldades e não podia pensar nela sem sentir um arrepio. Esgotado física e espiritualmente, acabaria com certeza por me perder se tentasse semelhante imprudência, e por morrer como um miserável naquele lúgubre e repugnante labirinto do porão. 

Quando me levantei para executar o meu plano, verifiquei que a empresa ultrapassava as minhas previsões e implicava um trabalho muito mais complicado do que eu imaginara. De cada lado da estreita passagem, erguia-se uma verdadeira parede feita de uma enorme quantidade de materiais dos mais pesados; o menor descuido da minha parte podia fazê-los cair sobre mim; se escapasse dessa desgraça, o caminho de regresso podia ficar completamente vedado pelos objetas deslocados, e assim, estava de novo frente a um obstáculo. Quanto à caixa, era muito alta e maciça e os pés não encontravam nela nenhum ponto de apoio, esperando conseguir elevar-me apoiando-me nos braços. Se tivesse tido êxito, era mais que certo não ter força suficiente para me elevar e, de qualquer maneira, era melhor não ter conseguido. Mais tarde, quando fazia um esforço desesperado para deslocar a caixa, senti como que uma vibração sensível do lado voltado para mim. Deslizei a mão sobre os interstícios das tábuas e apercebi-me que uma delas, das mais largas, oscilava. Com uma faca, que felizmente trazia comigo, consegui com muito esforço arrancá-la por completo. Passando através da abertura, descobri, com alegria, que não havia tábuas do outro lado, por outras palavras que a caixa não tinha tampa e que tinha sido através do fundo que tinha aberto passagem. A partir dali segui a corda sem grandes dificuldades, até ao local onde estava presa ao prego. Sentia o coração a bater com mais força, quando empurrei suavemente a porta do alçapão, que não se abriu com a prontidão que eu esperava; empurrei então com um pouco mais de força, receando que alguém, sem ser Augusto, se encontrasse na cabina. No entanto, para meu espanto, a porta continuava fechada e eu fiquei muito inquieto, porque sabia que antes ela cedia à menor pressão. Empurrei-a com vigor e ela não mexeu; com toda a força e não quis ceder; com raiva, com fúria, com desespero e ela desafiou todos os meus esforços. Era evidente, a julgar pela inflexibilidade da resistência, que o buraco fora descoberto e solidamente tapado, ou que algum objeta muito pesado fora colocado em cima, afastando qualquer hipótese de ser removido. 

O que senti foi uma extrema sensação de horror e de medo. Em vão tentei raciocinar sobre a causa provável que me emparedava no meu túmulo. Não conseguia dar um encadeamento lógico aos meus pensamentos; deixei-me cair no chão e abandonei-me, sem resistência, aos pensamentos mais negros, entre os quais se salientavam, esmagadores e terríveis, a morte pela sede, a morte pela fome, a asfixia e o enterro prematuro. No entanto, uma parte da minha presença de espírito voltou-me. Levantei-me e procurei tateando as juntas e as ranhuras do alçapão. Tendo-as encontrado, examinei-as escrupulosamente, para verificar se deixavam passar qualquer luz da cabina, mas não se via nada. Introduzi, então a lâmina da faca de afiar as penas, através das fendas, até encontrar um obstáculo duro. Ao tocar-lhe, descobri que era uma enorme massa de ferro e, pela sensação típica de ondulação que a lâmina ao deslizar de um lado para o outro me transmitia, concluía que devia ser uma corrente. A única coisa que agora me restava fazer era regressar à minha caixa e, aí, resignar-me com o meu triste destino, ou dedicar-me a acalmar o espírito de forma a tomá-lo capaz de arquitetar um plano de salvação. Iniciei imediatamente a caminhada e, ultrapassando numerosas dificuldades, consegui regressar à caixa. Deixei-me cair, totalmente esgotado, sobre o colchão, e Tigre estendeu-se ao comprido a meu lado, como que desejoso de me consolar de todas as minhas desgraças e de me exortar a suportá-las com coragem. 

Com o tempo, o seu estranho comportamento despertou-me a atenção. Depois de me lamber a cara e as mãos durante alguns minutos, parava de repente e soltava um gemido surdo. Quando estendia as mãos para ele, encontrava-o sempre de barriga para cima e patas no ar. Esta conduta, pareceu-me estranha e não sabia de que maneira explicá-la. Como o pobre cão parecia desolado concluí que talvez estivesse ferido. Peguei-lhe nas patas e examinei-as com cuidado, mas não encontrei nenhum sintoma de ferimento. Pensei então que tivesse fome e dei-lhe um grande pedaço de presunto que devorou avidamente e depois recomeçou com o seu estranho comportamento. Imaginei então que, tal como eu, sofria com sede, e ia adotar esta conclusão como a única verdadeira, quando me lembrei que apenas lhe tinha examinado as patas e que podia muito bem estar ferido no corpo ou na cabeça. Tateei cuidadosamente a cabeça, mas não encontrei nada. Porém, ao passar a mão pelo dorso, senti como que uma ligeira ereção do pelo que o atravessava a toda a largura. Palpando-lhe o pelo com o dedo, descobri um cordel que segui e que dava uma volta ao corpo do Tigre. Graças a um exame mais minucioso, encontrei uma pequena ligadura que me pareceu conter um papel; o cordel atravessava a ligadura e tinha sido ajustada de forma a fixá-la mesmo por baixo da espádua esquerda do animal.


continua...


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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 

Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(2)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(2)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(3)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 3 — «Tigre» Enraivecido(1)


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