domingo, 16 de junho de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(2)

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837




2 — O Esconderijo (2)




continuando...


A lanterna emitia uma luz tão fraca, que foi a muito custo que consegui encontrar o caminho através daquela confusão de objetos que me cercavam. À medida que os meus olhos se foram habituando à obscuridade, avançava com menos dificuldade, mantendo-me agarrado às abas do casaco do meu camarada. Chegamos por fim, depois de termos rastejado e passado por intermináveis e estreitas passagens, a uma caixa reforçada de ferro, parecida com as que, por vezes, são utilizadas para embalar faiança cara. Tinha cerca de quatro pés de altura e seis de comprimento, mas era excessivamente estreita. Em cima estavam duas enormes barricas de óleo, vazias, e sobre elas uma grande quantidade de esteiras, empilhadas até ao teto. À volta e em todos os sentidos, tudo estava empilhado de forma caótica numa mistura heterogênea de caixas, cestos, barris e fardos, a ponto de ser para mim quase um milagre termos conseguido chegar até à caixa em questão. Soube então que Augusto se encarregara da arrumação da carga no porão, com o objetivo de me preparar um excelente esconderijo, com a ajuda de um único homem que não partia no brigue. 

O meu camarada mostrou-me então que uma das paredes da caixa se podia tirar à vontade. Afastou-a para o lado e vi o interior que me divertiu muito. O fundo estava coberto com um colchão roubado de uma das camas da cabina e ali havia toda a espécie de conforto que podia ser contido num local tão reduzido, mas deixando-me espaço para me mexer à vontade quer sentado quer deitado. Havia, entre outras coisas, alguns livros, canetas, tinta e papel, três mantas, um grande cântaro cheio de água, um pequeno barril com biscoitos, três ou quatro enormes salpicões de Bolonha, um grande presunto, uma perna de carneiro assada e meia dúzia de revigorantes e licores. Tomei imediatamente posse do meu compartimento com um sentimento de satisfação maior, tenho a certeza, do que um monarca ao entrar no seu palácio. Augusto ensinou-me então como fixar o lado móvel da caixa; depois, aproximando a lanterna da coberta mostrou-me a ponta de uma corda preta que aí estava presa. Aquela corda, segundo me disse, partia do esconderijo, serpenteava através do cavername e terminava num prego preso na coberta, mesmo por baixo do alçapão feito no seu quarto. Por meio daquela corda eu podia facilmente encontrar o caminho, sem que ele me servisse de guia, no caso de algum acidente imprevisto tornar necessária a viagem. Despediu-se então de mim, deixando-me a lanterna com uma boa provisão de velas e de fósforos e prometendo visitar-me sempre que pudesse. Estávamos a 17 de junho. 

Fiquei no esconderijo três dias e três noites (segundo penso, de acordo com os meus cálculos), sem sair, exceto duas vezes para esticar as pernas, mantendo-me de pé entre duas caixas, mesmo em frente da abertura. Durante todo este tempo não tive qualquer notícia de Augusto, mas isso não me inquietou, porque sabia que o brigue partiria de um momento para o outro e, no meio de toda aquela agitação, o meu amigo não devia ter muitas ocasiões para me ir visitar. Por fim, ouvi o alçapão abrir-se e fechar-se e ele chamou-me com uma voz surda, perguntando-me se tudo estava bem e se tinha necessidade de alguma coisa. 

— De nada — respondi. — Estou tão bem quanto é possível. Quando é que o brigue larga? 

— Levanta ferro dentro de meia hora — respondeu-me. — Vim para lhe dar a notícia e por recear que a minha ausência o inquietasse. Só devo ter oportunidade de descer daqui a algum tempo, talvez três ou quatro dias. Tudo corre bem cá em cima. Depois de eu ter subido e fechado o alçapão, siga a corda até ao prego, onde encontrará o meu relógio; pode ser-lhe útil, pois não tem luz do dia para controlar o tempo. Aposto que não me sabe dizer há quanto tempo está aqui enterrado: apenas há três dias, estamos a 20 de junho. Gostaria de levar o relógio até à caixa, mas receio que precisem de mim. 

E, dito isto, foi-se embora. 

Uma hora depois da sua partida, senti perfeitamente o brigue pôr-se em movimento e congratulei-me por iniciar uma viagem a sério. Feliz com esta ideia, resolvi manter-me alegre e esperar tranquilamente o curso dos acontecimentos, até que me fosse permitido trocar a minha acanhada caixa por aposentos mais amplos, mas talvez menos requintados. A minha primeira preocupação foi ir buscar o relógio. Deixei a lanterna acesa e avancei às apalpadelas na escuridão, seguindo a corda através de meandros tão complicados que, por vezes, e apesar de todo o trabalho e caminho percorrido, me apercebia estar a um ou dois pés da posição precedente. Porém, passado algum tempo, cheguei ao prego e, apoderando-me do motivo de tão longa viagem, regressei sem novidade. Examinei, então, os livros de que Augusto me tinha falado com tão encantadora solicitude e escolhi A Expedição de Lewis e Clark à Embocadura da Columbia. Distraí-me durante algum tempo com esta leitura, mas sentindo os olhos a fecharem-se, apaguei a luz e, em breve, mergulhei num sono profundo. 

Ao acordar, senti o espírito estranhamente confuso e passou algum tempo antes que eu pudesse lembrar-me das diversas circunstâncias da minha situação. No entanto, pouco a pouco, lembrei-me de tudo. Acendi a vela e olhei para o relógio, mas tinha parado; não tinha, portanto, nenhuma maneira de saber quanto tinha durado o meu sono. Tinha os membros dormentes devido a cãibras e, para os desentorpecer, fui obrigado a estar de pé entre as caixas. Sentindo uma fome quase devoradora, pensei na perna de carneiro, da qual tinha comido um bocado antes de adormecer, e que achara magnífica. Mas qual não foi o meu espanto ao descobrir que estava num estado de total putrefação! Esta circunstância causou-me grande inquietação, pois, relacionando-a com a desordem do meu espírito, ao acordar, inclinei-me a acreditar que tinha dormido durante um período de tempo insólito. A atmosfera pesada do porão devia ter tido influência e, com o tempo, podia levar a resultados mais deploráveis. Doía-me muito a cabeça e parecia-me que respirava com dificuldade; por fim, sentia-me como que oprimido por uma série de ideias melancólicas. No entanto, não ousei abrir o alçapão ou tentar qualquer outra coisa e, dando corda ao relógio, fiz os possíveis por me resignar. 

Durante as longas e insuportáveis vinte e quatro horas que se seguiram, ninguém veio em meu auxílio, e não pude deixar de acusar Augusto da indiferença a que me votara. O que, acima de tudo, me alarmava era o facto de a água do cântaro estar reduzida a quase meio-pinto e de eu sofrer muito com sede, pois tinha comido de mais do salpicão de Bolonha, depois da perda da perna de carneiro. Tornei-me excessivamente inquieto e não conseguia interessar-me pelos livros. Estava também dominado por um desejo enorme de dormir, mas tremia perante a ideia de adormecer, receando que o ar viciado do porão contivesse alguma influência perniciosa, as emanações de carvão. Contudo, o balanço do brigue provava que estávamos no mar alto e um barulho surdo, um fragor, que chegava até aos meus ouvidos vindo de muito longe, convencia-me que o vento que soprava não era um vento vulgar. Não conseguia imaginar nenhum motivo para explicar a ausência de Augusto. Já devíamos estar suficientemente longe para eu poder subir à coberta. Podia ter-lhe acontecido algum acidente, mas não conseguia imaginar nada que me explicasse por que me deixava tanto tempo prisioneiro, a não ser que tivesse morrido subitamente ou caído borda fora. Mas, só pensar nisso, ainda que por segundos, era-me insuportável. Também era possível que tivéssemos sido batidos por ventos contrários e ainda estivéssemos nas proximidades de Nantucket. Porém, em breve fui obrigado a renunciar a esta ideia, pois se fosse esse o caso, o brigue teria mudado frequentemente de bordo e eu estava convencido, devido à inclinação contínua do barco para bombordo, que fizera toda a rota com vento fraco de estibordo. Aliás, se ainda estivéssemos nas vizinhanças da ilha, não teria Augusto podido visitar-me para me informar da situação? 

Refletindo desta maneira sobre a minha situação deplorável e solitária, resolvi esperar mais vinte e quatro horas, depois das quais, se não recebesse socorro, me dirigiria para o alçapão e tentaria falar com o meu amigo ou, pelo menos, respirar um pouco de ar fresco através da abertura e arranjar uma nova provisão de água. Enquanto pensava nisto, e apesar de toda a minha resistência, caí num sono profundo, ou antes, numa espécie de torpor. Os meus sonhos eram horríveis. Todo o gênero de calamidades e horrores se abatiam sobre mim. Entre outros terrores, sentia-me sufocado até à morte por demônios com o mais sinistro e feroz aspecto. Enormes serpentes estreitavam-me entre os seus anéis e fixavam-me com os seus olhos brilhantes e terríveis. Depois, havia desertos infinitos hostis, solitários e angustiantes que se estendiam diante de mim. Gigantescos troncos de árvores cinzentas e sem folhas desfilavam como que numa procissão sem fim, até onde a minha vista podia alcançar. As raízes mergulhavam em imensos pântanos, cujas águas se espalhavam numa imensidão, terrivelmente negras, sinistras e horríveis na sua imobilidade. As estranhas árvores pareciam dotadas de uma vitalidade humana e, agitando os seus braços de esqueleto, pediam perdão às águas silenciosas e imploravam mais misericórdia num tom vibrante, cheio de desespero e da mais aguda agonia. Depois a cena mudava e eu estava de pé, nu e só, nas areias escaldantes do Saara. A meus pés jazia um feroz leão dos trópicos. De repente os seus olhos espantados abriam-se e caíam sobre mim. Num salto convulsivo, levantava-se e descobria a fila dos seus dentes terríveis. Logo a seguir, soltava um rugido semelhante a um trovão e eu atirava-me para o chão. Sufocado pelo paroxismo do terror sentia-me enfim meio acordado. Mas o meu sonho não era apenas sonho. Pelo menos agora estava na posse das minhas faculdades. As patas de um monstro enorme e verdadeiro apoiavam-se no meu peito, o seu bafo quente soprava nas minhas orelhas e as suas brancas e sinistras presas brilhavam na escuridão.




continua...



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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 

Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(2)
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