segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 3 — «Tigre» Enraivecido (2)

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837




3 — «Tigre» Enraivecido (2)




continuando...


Com o tempo, levantei-me mais uma vez e ocupei-me a refletir sobre os horrores que me cercavam. Talvez conseguisse viver mais vinte e quatro horas sem água, porém mais tempo era impossível. Durante o primeiro período da minha reclusão, tinha utilizado livremente os licores que Augusto me deixara, mas eles apenas tinham servido para excitar a minha febre, sem nada aplacarem a minha sede. Agora só me restava um quarto de pinto de uma espécie de licor feito de caroços de frutos, muito forte e muito desagradável. Os salpicões tinham acabado, do presunto restava apenas um pedaço de courato e exceto algum resto de biscoito, tudo o mais tinha sido devorado pelo Tigre. Para agravar a minha angústia, sentia que a minha dor de cabeça aumentava cada vez mais, sempre acompanhada por aquela espécie de delírio, que me atormentava com maior ou menor intensidade, desde o primeiro desmaio. Há já algumas horas que respirava com grande dificuldade e, agora, cada esforço de respiração era seguido por um movimento espasmódico do peito que muito me alarmava. Mas ainda tinha outra razão completamente diferente para me inquietar, e eram os fatigantes terrores dela resultantes que me arrancavam do meu torpor e me impeliam a soerguer-me no colchão. Essa inquietação vinha-me do comportamento do cão. 

Tinha observado uma alteração na sua maneira de ser, enquanto esfregava o fósforo no papel a quando da minha primeira tentativa. Precisamente quando esfregava, encostara o focinho na minha mão com um ligeiro rosnar; mas, naquele momento, estava demasiado ocupado, para dar grande atenção àquele pormenor. Pouco depois, se bem se lembram, atirei-me para cima do colchão e caí numa espécie de letargia. Apercebi-me então de um estranho silvar junto do meu ouvido e descobri que esse ruído provinha do Tigre, que bufava e respirava, como se estivesse possuído por uma grande agitação, e cujos olhos brilhavam furiosamente no meio da escuridão. Falei-lhe e ele respondeu-me com um rosnar surdo, depois do que ficou tranquilo. Tomei a cair no meu torpor para de novo ser despertado pelo mesmo motivo. Isto repetiu-se três ou quatro vezes e, por fim, a sua conduta causou-me tanto medo que me senti completamente acordado. Estava então deitado contra a abertura da caixa, rosnando num tom horrível, embora baixo e surdo, e arreganhando os dentes como se estivesse atormentado por fortes convulsões. 

Não duvidava que a privação de água e a atmosfera viciada do porão o tinham enraivecido, e não sabia o que fazer. Não suportava a ideia de o matar e, no entanto, isso parecia-me absolutamente necessário para salvar a minha própria vida. Distinguia perfeitamente os seus olhos fixos em mim com uma expressão de animosidade mortal e pensava que ele me atacaria a qualquer momento. Por fim, senti que não podia suportar por mais tempo aquela horrível situação e resolvi sair da caixa a todo o custo e acabar com ele, se uma oposição da sua parte me obrigasse a esse extremo. Para fugir, precisava de passar diretamente sobre o seu corpo e dir-se-ia que já pressentia as minhas intenções, pois levantou-se sobre as patas dianteiras, o que deduzi pela mudança de posição dos seus olhos, e mostrou a fila das suas presas brancas, que eu podia distinguir perfeitamente. Peguei nos restos do courato do presunto e na garrafa que continha o licor, apertando-os bem contra o meu corpo, e na grande faca de cozinha que Augusto me tinha deixado; depois, envolvendo-me no meu casaco, o melhor possível, avancei em direção à abertura. Assim que fiz um movimento, o cão, soltando um uivo terrível, atirou-se à minha garganta. O enorme peso do seu corpo atingiu-me no ombro e eu caí violentamente sobre a esquerda, enquanto o animal enraivecido passava por cima de mim. Tinha caído de joelhos, com a cabeça mergulhada nas mantas, o que me protegia contra os perigos de um segundo ataque igualmente furioso, pois sentia os dentes agudos que apertavam com força os panos que me cobriam o pescoço e que, felizmente não conseguiam penetrar no tecido. Encontrava-me então debaixo do animal e em breve estaria completamente em seu poder. O desespero deu-me forças: levantei-me de repente, atirando com o cão para longe de mim, com a simples energia do meu movimento e puxando as mantas do colchão. Atirei-as para cima dele e, antes que tivesse tempo de se livrar delas, alcancei a porta, que fechei, para o impedir de me seguir. Mas nesta batalha, tinha sido obrigado a abandonar o bocado de courato do presunto, restando-me apenas como provisão, o quarto de pinto de licor. Quando pensei nisto, senti-me atacado por um desses ataques de perversidade, habituais nas crianças mimadas em casos semelhantes e, levando a garrafa aos lábios, esvaziei-a até à última gota e depois parti-a com fúria a meus pés.

Assim que o eco do vidro estilhaçado se desvaneceu, ouvi o meu nome pronunciado por uma voz inquieta e abafada na direção dos alojamentos da tripulação. Era um incidente tão inesperado e causou-me tanta emoção que não consegui responder. Tinha perdido completamente a faculdade de falar e, torturado pelo receio de que o meu amigo me julgasse morto e se fosse embora sem tentar encontrar-me, mantinha-me de pé, entre as caixas, perto da porta do meu esconderijo, tremendo convulsivamente, de boca aberta e lutando por recuperar a fala. Ainda que mil mundos dependessem de uma única palavra, eu não teria conseguido pronunciá-la. Ouvi então como que um ligeiro movimento através do porão, um pouco adiante do local onde me encontrava. E depois o som tornou-se menos audível... mais ainda... enfraquecendo cada vez mais. Poderei alguma vez esquecer o que senti? Ele ia-se embora... o meu amigo, o meu companheiro, de quem tanto esperava! Afastava-se... ia abandonar-me... ia-se embora! Ia deixar-me morrer miseravelmente, expirar na mais horrível e asquerosa prisão... e uma palavra, uma única palavra, podia salvar-me!... mas essa palavra não era capaz de a articular! Senti, tenho a certeza, mais de dez mil vezes as torturas da morte. A cabeça começou a andar à volta e eu caí, possuído por uma fraqueza mortal, contra a extremidade da caixa. 

Quando caí, a faca de cozinha saltou-me do cinto das calças e rolou pelo chão com um ruído metálico. Não, nunca tinha ouvido uma música tão deliciosa e doce! Pus-me à escuta para verificar o efeito do ruído sobre Augusto, porque sabia que só podia ser ele quem pronunciava o meu nome. Tudo ficou em silêncio durante alguns instantes, mas depois ouvi de novo a palavra Artur! repetida várias vezes em voz baixa e hesitante. A esperança que renascia libertou de repente a minha fala presa e gritei com toda a força: 

— Augusto! Oh, Augusto! 

— Shiu! Por amor de Deus, cale-se! — respondeu uma voz trémula de agitação. — Já vou ter consigo... assim que consiga abrir caminho através do porão. 

Ouvi-o remexer durante muito tempo e cada instante parecia-me um século. Por fim, senti a sua mão sobre o meu ombro e ao mesmo tempo levava-me uma garrafa de água aos lábios. Só aqueles que foram, de súbito, arrancados às garras da morte, ou que conheceram as torturas insuportáveis da sede, em circunstâncias tão complicadas como as que me afligiam na minha lúgubre prisão, podem imaginar as inefáveis delícias que me proporcionou aquela boa golada, bebida com lentidão, mas de um só trago, desse líquido requintado, o mais perfeito de todos. 

Depois de ter saciado a minha sede, Augusto tirou do bolso três ou quatro batatas cozidas e frias, que devorei com a maior avidez. Trouxera também uma lanterna e os deliciosos raios de luz que emitia não me causavam menos alegria do que a comida e a bebida. Mas eu estava impaciente por saber a causa da sua ausência prolongada e ele começou a contar-me o que se tinha passado a bordo durante o meu cativeiro.



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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 

Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(2)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(2)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(3)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 3 — «Tigre» Enraivecido (1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 3 — «Tigre» Enraivecido (2)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 4 — Revolta e Massacre


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