sexta-feira, 4 de setembro de 2020

histórias davóinha: becos sem saída (I) 03bs - sobre nós e histórias borradas

becos sem saída

(I) o descolocado
03bs – sobre nós e histórias borradas


baitasar



manda quem pode e quer, obedece quem precisa obedecer, é o ditado dos livros de colégio do velho que a guria nem chegou entrar de visita, Eu não mando e nem sou mandada, nas ruas quem manda é quem se manda, é o ditado que a guria gosta de repetir para quem é vivo-morto das ruas da villa risonha, vida sem colégio, sem deus e sem-teto, Não é tão ruim quanto parece, velho.

o mais velho soltou-se de um riso que mais parecia seu gemido desesperado da raiva, desamparo, o sentimento da injustiça que volta e meia lhe tomava o corpo e o fazia estremecer como o canto do passarinho preso, o peito sufocando na gaiola da vida mansa e para sempre a mesma coisa do mesmo

Bobagem, pura bobagem e burrice, você é mais uma na maioria silenciosa que serve de alimento aos fortes, Maioria silenciosa... o que é isso, velho, perguntou a miúda surpresa e confusa, nunca tinha escutado da boca do velho essas coisas tão sem sentido e difícil de entender, Um lugar-esconderijo pra quem acredita que não tem voz e nunca vai ter, não tem nada. A guria nunca ouviu falar que os fracos alimentam os fortes com a sua carne, suor, sangue e filhos? E que devemos ser agradecidos por isso a vida toda? Por onde a guria tem andado? Essa gente poderosa nem diz obrigado. Somos a comida e devemos agradecer esse privilégio, O velho tá muito estranho hoje, Pode ser, mas desamarrar nós não é uma coisa fácil. Mais estranho é perder a memória do sofrimento e não sair mais do mesmo lugar de tristeza. Desacordar-se pra seguir em frente, seguir cego e surdo, passando pelo mundo, pela vida, sem tomar conhecimento de porra nenhuma, Eu tô sempre em frente, velho, Será? Ou quem sabe tu tá andando atrás do rabo, Que conversa é essa de rabo, velho, É impossível lutar contra o privilégio de ser o alimento dessa gente de regalias. Ninguém cai enquanto tem o apoio dessa maioria silenciosa, Não entendei nada, velho, Eu sei, nem eu entendo meu medo. Então, agradeço por me permitirem ser entortado e devorado, pedaço por pedaço, o tempo todo da vida, Ninguém me come, velho, e se comeu foi porque deixei, A guria não se manda, se duvida, é só fazer um teste...

Teste? Que teste?

o mais velho olhou a escuridão da praça, tinha o olhar duro e a voz amarga, Deixa pra lá... vamos continuar a leitura dessa papelada amarelada, quem sabe aprendemos alguma coisa desse livro de folhas soltas, a confusão na miúda e o medo no velho, dois exilados da vida definhando, um arrependendo-se das atitudes que não teve, das palavras que sabia e que não disse, das lutas que fugiu, um bosta no seu modo de culpar a si mesmo; a outra, uma figura triste sem saber bem a causa de tanta tristeza, querendo fugir sem saber para onde, sentindo-se um estorvo de si mesma, duas sombras silenciosas desprotegidas e desamparadas com palavras sem graça, fedidas e sem grandeza, ninguém para escutar seus gemidos inumanos, abandonados e desorganizados, incapazes de governar quem nos governa, sem direitos e sem deveres, a villa alegre agradece tamanha ignorância, parece que nada funciona para essa massa assombrada, enfraquecida e deseducada além da desinformação, gente separada da realidade com fantasia. Guria..., O que é, velho, O povo não governa porra nenhuma!

O velho parece que tá querendo assustar com tanta palavra difícil, os dois se encarava na escuridão da praça, o mais velho achou melhor seguir na contação de outras ocorrências que tinha notícia, algumas que presenciou no entrevero daqueles dias – e se omitiu silencioso –, um nó desamarrado solta um fio agarrado em outro nó que também precisa ser desatado, a vida tem muitos nós, mas quando se deseja mais que tudo os privilégios que quem manda nos oferece precisamos abrir mão de perguntar quem sofre, quem perde, é quando aprendemos a deslembrar, até chegar o tempo que não dá mais para desacostumar a memória. e nos perguntamos se queremos lembrar o que deslembramos, A guria lembra de alguma coisa?

Não sei muito, velho. As coisas que sei aprendei nas ruas. Não sei o que posso lembrar, mas o que lembrar eu vou dizendo, Promete, Prometo. E o velho... tem mais coisas deslembradas?





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