sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... Só mesmo quando o... (05)

Luaanda... Estória da Galinha e do Ovo


Luandino Vieira





Para Amorim e sua ngoma:
sonoros corações da nossa terra.



continuando...


Só mesmo quando o sargento começou aos socos nas costas é que tudo calou e começaram ainda arranjar os panos, os lenços da cabeça, coçar os sítios das pancadas. Os dois soldados tinham também entrado atrás do chefe deles, sem licença nem nada, e agora, um de cada lado do grupo, mostravam os cassetetes brancos, ameaçando e rindo. Mas o sargento, um homem gordo e baixo todo suado, tinha tirado o capacete de aço e arreganhava: 

— Bando de vacas! Que raio de coisa é esta? Eh!? O que é que sucedeu?

Ninguém que respondeu, só alguns muxoxos. Vavó Bebeca avançou um passo.

— Não ouvem, zaragateiras? O que é isto aqui? Uma reunião?

— Ih?! Reunião de quê então? — vavó, zangada, refilava.

— Vamos, conta lá, avozinha! Por que é que estavam à porrada? Depressa, senão levo tudo para a polícia.

Vavó viu nos olhos do soldado o homem estava falar verdade e, então, procurou ajuda nas outras pessoas. Mas as caras de todas não diziam nada, estavam olhar no chão, o ar, o canto onde Beto e Xico não tinham saído com o cesto, os dois soldados rodeando todo o grupo. No fim, olhando o homem gordo, falou devagar, a explorar ainda:

— Sabe! O senhor soldado vai-nos desculpar...

— Soldado, uma merda! Sargento!

— Ih?! E sargento não é soldado?...

— Deixa-te de coisas, chiça!∗ Estou quase a perder a paciência. Que raio de chinfrim é este?

Vavó contou, procurando cm Zefa e Bina cada vez que falava para ver a provação das suas palavras, toda a confusão da galinha e do ovo e por que estavam pelejar. O sargento, mais risonho, olhava também a cara das mulheres para descobrir a verdade daquilo tudo, desconfiado que o queriam enganar.

— E os vossos homens onde estão?

Foi nga Bina quem respondeu primeiro, falando o homem dela estava na esquadra e ela queria o ovo, assim grávida estava-lhe apetecer muito. Mas o sargento nem lhe ligou; abanava a cabeça, depois disse entredentes:

— Na polícia, hein? Se calhar é terrorista... E a galinha?

Todas as cabeças viraram para o canto, nas man-dioqueiras, onde os meninos, abaixados à volta do cesto, guardavam a Cabíri. Mas nem com os protestos de nga Zefa e o refilanço das outras amigas, o soldado aceitou: foi lá e, metendo a mão debaixo do cesto, agarrou a galinha pelas asas, trazendo-lhe assim para entregar ao sargento. A Cabíri nem piava, só os olhos dela, maiores com o medo, olhavam os amigos Beto e Xico, tristes no canto. O sargento agarrou-lhe também pelas asas e encostou o bicho à barriga gorda. Cuspiu e, diante da espera de toda a gente — nga Zefa sentia o coração bater parecia ngoma, Bina rindo para dentro —, falou:

— Como vocês não chegaram a nenhuma conclusão sobre a galinha e o ovo, eu resolvo...

Riu, os olhos pequenos quase desapareceram no meio da gordura das bochechas dele e piscando-lhes para os ajudantes, arreganhou:

— Vocês estavam a alterar a ordem pública, neste quintal, desordeiras! Estavam reunidas mais de duas pessoas, isso é proibido! E, além do mais, com essa mania de julgarem os vossos casos, tentavam subtrair a justiça aos tribunais competentes! A galinha vai comigo, apreendida, e vocês toca a dispersar! Vamos! Circulem, circulem para casa!

Os soldados, ajudando, começaram a girar os cassetetes brancos em cima da cabeça. Muitas que fugiram logo, mas nga Zefa era rija, acostumada a lutar sempre, e não ia deixar a galinha dela ir assim para churrasco do soldado, como esses homens da patrulha queriam. Agarrou-se no sargento, queria segurar a galinha, mas o homem empurrou-lhe, levantando o bicho alto, por cima da cabeça, onde a Cabíri, assustada, começou piar, sacudir o corpo gordo, arranhando o braço do soldado com as unhas.

— Ei, ei, ei! Mulherzinha, calma! Senão ainda te levo presa, vais ver! ‘tá quieta!

Mas, nessa hora, enquanto nga Zefa tentava tirar a galinha das mãos do gordo sargento, debaixo do olhar gozão de vavó Bebeca, nga Bina e outras que tinham ficado ainda, é que sucedeu aquilo que parecia feitiço e baralhou toda a gente enquanto não descobriram a verdade.

Quando o soldado foi tirar a galinha debaixo do cesto, Beto e Xico miraram-se calados. E se as pessoas tivessem dado atenção nesse olhar tinham visto logo nem os soldados que podiam assustar ou derrotar os meninos de musseque. Beto falou na orelha de Xico:

— É isso, Xico! Esses gajos não vão levar a Cabíri assim à toa! Temos de lhes atacar com a nossa técnica!...

— Vamos, Beto! Com depressa!

— Não, você ficas! P’ra disfarçar...

E Beto, parecia era gato, passou o corpo magro no buraco das aduelas desaparecendo, nas corridas, por detrás da quitanda. Xico esticou as orelhas com atenção esperando mesmo esse sinal que ia salvar a Cabíri. E foi isso que as pessoas, banzadas, ouviram quando o sargento queria ainda esquivar a galinha dos braços compridos e magros de nga Zefa.

Só eram mesmo cinco e meia quase, o sol ainda brilhava muito e a noite vinha longe. Ainda se estivesse fresco, mas não: o calor era pesado e gordo em cima do musseque. Como é um galo tinha-se posto assim, naquela hora, a cantar alegre e satisfeito, a sua cantiga de cam-bular galinhas? As pessoas pasmadas e até a Cabíri deixou de mexer, só a cabeça virava em todos os lados, revirando os olhos, a procurar no meio do vento esse cantar conhecido que lhe chamava, que lhe dizia o companheiro tinha encontrado bicho de comer ou sítio bom de tomar banho de areia. Maior que todos os barulhos, do lado de lá da quitanda de sô Zé, vinha, novo, bonito e confiante, o cantar dum galo, desafiando a Cabíri...

E, então, sucedeu: Cabíri espetou com força as unhas dela no braço do sargento, arranhou fundo, fez toda a força nas asas e as pessoas, batendo palmas, uatobando e rindo, fazendo pouco, viram a gorda galinha sair a voar por cima do quintal, direita e leve, com depressa, parecia era ainda pássaro de voar todas as horas. E como cinco e meia já eram, e o céu azul não tinha nem uma nuvem daquele lado sobre o mar, também azul e brilhante, quando todos quiseram seguir Cabíri no vôo dela na dire-ção do sol, só viram, de repente, o bicho ficar num corpo preto no meio, vermelho dos lados e, depois desaparecer na fogueira dos raios do sol...

Ainda com as mãos nos olhos magoados da luz, o sargento e os soldados saíram resmungando a ocasião perdida de um churrasco sem pagar. As mulheres miravam-lhes com os olhos gozões, as meninas riam. O vento veio soprar devagar as folhas das mandioqueiras. Nga Zefa sentia o peito leve e vazio, um calor bom a encher-lhe o corpo todo: no meio do cantar do galo, ela sabia estava sair no quintal dela, conheceu muito bem a voz do filho, esse malandro miúdo que imitava as falas de todos os bichos, enganando-lhes. Chamou Xico, riu nas vizinhas e pondo festas nos cabelos do monandengue, falou-lhes, amiga:

— Foi o Beto! Parecia mesmo era galo. Aposto a Cabíri já está na capoeira...

Vavó Bebeca sorriu também. Segurando o ovo na mão dela, seca e cheia de riscos dos anos, entregou para Bina.

— Posso, Zefa?...

Envergonhada ainda, a mãe de Beto não queria soltar o sorriso que rebentava na cara dela. Para disfarçar, começou dizer só:

— É, sim, vavó! É a gravidez. Essas fomes, eu sei... E depois o mona na barriga reclama!...

De ovo na mão, Bina sorria. O vento veio devagar e, cheio de cuidados e amizade, soprou-lhe o vestido gasto contra o corpo novo. Mergulhando no mar, o sol punha pequenas escamas vermelhas lá embaixo nas ondas mansas da Baía. Diante de toda a gente e nos olhos admirados e monandengues de miúdo Xico, a barriga redonda e rija de nga Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande...






continua página 101...


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∗ chiça! — porra!
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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


Leia também:

Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... a chuva não caía (01)

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