O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
3b.
Míchkin, sentado no canto, escrevendo, ouvia toda a conversa. Quando acabou, trouxe a página escrita, aproximando-se da mesa. - Ah! Então esta moça é que é Nastássia Filíppovna!? - fez ele, olhando com muita atenção e curiosidade para o retrato. - Mas é belíssima - acrescentou logo, com entusiasmo.
Realmente era o retrato de uma mulher extraordinariamente bela; estava com um vestido de seda preta muito simples e bem cortado, com os cabelos, que deviam ser castanho-escuros arranjados em um penteado singelo. Os olhos eram negros e profundos, a testa pensativa. Tinha uma expressão aflitiva e, por assim dizer, desdenhosa. E o rosto um pouco delgado era talvez pálido.
Gánia e o general fixaram Míchkin com surpresa.
- Nastássia Filíppovna? Dar-se-á o caso do senhor conhecer Nastássia Filíppovna? - titubeou o general.
- Conheço. Estou apenas há vinte e quatro horas na Rússia mas já conheço uma beleza de tal teor! - confirmou Míchkin.
E então lhes descreveu o encontro, no trem, com Rogójin, e tudo quanto este lhe havia contado.
- Ora aqui temos nós mais uma novidade! - disse o general meio atarantado. Prestara muita atenção à história que Míchkin contara e olhava agora para Gánia, refletindo.
- Rogójin? Sim, já soube dessa cena de bebedeira. É um negociante, não é? Trata-se, aliás, de uma rematada maluquice!
- Eu também soube! - redarguiu o general. - Nastássia Filíppovna me contou essa história dos brincos, uma vez. Mas agora as coisas mudaram muito, agora há alguns milhões e... uma paixão. E nós bem sabemos do que são capazes esses cavalheiros quando bêbados!... Hum! Tomara que não sobrevenha nada de sensacional! - concluiu o general, algo pensativo.
- Parece que o senhor está com medo dos milhões desse homem! - sorriu Gánia, afetadamente,
- E você naturalmente não está!?
Gánia voltou-se logo para o príncipe:
- Diga-me uma coisa, príncipe. Que impressão teve o senhor desse Rogójin? Pareceu-lhe pessoa séria, ou apenas algum rematado louco? Qual a sua opinião?
Enquanto Gánia fazia esta pergunta, algo de novo se instalava na sua alma. Uma ideia nova e específica que lhe abrasava o cérebro fazendo-lhe fulgurar os olhos. O general, que também estava bastante preocupado, olhou, por sua vez, de relance, para o príncipe, muito embora não parecesse contar muito com a resposta deste último.
- Não sei o que lhe diga - respondeu o príncipe - mas uma coisa lhe garanto: há nele uma grande paixão; posso mesmo adiantar mais: uma paixão mórbida. Aliás ele me parece mesmo bem doente e pode vir a fazer, outra vez, dentro de um ou dois dias, uma das suas. Principalmente, se prosseguiu na orgia.
- O senhor acha? - perguntou o general, refletindo sobre essa opinião.
- Acho.
- Uma das suas, só daqui a um ou dois dias? Talvez ainda hoje, isso sim, e até antes mesmo desta noite! - disse Gánia ao general, em um arreganho.
- Hum... Talvez, talvez... E então tudo dependerá da veneta em que ela estiver! - ponderou o general.
- E o senhor bem sabe o feitio dela, às vezes!
- Qual feitio? Que quer você dizer? - e o general ficou como que suspenso por uma extrema perturbação. - Ouça, Gánia, faça-me o favor de pelo menos hoje não contradizê-la muito. E tente... agradá-la deveras. Hum! Que cara é essa? Ouça, Gavríl Ardaliónovitch, não está fora de propósito tornar eu a perguntar-lhe que quer você, afinal de contas! Você sabe muito bem que, no que a mim se refere, esse caso não me sobressalta. De uma maneira, ou de outra, tenho as coisas estabelecidas. Tótskíi já decidiu tudo de uma vez por todas, e estou perfeitamente tranquilo; por conseguinte, que me está preocupando é apenas o seu bem. E isto uma coisa que lhe deve estar entrando pelos olhos a dentro. Você não tem o direito de desconfiar de mim. Além disso, você é um homem... um homem... de senso, realmente, e já venho contando com você para o presente caso desde... desde...
- É isso que é o importante , - acrescentou Gánia, tirando o general da sua hesitação. Depois contraiu a boca em um sorriso maligno, que não procurou esconder, e fitou bem o general; no rosto, com olhos febris, como se quisesse ler através daqueles olhos tudo quanto lhe passava pelo espírito. O general corou, amuado.
- Perfeitamente - aquiesceu ele.
- Juízo é o principal. - o seu olhar era cortante.
- Você, às vezes, é um sujeito engraçado, Gavríl Ardaliónovitch. Agora, por exemplo, parece que está vendo nesse negociante Rogójín uma saída oportuna para qualquer embaraço seu. Mas é justamente pelo senso que você se deve guiar. neste caso, antes de mais nada. Você deve, neste negócio, pensar e agir honestamente, e às direitas, para com ambos os lados; e, mais ainda, ficar precavido, de antemão, para evitar comprometer os outros, principalmente tendo tido, como teve, tempo suficiente para deliberar e agir. Com efeito, ainda há tempo (e nisto o general franziu as sobrancelhas, significativamente), muito embora para isso você só tenha diante de si algumas horas. Está entendendo? Entendeu bem? Você quer, ou não quer? Se não quer, diga logo de uma vez, e fique à vontade. Ninguém o está coagindo, Gavria Ardaliónovitch, ninguém lhe está preparando uma armadilha. Isto, caso você ache que se trata de uma armadilha.
- Eu quero - respondeu Gánia, em voz baixa mas firme; abaixou os olhos e afundou em um silêncio quase sinistro.
O general ficou satisfeito. Excedera-se, talvez, por causa da mútua perplexidade, tendo, evidentemente, ido mais longe do que devia. Virou-se, afinal, para Míchkin e a sua face traiu, sem querer, a verificação desagradável de que o príncipe, estando ali, tinha ouvido tudo. Mas logo se tranquilizou: bastava a quem quer que fosse olhar para Míchkin para não recear nada.
- Oh! - exclamou olhando para o modelo de caligrafia que Míchkin lhe mostrava. - Que letra! Esplêndido! Gánia, venha ver Que habilidade!...
Sobre a espessa folha de pergaminho o príncipe tinha escrito, em caracteres medievais russos, a sentença: o humilde hegúmeno Pafnútii apôs aqui a sua assinatura.
- Esta - explicou Míchkin com extraordinário prazer e sofreguidão - é precisamente a assinatura do hegúmeno Pafnútii, copiado de um manuscrito do século XIV. Os nossos velhos monges bispos costumavam assinar os seus nomes de modo bonito e, às vezes, com que bom gosto e aplicação! O senhor não tem a coleção de Pogódin, general? E aqui já escrevi em um estilo diferente; esta é a maneira francesa da letra redonda, do último século, quando muitas letras eram bem diversas do que são hoje. E a escrita da praça, dos escrivães públicos; imitada dos seus modelos. Tenho um comigo. O senhor há de concordar que isso tem os seus quês! Olhe, por exemplo, estes DD e estes ss redondos. Adaptei a escrita francesa ao alfabeto russo, o que é muito difícil, mas ficou ótimo. Veja agora esta outra letra aqui não é original? Veja a frase “A perseverança transpõe todos os obstáculos”. É a caligrafia russa de um escrivão profissional ou militar. Era assim que as instruções governamentais eram escritas a certas pessoas importantes. Esta outra, aqui, é uma caligrafia redonda, também, com esplêndidas letras negras, bem grossas, traçadas com um notável bom gosto. Um especialista na arte da caligrafia desaprovaria estes floreios, ou melhor, estes exageros de floreios, estes traços que nunca mais acabam. Veja-os bem; contudo, dão um certo caráter e, na verdade, através deles o senhor está vendo a alma do escrivão militar espiando, demorando em interromper a expressão do seu talento. E o senhor está vendo até o colarinho militar apertado em volta do pescoço... chega-se a ver até mesmo a disciplina, através desta caligrafia. É adorável! Não imagina como me impressionou um espécime destes, ultimamente; descobri-o por acaso. Pus-lhe a mão, imagine justamente onde? Na Suíça! Agora, esta aqui é a letra simples e comum, inglesa; impossível ir-se mais além, na arte. É toda esquisita, finíssima, parece feita de contas e pérolas, não falta nada! E aqui tem o senhor uma variação, já esta agora francesa; obtive-a de um viajante comercial francês. O estilo é o mesmo da inglesa, mas os traços negros são feitos com golpes mais grossos do que os golpes ingleses e, conforme está vendo, a proporção se perdeu. Repare, também que o oval é um nada mais redondo, admitindo-se também o ornato. Todavia, o ornato é uma coisa perigosa; requer um extraordinário, bom gosto e tem acolhida, mas só se a simetria for atingida; e então, a escrita se torna incomparável e a gente simplesmente se apaixona por ela!
- Oh! Mas o senhor perpetra verdadeiras maravilhas! - disse o general, sorrindo. O senhor não é apenas um bom calígrafo meu caro amigo, o senhor é mais é um artista! Hein. Gánia?
- Maravilhoso - disse Gánia - e ele também está convencido da sua vocação! - acrescentou com uma risada sarcástica.
- Você pode rir, mas que há nele uma carreira, há! – disse o general. - Sabe, príncipe, para que personagem vai agora o senhor escrever? Ora, bem pode contar com trinta e cinco rublos por mês para começar. Mas, são doze e meia - disse, consultando o relógio - Vamos pois a isso, príncipe. Tenho pressa e talvez não o veja mais hoje. Sente-se, por um minuto, Já lhe expliquei que não posso vê-lo muitas vezes; mas estou sinceramente disposto a ajudá-lo um pouco; naturalmente, isto é, naquilo que for essencial! E, quanto ao resto, o senhor deve agir conforme lhe convier mais. Arranjar-lhe-ei um lugar no escritório, um emprego bem fácil, mas que exija exatidão. Passemos adiante. Na residência, ou melhor, na família de Gavríl Ardaliónovitch Ivolguin, aqui este meu jovem amigo, com quem peço desde já que se dê, a mãe e a irmã separaram dois ou três quartos mobiliados e os cedem com pensão e trato, alugando-os a hóspedes especialmente recomendados, Para o senhor isto é como coisa caída do céu, príncipe, pois não ficará só e sim, por assim dizer, no seio da família; a meu ver, não convém que o senhor se isole logo no começo, em uma cidade como Petersburgo. Nina Aleksándrovna e sua filha Varvára Ardaliónovna são senhoras por quem tenho o maior respeito. Nina Aleksándrovna é mulher de um general reformado que foi meu camarada desde que entrei para o serviço, embora, devido a certas circunstâncias tenha rompido relações com ele, o que não me impede, em certo sentido, de o respeitar. Digo-lhe tudo isso, príncipe, para que perceba que o apresento pessoalmente e que, portanto, me faço, em certo modo, responsável pelo senhor. O preço e as condições são extremamente módicos, e espero que o seu salário brevemente já lhe dê para enfrentá-los. Naturalmente, uma pessoa precisa sempre de dinheiro trocado, no bolso, mesmo que seja um pouco, apenas, mas o senhor não se zangará comigo se eu lhe aconselhar a não ter muito dinheiro no bolso. Depreendo isso pela impressão que tive do senhor. Como. todavia, sua bolsa está presentemente vazia, permita-me emprestar-te vinte e cinco rublos para as suas despesas mais imediatas. O senhor me pagará depois, naturalmente, e sendo uma pessoa honesta sincera, como indubitavelmente parece ser, nenhuma incompreensão poderá surgir entre nós. Tenho um motivo para me interessar pelo seu bem-estar; sabê-lo-á mais tarde. Vê, estou sendo perfeitamente correto com o senhor. Espero. Gánia, que você nada tenha a opor à instalação do príncipe em sua casa!...
- Oh! Muito pelo contrário. Minha mãe ficará contente -aquiesceu Gánia, polidamente.
- Vocês só têm um quarto alugado, creio eu. Mora lá aquele Ferd... ter...
- Ferdichtchénko.
- É isso, é isso, Ferdichtchénko. E não simpatizo nada com ele. Não passa de um ordinaríssimo palhaço. Está aí uma coisa que não compreendo: Nastássia Filíppovna dar-lhe tanta confiança. É mesmo parente dela?
- Que nada! É pilhéria. Não há o menor traço de parentesco.
- Bem, enforquemo-lo. Então, príncipe, está satisfeito?
- Agradeço-lhe muito, general. O senhor foi muito bondoso para comigo, e, o que é mais, sem eu lhe ter pedido ajuda. Não estou falando assim por orgulho. De fato não sabia e nem tinha onde ir pousar a cabeça. É verdade que, ainda há pouco, Rogójin me convidou.
- Rogójin? Oh! Mas não! Aconselhá-lo-ia, como pai, ou se o senhor prefere, como amigo, a esquecer-se de Rogójin. E ao mesmo tempo o aconselharia a preferir a família para a qual lhe propus entrar como hóspede.
- Já que o senhor é tão bondoso - começou o príncipe - tenho necessidade de um conselho sobre um negócio. Eu recebi uma notificação sobre...
- Perdoe-me - interrompeu-o o general. - Não tenho sequer um minuto mais. Vou falar com Lizavéta Prokófievna a seu respeito. Se ela desejar vê-lo agora (vou tentar dar-lhe as melhores impressões a respeito do senhor!) aconselho-o a aproveitar a oportunidade e ganhar-lhe as boas graças, pois Lizavéta Prokófievna lhe pode ser muito útil. Além do mais o senhor tem o mesmo nome que ela! Se ela não quiser, não há outro jeito, se não outra vez, decerto! E você, Gánia, neste ínterim, vá-me olhando estas contas. Eu e Fedosséiev estivemos lutando em vão, com elas. Não se esqueça de incluí-las.
E o general saiu sem que Míchkin tivesse conseguido falar-lhe acerca do negócio que, por quatro vezes, em vão, ensaiara. Gánia acendeu um cigarro, e ofereceu outro ao príncipe. Este aceitou, mas refreou a vontade de conversar, receoso de se tornar importuno. Começou a olhar o escritório. Mas Gánia mal olhou para a folha de papel coberta de números e para a qual o general lhe tinha chamado a atenção. Estava preocupado. O seu sorriso, a sua expressão, os seus pensamentos pesavam sobre Míchkin. Principalmente, depois que ficaram sós. E, de repente, ele se aproximou do príncipe. que justamente estava em pé, contemplando o retrato de Nastássia Filíppovna.
- Então, o senhor admira uma mulher como esta, príncipe? - perguntou, pesquisando-lhe a atitude, como se tivesse alguma intenção especial.
E o príncipe respondeu:
- Tem um rosto maravilhoso. E percebo que a história dela não é uma história comum. É um rosto prazenteiro. Mas não teria ele passado já por terríveis sofrimentos? Os seus olhos nos dizem isto, e as suas faces, e este trecho debaixo dos olhos! É um rosto altivo, pasmosamente orgulhoso, mas não sei se ela tem bom coração! Se tiver, ah!... Isso a redimiria! De tudo!...
- Casar-se-ia o senhor com essa mulher? - prosseguiu Gánia. pondo nele uns olhos febris.
- Não posso me casar com ninguém. Sou doente.
- E Rogójin? Casar-se-ia ele com esta mulher? Que acha o senhor?
- Rogójin? Casar-se-ia hoje mesmo! Digo mais: casar-se-ia hoje, mas uma semana depois, talvez a matasse.
Ao pronunciar estas palavras, viu Gánia estremecer tão violentamente que logo lhe gritou:
- Está sentindo alguma coisa? - e o segurou, espantado.
- Alteza! Sua Excelência pede a Sua Alteza que se digne entrar! - anunciou o lacaio, aparecendo à porta.
O príncipe seguiu-o.
continua página 032...
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