segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Sensibilidade e uma Grande Dama Devota (V)

Livro II 

Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo V

A SENSIBILIDADE E UMA GRANDE DAMA DEVOTA


Uma ideia um pouco viva parece uma grosseria, tamanho é o costume das
palavras sem brilho. Ai de quem improvisa ao falar!
FAUBLAS




DEPOIS DE VÁRIOS MESES DE PROVAÇÕES, eis como se encontrava Julien no dia em que o intendente da casa entregou-lhe a terceira quarta parte de seu ordenado. O sr. de La Mole encarregara-o de acompanhar a administração de suas terras na Bretanha e na Normandia. Julien fazia frequentes viagens até lá. Era o principal encarregado da correspondência relativa ao famoso processo com o abade de Frilair. O sr. Pirard o instruíra. 
A partir das breves anotações que o marquês rabiscava à margem dos papéis de toda espécie que lhe eram endereçados, Julien redigia cartas que eram, quase todas, assinadas.
Na escola de teologia, os professores queixavam-se de sua pouca assiduidade, mas não deixavam de vê-lo como um de seus alunos mais distintos. Esses diferentes trabalhos, cumpridos com todo o ardor da ambição pacien te, haviam tirado das feições de Julien as cores que ele trouxera da província. Sua palidez era um mérito aos olhos dos jovens seminaristas, seus colegas; ele os achava muito menos malévolos, muito menos ajoelhados ante o dinheiro que os de Besançon; eles julgavam-no doente dos pulmões. O marquês dera-lhe um cavalo.
Temendo ser visto em seus passeios a cavalo, Julien lhes dissera que esse exercício fora prescrito pelos médicos. O abade Pirard o levara a várias associações de jansenistas. Julien ficou espantado; em seu espírito, a ideia da religião estava invencivelmente ligada à hipocrisia e à esperança de ganhar dinheiro. Ele admirou aqueles homens piedosos e severos que não pensavam no caixa. Vá rios jansenistas ligaram-se a ele por amizade e davam-lhe conselhos. Um mundo novo abria-se diante dele. Conheceu junto aos jansenistas um conde Altamira de quase dois metros de altura, liberal condenado à morte em seu país, e devoto. Esse estranho contraste, a devoção e o amor à liberdade, o impressionou.
Julien esfriara seu relacionamento com o jovem conde Norbert. Este achara que ele respondia muito vivamente aos gracejos de alguns de seus amigos. Tendo faltado às conveniências uma ou duas vezes, Julien prescrevera-se jamais dirigir a palavra à srta. Mathilde. Continuavam demonstrando-lhe muita cortesia na mansão de La Mole, mas ele sentia-se diminuído. Seu bom senso da província explicava esse efeito pelo provérbio vulgar: tudo o que é novo é bom.
Talvez ele estivesse um pouco mais clarividente do que nos primeiros dias, ou então o primeiro encantamento produzido pela urbanidade parisiense passara.
Assim que parava de trabalhar, estava às voltas com um tédio mortal; é o triste efeito da polidez admirável, mas comedida, tão perfeitamente gradua da segundo as posições, que distingue a alta sociedade. Mesmo um coração pouco sensível percebe o artifício.
Certamente, pode-se reprovar à província um tom comum ou pouco polido; mas as pessoas respondem com um pouco mais de paixão. Na mansão de La Mole, o amor-próprio de Julien jamais fora ferido; mas com frequência, ao fim do dia, ele sentia vontade de chorar. Na província, um garçom de café interessa-se pela gente, se nos acontece um acidente ao entrar no café; mas se esse acidente oferece algo de desagradável para o amor-próprio, ele, lamentando o que aconteceu, repetirá dez vezes a palavra que nos tortura. Em Paris, as pessoas têm o cuidado de ocultar-se para rir, mas a gente é sempre um estranho.
Passamos em silêncio uma série de pequenas aventuras que teriam feito Julien cair no ridículo, se ele não estivesse, de certo modo, abaixo do ridículo. Uma sensibilidade exagerada fazia-o cometer milhares de asneiras. Todos os seus prazeres eram de precaução: atirava com a pistola diariamente, era um dos bons alunos dos mais famosos mestres de armas. Assim que podia dispor de um instante, em vez de dedicar-se à leitura como outrora, corria à equitação e pedia os cavalos mais cheios de vícios. Nos passeios com o mestre de equitação, quase sempre sofria uma queda.
O marquês considerava-o cômodo por causa de seu trabalho obstinado, de seu silêncio, de sua inteligência, e aos poucos confiou-lhe o acompanhamento de todos os negócios de solução um pouco difícil. Nos momentos em que sua alta ambição dava-lhe alguma folga, o marquês fazia negócios com sagacidade; estando bem informado, aplicava o dinheiro com felicidade. Comprava casas, bosques; mas facilmente ficava de mau humor. Era capaz de dar centenas de luíses e de mover processos por quantias irrisórias. Os homens ricos e de coração soberbo buscam nos negócios diversão e não resultados. O marquês tinha necessidade de um chefe de estado-maior que pusesse uma ordem clara e fácil de compreender em todas as suas questões de dinheiro.
A sra. de La mole, embora de caráter tão comedido, zombava às vezes de Julien. O imprevisto, produzido pela sensibilidade, é o horror das grandes damas; é o antípoda das conveniências. Duas ou três vezes o marquês tomou o partido dele: Se é ridículo no seu salão, no escritório ele triunfa. Julien, por seu lado, acreditou descobrir o segredo da marquesa. Ela passava a interessar-se por tudo assim que anunciavam o barão de La Joumate. Era um homem frio, de fisionomia impassível. Baixo, magro, feio, muito bem-vestido, passava a vida no palácio e, em geral, não abria a boca sobre coisa nenhuma. Era sua maneira de pensar. A sra. de La Mole ficaria apaixonadamente feliz, pela primeira vez na vida, se pudesse fazer dele o marido de sua filha.




continua página 187...
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Primeiros Passos (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Sensibilidade e uma Grande Dama Devota (V)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneira de Pronunciar (VI)

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